domingo, 31 de outubro de 2010

Receita: Pizza de Atum do Pio

    Pizza de Atum do Pio

    Molho: (Preparo: 45 minutos)
4 colheres de óleo
2 cebolas médias
2 tomates médios
2 dentes de alho médios
1 colher sopa bem cheia de extrato de tomate
1 cheiro de pimenta calabresa
1 cheiro de pimenta branca moída
1 cubo de caldo de galinha.
2 latas de atum em pedaços.


    Modo de preparar:
Cortar as cebolas e os tomates em cubinhos pequenos. Picar o alho bem miudinho. Colocar estes ingredientes juntamente com o óleo em panela tapada em fogo alto. Deixar criar água. Acrescentar o caldo de galinha e as pimentas. Tampar e deixar em fogo alto até começar a fritar (meia hora). Acrescentar água em pequena quantidade repetidas vezes até o molho ficar uniforme. Reserve.
Abra as latas de atum, descarte o óleo delas e com um garfo puxe o atum para dentro do molho, mexendo com o garfo para que o atum se desfaça em pedaços. Em fogo brando vá mexendo até misturar o atum ao molho, até levantar fervura. Reserve.


    Massa: (Preparo: 10 minutos)
200ml de leite temperatura ambiente
1 colher de sopa cheia de margarina
1 ovo
1 e meia tampa de fermento Royal
2 xícaras rasas de farinha de trigo
1 colher rasas de chá de sal
1 pitada de açúcar.

    Modo de preparar:
colocar todos os ingredientes em 1 bacia, menos o fermento.
Misturar até a massa ficar homogênea (Para facilitar bater no mixer ou batedeira).
Acrescentar o fermento, misturando com uma colher delicadamente até ele desaparecer na massa. Reserve.
    Enquanto a massa fica aerada, pegar uma forma média e untar com óleo. Depois polvilhar com farinha todo o fundo.
    Despejar a massa na forma, espalhando ela. Sobre ela, distribuir o molho de atum morno.
    Colocar em forno preaquecido durante 10 minutos a 220 graus. Assar durante meia hora.


terça-feira, 19 de outubro de 2010

Conto - Problemas em Família


                              Problemas em Família



Quando Maria Ojeh Kasir me falou de seus primeiros e desesperados encontros com o avô de sua cunhada, Arnus Sandfisch, simplesmente supus que ela estivesse blefando. Nunca houveram acertos entre os Ojeh Kasir e os Sandfisch. Dizem que estes desacertos vêm da diferença entre as duas raças: a de Maria Ojeh, árabe e a de Arnus sandfisch, germânica. Todos os membros de ambas as famílias evitavam-se no máximo  de suas condições e possibilidades, e isto já vinha lá de longe, de uma data a perder de vista, desde os primeiros contatos com seus antepassados imigrantes. Como ambas as famílias se declaravam pessoas de bem, fiéis, crentes e religiosas, usavam como armas a boca e a inteligência. Armas brancas ou fatais não cabiam no uso de suas picuinhas nem em suas mentes banhadas pelos gens de descendentes de famílias dotadas de inteligência peculiar e refinada. Além disto, ninguém sabia a maneira de como o irmão de Maria Ojeh, Célio, conseguira se casar com a filha de Marcus, Lourdes, boa moça e principalmente, moça boa, esbelta, com feições indiscutivelmente germânicas.
Ninguém chegou a saber como aconteceu a trégua para este evento, já que seus pais, os dele e os dela, suportavam-se menos do que os homens e os mosquitos. Mas, o fato é que o casamento realmente ocorreu. Todos os que participaram da festa propriamente dita forma Célio, Lourdes, algumas moscas, Maria Ojeh e os comes e bebes. Ninguém almenjava a realização deste casamento, é lógico, por isso foi efetuado secretamente sob o manto noturno de uma sexta-feira sinistra, com cerração acompanhada de fina garoa, nos arredores da Igreja. Para ser mais detalhado, na sacristia. Em meio ao odor de vinho, um vinho de primeira qualidade, o padre, num esboçar de plena satisfação, realizou a cerimônia com desvelo e dedicação.
É interessante notar que a particularidade do evento foi mais uma das várias incógnitas do destino: ele usa meios e métodos próprios para discernir casos sem solução. Pois, mesmo as duas famílias não se aceitando, nem acolhendo este casamento, passaram a se injuriar menos.
Maria Ojeh não vacilou em aproveitar um pouco desse sol, e bronzear e aquecer a frieza de sua própria participação no caso. Ela, desde seu nascimento, se prestava muito para curinga. Um detalhe importante porém, é o de ela se auto intitular com estes propósitos: ser a chave para todas as fechaduras e pau para toda a obra. Em nosso encontro, seu maior desejo era o  de eu ajudá-la em seus propósitos altruísticos. Me dizia ser impossível, com tanto ódio no mundo, justo sua família estar amolando línguas com a outra família, da qual seu próprio irmão escolhera sua cara-metade... Seu irmão que, martirizado pela apatia dos seus e dos de Lourdes, acabaria dando suas medidas ao coveiro bem antes do tempo, vestindo um pijama-de-pau ainda na mocidade... Maria Ojeh, com seu olhar inquieto, ainda completava dizendo ter certeza que seu irmão acabaria definhando e perecendo de qualquer maneira, menos da natural. Seus olhos se tornavam grandes, redondos e envolventes ao me dizer isto. Já do meu lado, pensava de outra maneira: “Trintona gostosa que parece mais uma tempestade de areia no deserto escaldante a varrer de mim todas as vibrações negativas: eu faço isto para ficar um pouco mais perto de você!” Ela era em seu todo um desejo. Melhor, era um vulcão! Aquele cabelo negro, brilhante como as estrelas nas Mil e Uma Noites, completados com o negror daqueles olhinhos, os quais, antes meio apagados, agora se tornavam flamantes e misteriosos. Para completar, seus dentes incisivos eram enormes; sempre apareciam levemente atrás da boca semi-aberta, dando na gente a impressão de estar sendo fitado com a gana de um relacionamento mais aprofundado. E eu completava em minha mente: “Ajudar? Eu? Há, há, há... Um caso, do qual meu espírito aventureiro sente e respira os ares mal-cheirosos do necrotério, hão haveria de me atrair. Não me envolveria, nem sequer hipnotizado!”
Mesmo eu pensando assim, ela possuia um toque especial, cativante e audacioso, o qual me fazia perder as rédeas lentamente. E isto não era novidade para ela; já me conhecia e não pouco. Em outras oportunidades, já caíra comprometido em auxiliá-la por culpa de seus encantos. E suas palavras mais uma vez me aclaravam meu novo compromisso assumido: ajudá-la em suas tentativas para acabar com as rixas e os desacertos entre as famílias. Quando caí em mim, vi que havia concordado, porém não encontrei os motivos  que me acanalharam com tão intragável tarefa e que haveriam de me causar inúmeras aporrinhações. Contudo, uma vez concordado, o mais importante era entrar em ação. O caso poderia levar meses, até anos para ser concluído e superado. Maria Ojeh, com todos os seus palpites e diretrizes amplas deixava-me atucanado.
Sentia-me como uma gota de álcool com o dever de conseguir embriagar um alcoólatra. Por outro lado, meu serviço tomava praticamente toda a semana, não restando muito tempo vago para desempenhar atividades paralelas.



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A primeira tentativa para aproximar as famílias partiu de Maria Ojeh, tendo a mim como ator. Simplesmente a esta altura, ainda não havia me dado conta como fora idiota aceitando auxiliá-la. Também não havia encontrado perfeitamente meu futuro comportamento: agir como personagem real ou fictício. Atordoava-me o fato em ver-me completamente envolvido com uma questão entre duas famílias das quais em nenhuma delas se incluía a minha pessoa. Notava-se muitas coisas mal explicadas, não aclaradas, entre todos os membros de ambos os lados. Emfim, certamente o que faltava era diálogo.



                *********



Apesar de eu saber, Maria me contou da gravidez de Lourdes e que não faltava muito para ela gerar a barreira entre os dois fogos. Usaríamos o nascimento da criança como recurso de aproximação. Pensamos ser esta tentativa passível de grande sucesso para acabar com as rinhas entre as duas famílias tão estimadas e cultas.
Ao término de três semanas, enquanto aguardávamos calmamente e ao mesmo tempo entusiasmados, nasceu a primeira filha de Célio e Lourdes. A criança, uma verdadeira obra-prima do casal, merecidamente teve o nome exótico e pomposo de Aragelda, uma pincelada de árabe e germânica em seu conteúdo. A criança possuía características genéticas provindas das duas raças, definidas pelas cores, tez e traços. Mas como só poderia ter acontecido, cada família discutia em mantê-la enquadrada em sua prole, sendo isto um grande motivo para novos atritos. Maria Ojeh e eu havíamos presumido que isto poderia ocorrer, sendo por este lado nossa primeira incursão na tentativa em reaproximar as famílias.
Como detalhe do plano, tornei-me namorado de Maria Ojeh Kasir. E esta idéia só poderia ter vindo de minha mente, sempre predisposta às vantagens isentas de sacrifícios. Para iniciar, iríamos à casa dela jantar: ela me apresentaria aos seus como o seu pretendente, e tentaríamos após alguns encontros, dirimir a ira que pairava contra a outra família. Mas aquele dia, quando meus olhos cruzaram pela primeira vez com os do pai dela, Abdala Kasir, de imediato perdi todas as esperanças de efetuar as devidas negociações e executarmos nosso plano: Abdala, homem magro, quase careca, aparentando ser um nobre – embora não o fosse – possuia um desenrolar de conversação áspero e fluente, não deixando grande margem às argumentações. Em rápídos traços, suas palavras e seus olhos, como sua feição, eram tão ásperas e curtidas como o deserto de onde sua ascendência viera. Ele demonstrava simpatia, porém notava-se perfeitamente que ela era superficial. Até Maria Ojeh, sua própria filha, alterava completamente a sua maneira de ser em sua presença, demonstrando medo e submissão ao pai, apesar de ela estar girando os trinta anos. “Possibilidades mínimas!” – era a única frase que circulava em meus pensamentos a respeito do caso. Sentia-me mal-vindo naquela casa. Toda a atmosfera dava a impressão de temporais inimagináveis.
Após várias visitas aos Ojeh Kasir, sempre acompanhado da afável miragem no deserto escaldante, a bela Maria, comecei a tornar-me menos distanciado por todos os Kasir. Aliás, Célio e eu firmamos mais ainda a nossa amizade, a qual já vinha de há muito tempo. E na casa dos Kasir apareceu aquele momento mágico para iniciarmos o diálogo sobre os rivais. A inquietude de Maria perante seu pai deixava-me irrequieto também. A um certo momento não me contive e dei-lhe um beliscão na coxa, a qual a deixou com um hematoma duas semanas. Mas valeu a pena. Ela entendeu, respirou fundo e começou a apresentar os nossos pontos-de-vista. Encontrávamo-nos reunidos na sala, juntamente com Abdala e Ilena, sua esposa. Depois da sobremesa, após algum silêncio, Maria Ojeh arriscou:
- Pai, precisamos conversar...
- Pois não! É exatamento o que estamos fazendo, filha! – Disse ele firme e certo, alisando sua barbichinha aparada com cuidado.
- Acontece que estou procurando palavras, e...
- Palavras... Pois, encontre-as! Elas sempre se encontrarão presentes no momento certo, no momento em que as precisar.
- Mas as minhas palavras estão soando amargas embora o momento exija a necessidade de palavras doces e suaves!
- Pois eleve seu espírito à paz! Sua amargura desaparecerá.
- Talvez... Mas minha amargura está tão perto de mim, que fica difícil conseguir dissipá-la só com a elevação do espírito.
- Pois tente! Nunca se tem o resultado sem experimentá-lo, sem palpá-lo.
- Esta amargura tem a ver com os problemas, ...sabe,
- Sei??? ...que problemas?
- Ora, pai! Isto vai longe...
- Está querendo opinar sobre o quê? ...Será que... eu posso adivinhar?
O clima da conversa estava se encaminhando em outra direção. Senti o tamanho do domínio e da prepotência de Abdala. Maria Ojeh ainda tentou:
- Eu queria dizer, pai, sobre... o que acha das injustiças no mundo?
- Não formulo opinião a respeito. Injustiças sempre houveram e haverão. Vocês bem o sabem, que se fizerem tudo o mais certo, que lhes julgue certo e conveniente, alguém terá encontrado defeito. É a lei da vida, minha filha, e por isto o mundo progride.
Estaca zero. Via-se perfeitamente que ele lera nossos pensamentos e não se propunha a contribuir. Muito pelo contrário, ficara rodeando o assunto para não se aprofundar. Maria Ojeh, que estava sentada ao meu lado segurando minha mão, a apertou e fitou-me acabrunhada. Deixou brotar um sorriso desanimado e eu pude ver através de seu olhar a amargura que ela sentia por esta situação. Por fim, fitou Abdala, resolvendo continuar a conversa:
- Mas, pai? Você não acha que alguém deveria fazer algo? Digo: lutar, desenvolver o bem ao seu redor, disseminar boa-vontade e entusiasmo e, com esta influência, contagiar a todos a fim de melhorar a vida?
- Se alguém fizer algo, dirão tratar-se de auto-promoção. Sempre haverá aqueles que ficam à espreita, a fim de contaminar seus semelhantes com pensamentos e atos aproveitadores. O jeito é, e acredito que vocês concordam comigo, levar a vida com nossos esforços, procurando mantê-los em prosperidade e correção o tempo que for possível, e...
- Discordo! – entrei de supetão no diálogo. – Nunca é demais ajudarmos a melhorar pelo menos aos que nos cercam e nos são caros. Acho certo fazermos o possível para que em nosso meio, em nossa comunidade, todos se sintam bem. Para tanto, há sempre a necessidade do apoio de todos, inclusive o seu, colaborando na harmonia e no engrandecimento de todos os cidadãos, começando a entender os motivos das divergências, enfim, dirimindo todos os mal-entendidos que possam estar inquietando sua família.
- O que estão insinuando?! – E Abdala, gesticando com o indicador num ar colérico: - ...Ah, já entendi! Vocês estão falando do relacionamento rompido entre nós e os Sandfisch. Nunca! – Elevando a voz – Nunca!!! Nem morto haverei de tentar uma reconciliação!
Rapidamente pensei em algo para dizer, a fim de abrandar a cólera de Abdala. Olhei fixamente para ele e mudei de idéia: pensei ser melhor continuar insistindo no assunto, já que o meu envolvimento começara a tomar forma:
- Senhor Abdala, devo crer que esta sua resposta tão repentina e amarga não é coerente com sua personalidade. Esta saída já pronta em seu pensamento, deixa-me perceber uma vontade secreta no senhor, em reatar com os Sandfisch.
- Édson, não consigo crer que você, um rapaz dinâmico e bem quisto em toda a comunidade, esteja tentando se envolver nas rixas entre nossas famílias. A princípio, não está inteirado sobre todos os motivos existentes e, além do mais, deveria, antes de opinar, conhecer todos os meandros que engendraram esta nossa rispidez com aquela família.
- Mas nós só temos um objetivo: é...
- Silêncio! – Proferiu Abdala sério e autoritário. – Você não tem direito a opinar sobre nada, afinal, nem a nenhuma das duas famílias pertence!
Maria Ojeh encorajou-se e entrou na discussão:
- Não se esqueça meu pai, que eu sou sua filha e que Édson é meu namorado e que estamos com sérias intenções de levarmos nosso relacionamento adiante e que...
Abdala fez sinal para ela calar, enquanto balançava a cabeça em sinal de negação. Etristecido falou:
- Maria! ...ó Maria, minha bela Kasir! Seu pobre velho pai está cansado de enfrentar todos os ventos secos e arenosos que uivam ao nosso redor. Não posso admitir que você, minha própria filha, sangue puro, quente, com o olhar tão perspicaz quanto o de sua avó e a inteligência marcante de sua mãe, venha a me contrariar...
Eu fiquei observando aquele desenrolar, meio perdido pois não conhecia seus costumes, mas ao mesmo tempo louco para dizer umas verdades para aquele velho teimoso.
Nisto, Ilena que ficara o tempo todo cabisbaixa acompanhando nosso debate, levantou-se e fez-se ouvir:
- Édson, para você deve ser difícil de entender como isto tudo pôde acontecer, mas quero que saiba que aqui, nesta casa, quem ainda usa a calça é o meu marido Abdala Kasir. Não estamos interessados em lavar os pés de ninguém! Se eles desejarem que nossos desentendimentos acabem, que venham falar conosco. Não nos dobraremos a eles. ...E vou lhe dizer mais uma coisa: não é porque nasceu uma perfeita Kasir do ventre de uma alemoa, que vamos dobrar-nos e curvar-nos diante deles. Eles se esquecem de que foi necessário o pai, um árabe, puro sangue, um Kasir, para que Aragelda nascesse! Todavia, é como Abdala e eu queremos: se pensam em terminar estas desavenças históricas entre nossas famílias, que venham até nós!
- Mãe, não fale assim! A alemoa tem nome: Lourdes!
- Não interessa! Por ter nome não deixará de ser alemoa, e, principalmente, não deixará de ser filha dos Sandfisch.
- Por favor, mãe! – Falou Maria com ternura. – Acho completamente desapropriado o modo como trata sua nora.
- Ainda não a conheço, Maria! Como vou ser gentil ao me referir ao seu respeito?
Maria, respirando fundo  e mais confiante respondeu:
- Mãe, um pouco de culpa vocês têm por não terem dado a ela a oportunidade de conhecê-los, proibindo-a de vir aqui.
- Sim, sim, minha filha! ...é assim que você pensa: meus pais são os culpados de tudo...
Entrei na conversa ajudando Maria:
- Os culpados são a sua teimosia e a falta de vontade de ambas as partes em resolverem este desentendimento.
Ilena baixou a cabeça engrolando quaisquer palavras em árabe, em tom de amargura ou como se estivesse rezando. Em seguida dirigiu seu olhar ao marido e disse:
- Abdala, vamos dar uma caminhada. Aqui não há ambiente para o seu coração doentio.
Abdala levantou com dificuldade; Ilena o ajudou apoiando suas mãos sob suas axilas. Maria Ojeh e eu nos fitamos e ela, com um olhar patético e um jeito derrotado transpirava por todos os seus poros a amargura por não ter dado certo nossa investida. A única conclusão que chegamos, foi a de que havia uma certa vontade em se reconciliarem, já que Ilena dissera que eles deveriam tomar a iniciativa.
Neste encontro porém, foi uma das frases ditas por Maria ao seu pai que estava começando a me atordoar: desde quando nosso namoro de mentirinha estava criando laços mais sérios e profundos? Com que direito ela pôde chegar ao pai e dizer que estávamos por firmar nossos laços com maior intensidade?
Aquilo me fez pensar...



                *********



Houve a segunda tentativa de aproximar as duas famílias. Ela nunca teria acontecido, porém um detalhe fez-me levar o caso adiante: esse namorinho, namoro-de-brincadeira entre Maria Ojeh e eu, estava tomando formas e pude pressentir que a vontade de lutar ao lado dela possuía valores mais desenvolvidos, muito além do nosso simples altruísmo inicial. Era incrível a maneira sensacional como ela agia. Seus graciosos movimentos, misturados com trejeitos rápidos insinuavam um efervescer de uma deusa das mil e uma noites. Eu sonhava com ela a me provocar vestida de alto a baixo com seda branca semi-transparente, deixando a vista um piercing malicioso no umbigo. Aquele do tipo que dá vontade de mordiscar. E, no meio da seda branca, divisava ancas bem delineadas de uma profissional da dança do ventre. Nos sonhos, um véu cobria seu rosto, mas deixava a mostra o olhar negro e cativante e a boca sensual, semi-aberta, com os incisivos sensualmente e desejosamente à mostra. E o que dizer do seu perfume? ...áh, aquilo era uma mistura de Maderas do Oriente com Almíscar Selvagem e Jasmim! Seus meneios deixavam rastros daquela sutil mistura aos borbotões. O espetacular de tudo isso era que o perfume fazia a gente se sentir inebriado. Quantas vezes meu rosto seguiu seu caminhar, comandado pelo nariz terrivelmente possuído pelo teor aromático na medida certa daquela inquietante e provocante trintona! Quantas vezes, ao deitar, a lembrança desse perfume me atrasou o sono, trazendo-me à visão aquele semblante irrequieto e maduro, dançando ao som de música árabe, balançando as ancas como quem diz: “Estoy aqui, queriendote” – assim como a Shakira na mais arábica paixão. ...Quantas vezes o sono nem chegou, pois, o perfume tomara conta de meu ser e o meu desejo era de estar ao lado de Maria Ojeh, sentindo de perto este perfume em seu todo, me envolvendo com o seu poder afrodisíaco. Mas, dentre isto tudo, o que realmente me seduzia era o meu sentimento por ela. Decidi empenhar-me ao máximo em sua luta, e posso garantir que essa participação vinha de nossos encontros, nossos desejos contrários, os quais se decidiam por si próprios, sem muita discussão nem esforço da parte de nenhum dos dois; vinha seguramente, do nosso imensurável desejo em ficarmos juntos.
Meus pais, já amadurecidos pelo correr do tempo, não puderam compreender o meu envolvimento com um caso, o qual não me dizia respeito. Achavam muito melhor eu me preocupar mais com a loja de calçados que ainda não havia instalado há muito tempo e que aos poucos ia criando sua freguesia. Mas, no fundo eles sentiam perfeitamente tudo o que passava em meu ser, para meu procedimento ser dessa maneira. Eu sei, porque meu pai um dia falou, quando Maria Ojeh e eu nos preparávamos para a primeira tentativa, sendo que ainda nada sentia por ela:
- Meu filho, o destino usa armadilhas infalíveis para formar o quebra-cabeça de nossas vidas. Veja, por exemplo, que você está fazendo uma coisa sem objetivos aparentes, mas o que o eu o interior pensa e realiza, deve-se deixar fazê-lo: pode ser que aí está a chave de uma nova porta no labirinto do amor. Você ama, mas só saberá no dia em que abrir esta porta. Vá com Deus!
Fiquei remoendo estas frases durante vários dias, mas sua compreensão tornava-se impossível: era além das experiências e sentimentos de uma vida pouco madura como a minha. Agora, com o correr do tempo, tudo foi esclarecido. “Nada como o tempo para ensinar a viver corretamente e sem mancadas”, Pensei feliz. “Enquanto não houver raciocínio não haverá compreensão”.
Isso já aprendi desde cedo e acredito que este seja o motivo mais forte a fazer as pessoas repensarem diversas vezes as atitudes a serem seguidas.



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Maria Ojeh e eu marcáramos encontro em minha casa, pois lá poderíamos estudar nossa segunda tentativa com mais afinco. Quando ela chegou, eu já havia estudado o que combináramos em todos os detalhes: seria Lourdes, a esposa de seu irmão, que entraria em cena. Não era muito fácil de se imaginar o que ela poderia fazer para desempedrar os Sandfisch. Usaríamos como pretexto a ofensiva dos Kasir, ou seja, de que eles resolveriam acabar com as suas insinuações e seus preconceitos, caso os Sandfisch tomassem a iniciativa, dando a entender que é muito mais fácil e feliz uma vida, uma atmosfera de paz total, com amizade. Esta dedução só no pensamento e entre nossas conversas seria de resultados indubitavelmente positivos. Críamos nesta idéia, sobrando uma única possibilidade: daria certo! Como era o gênio e o caráter dos Sandfisch? Isso me atordoava e o confessei para Maria Ojeh:
- Do nosso ponto-de-vista, do jeito como bolamos tudo, esta reconciliação já deu certo, Maria. Mas, diga-me uma coisa: você sabe como é o temperamento dos familiares de Lourdes?
- Querido, honestamente não faço idéia!
- Mas, não tem nenhuma pista?
- Bem, isto talvez tenha... deixa eu pensar...
- Tenta pensar algo...
- Bom, Édson, se tomarmos pelo jeito e pelo comportamento de Lourdes, da maneira como ela me recebe e trata, mesmo eu sendo filha do Abdala, só posso concluir que é gente muito boa! E, sendo ela assim receptiva, devo concluir que seus pais também sejam assim.
- É, Maria, bela conclusão!
- O problema é meu pai: não tem jeito de  mudar por conta porque em seu sangue circula o calor do deserto. Ele está no clima errado: aqui, quando faz frio, ele precisa arranjar outros meios para se aquecer. Os Sandfisch são um bom motivo para isto.
Rimos da conclusão dela, nos abraçamos, despedimo-nos de meus pais e fomos à casa de Célio e Lourdes. No caminho, Maria perguntou-me umas três ou quatro vezes o motivo de minha quietude total. Não respondi, mas vinha pensando numa conversa infalível, que levasse a esposa de Célio a crer que era extremamente necessário um diálogo com seus pais, para instigá-los a se apaziguarem com os familiares de Célio. Um dos melhores motivos que encontrei foi a filha deles; seria bastante ilógico os Sandfisch não aceitarem Aragelda como parte de sua família. Afinal, pensei que considerariam ao menos o fato de ela ser sangue de seu próprio sangue.
Era injusto que aquele serzinho, aquele anjo crescesse no meio de discórdia entre seus avós.



                **********


Estava escuro, um perfeito breu aquela noite. Algumas corujas se manifestavam com suas xingas em árvores ali próximas e sua ladainha era completada com o sibilar agudo dos morcegos em revoado sobre nossas cabeças. Maria Ojeh, caminhava grudadinha em mim, com seu braço enganchado em meu, mostrando certo temor da noite. Mas, minha companhia deixava ela tranquila.
Diante da casa de Célio brilhava uma lâmpada incandescente, a qual cintilava ofuscando nossos olhos, já acostumados com aquele negror fechado, sinistro, envolvente.
Nós dois, com as pupilas dilatadas da escuridão, custamos a fitar diretamente aquela luz que parecia um sol perdido na noite.
Faltando uns vinte metros para chegarmos até a entrada da casa do irmão de Maria, ela me fez parar. Me abraçou ternamente, e enquanto eu sentia seu doce envolver e seu perfume inebriante, ela falou:
- Édson, quero que saiba que ninguém nunca fez tanto por mim. Estou encantada com você.
- Ora, Maria, amigos são para estas coisas...
- Amigos? – Atalhou ela.
- Sim, amigos! Ou, algo mais?
- Amigos? – Tornou ela a dizer, olhando agora em meus olhos. Eu, já havia decidido aprofundar meus laços com ela, afinal, Maria me prendia, me cativava, me deixava fora do ar. Com o olhar fitando o dela, disse:
- Maria, vamos falar sério. Até agora, não decidimos sobre este nosso namoro-de-brincadeira se ele é verdadeiro ou não. Quero por um fim nesta situação. Então, decidi que...
Seus olhos se enxeram de água neste instante denotando ela temer levar o fora. Abracei-a com mais intensidade e disse:
- Quer namorar comigo, de verdade?
- Se quero? ...Ora, Édson, como eu quero!!!
Em seguida nos beijamos com toda a intensidade, beijo este que demorou a findar. Beijo de língua, cúmplice, comprometeder. Finalmente, abraçados, entramos no pátio da casa de Célio. A escada de madeira, bastante forte, que dava acesso à porta de entrada da casa, denotava alguns reparos provisórios, feito com ligeireza e falta de aptidão: a maioria dos pregos estava desalinhada, com as cabeças tortas. O nível, porém, com muita precisão havia sido calculado e medido. Experimentei o primeiro degrau para averiguar sua segurança... seguiu-se um ranger assustador na calmaria da escuridão. Maria Ojeh soltou qualquer interjeição de espanto e eu recuei por alguns instantes. Em seguida prendi a respiração e pisei firme. O mesmo ruído aconteceu, mas escalei firmemente a escada. Bati. Ouviu-se em consequência um ruído de passos arrastando os chinelos. Maria Ojeh, no pé da escada, me disse baixinho, quase sussurrando:
- É Célio!
- Como tem certeza? – Indaguei no mesmo tom de voz.
- Ele caminha assim desde que o conheço. – Completou ela. ...Mas ele não é preguiçoso como o seu caminhar.
Em seguida, abriram a porta. Apareceu-nos o semblante feliz e sorridente de Célio:
- Ora, ora, que surpresa agradável! Entrem! Está meio fresquinho aí fora e, ...Maria, cuidado com a escada! Está meio bamba, e,
...Craaac! 

O ruído deu-nos o sinal de que a escada quebrara. Maria caiu para trás ao se desequilibrar e eu, mesmo esticando a mão, não consegui segurá-la. No pequeno incidente, pude ver sua calcinha cor de mármore, reluzente aos reflexos da luz à frente da casa, pois sua saia levantou-se até a cintura. No instante, ao ver aquela cena, pensei no artista que tivesse desenhado com tanta habilidade aquela peça, a qual se assentava como se fizesse parte de si mesma: bem delineada, um topinho da mesma cor abaixo do umbigo e rendinhas perolizadas nas ancas. Cena inesquecível!
Voltando à realidade, ajudei-a a levantar-se. Ela bateu a poeira de seu pretinho básico e averiguou o  tamanho do estrago que o tombo lhe causara: o saldo ficou num arranhão superficial no joelho esquerdo e o dano moral de eu tê-la visto assim. Célio acudiu também, não sabendo o que fazer para reparar o acontecido. Porém, nós adotamos o fato como algo corriqueiro e não nos aprofundamos mais no assunto. Em minha mente só mais girava aquela visão marmorizada da anatomia de seus traços mais íntimos visivelmente detalhados. Contudo, este pensamento foi cortado com um sussurro indiscreto de Maria, no cantinho de meu ouvido:
- Não precisa ficar todo cheio de grau por ter visto o que uso embaixo do vestido!
- Não estou, Maria!
- Não? ...há, há, há, homens! Cai na real, Édson! Eu vi seu olhar!
- Ééé?
- É! E para nossa noite de núpcias tenho uma lingerie cor de vinho, a qual te deixará bem menos à vontade!
     - Ah, é? – Sussurrei de volta, tentando desconversar. – Mas eu gosto muito mais de branco... é irresistível!
    - O branco deixo para as garotinhas ingênuas, virgens, as quais estão saindo da puberdade. Nós precisamos de algo mais quente, mais maduro, mais atrevido e agressivo... – E, elevando a voz: - Me aguarde! ...Espere e verá! Vou surpreendê-lo... – e, sussurrando: - deixá-lo nocauteado!
    Esta sua conversa me deixou excitado. Para despistar, falei:
    - Como disse? ...quente?
    - Quente! Muito quente!
    - Mal posso esperar, Maria!
    - É, espero mesmo que não demore para merecer meus dotes e ... minha...
    - Ora, Maria, comporte-se! – Atalhei.
Célio se encontrava a dois metros atrás de nós revisando a escada. Enfim, fitou-nos durante o último cochicho, dizendo em seguida:
    - Cuidado com esta troca de intimidades... Dá para perceber que vocês dois estão começando a namorar de verdade... é sério?
    Maria só conseguiu engrolar:
     - Ahá!
    - Sério mesmo? – perguntou de novo Célio. Eu, como amigo dele, disse feliz:
    - Sim, Célio, pedi Maria em namoro na entrada de tua casa.
    - Que lindo! Eu aprovo de verdade, Édson. Sabe disto, afinal somos amigos há anos e para mim, ver Maria do lado de uma pessoa como você só pode me tornar feliz.
    - Eu também estou muito feliz. Nunca imaginei namorar um rapaz seis anos mais jovem que eu. Mas estou realizada, acredite!
- Então, que estamos fazendo aqui, fora de casa? Entremos! Vamos comemorar este acontecimento!
Aceitamos o convite, entrando na casa simples do casal. Lourdes nos acolheu calorosamente, com Aragelda em seus braços. Destrinchou uma enormidade de interjeições de sentimentos pelo ocorrido com Maria, porém dissemos estar já tudo em ordem. Célio se apressou em contar as novidades:
- Lourdes, sabia que Édson e Maria estão namorando de verdade?
- Não acredito! Que notícia boa, Célio! – Disse Lourdes esboçando um sorriso de contentamento.
- É! – disse eu. – Ela  me pegou na brincadeira e eu resolvi tornar isto um jogo sério.
- Bobo! – disse Maria Ojeh. – Sempre esteve afim de mim, só nunca o declarou, Édson.
Célio interveio:
- Maria, não seja tão senhora da situação porque Édson está repleto de fãs em nossa cidade. Ele resolveu namorar você porque realmente está afim de você.
- Menos, Célio, menos! – Disse Maria acabrunhada.
Todos riram. Até Aragelda que se encontrava nos braços de Lourdes riu sem saber o motivo. A doce garotinha estava linda; sorria para qualquer gesto ou expressão que se fazia. Fomos convidados para jantar, mas recusamos: já o havíamos feito em minha casa. Como é praxe, insistiram tanto, que acabamos aceitando um pedaço de bolo e uma xícara de café. Enquanto jantávamos, a conversa desenrolou-se normalmente, sem apartes especiais. Só eu ficava a rever a cena mármore do tombo de Maria na escada, e sua lingerie cor de vinho. Maria Ojeh mostrava-se novamente insegura, irrequieta. Pensei que ela estava querendo entrar logo no assunto pelo qual nos propomos a visitá-los, mas achei mais propício deixar para depois do jantar.
Após a refeição, Maria Ojeh e Lourdes foram lavar a louça e Célio e eu nos sentamos na sala, por sinal, deliciosamente decorada com coisas simples: algumas cadeiras, quadros, arranjos, vários livros – dentre os quais alguns com orelhas, denotando acentuado manuseio – e uma mesinha-de-centro de jacarandá, entalhada com figuras surreais. Tudo estava impecavelmente limpo, reluzente. Elogiei-os pela organização e o bom gosto dos enfeites e decidi entrar no assunto, já que Célio estava feliz com minhas detalhadas observações:
- Acredito que vocês estejam com bastante esperanças de solucionarmos os desentendimentos entre seus pais e os de Lourdes.
- É verdade! Você já imaginou o que será de Aragelda quando crescer? Para nós já é lastimável termos que visitar nosssos parentes em separado.
- Isto é muito chato!
- Claro! E não é nada justo. Acho que você concorda comigo: raça é raça, cor é cor, sangue é sangue, religião é religião, enfim, somos todos exatamente iguais, com exceção de pequeníssimos temperos.
- Perfeitamente! E penso que a melhor prova disso tudo é o seu casamento...
- Claro! – Respondeu Célio pensativo. – É lógico, muito lógico! Não há nada demais nem entre os meus, nem entre os de Lourdes; é puro orgulho! Nunca se conversaram de verdade. ...Maldito orgulho!
Célio levantou os olhos fitando-me com um brilho avassalador – Édson, é aí que nós precisamos entrar em combate: o orgulho! Isto mesmo, o orgulho! ...Afinal, ele não passa de excesso de amor próprio. Temos que fazer algo para abrir-lhes os olhos!
- É por isto que viemos aqui hoje, Célio! Precisamos da ajuda de Lourdes e,
- Lourdes? ...E eu? Não precisam de mim? ...Entenda Édson, eu também quero ajudar!
- Claro, entendo, e,
- Mas, eu vou ajudar vocês neste plano!
- Você irá ajudar também, Célio. Só que para o nosso próximo plano vamos precisar somente de Lourdes.
- E que plano será este?
- Olha, eu preferiria deixar o assunto para quando estivermos junto com nossas companheiras. O que acha? Assim, elas ajudarão a analisar o assunto e veremos como ficará melhor.
- Muito bem! Só que eu não consigo entender como eu não entro neste plano...
- É fácil! Vou lhe adiantar um pouco: tentaremos um afrouxamento por parte da família de Lourdes; como você não tem acesso lá, não tem como participar do plano.
- Já estou começando a decifrar o plano de vocês... mas, conte-me, por que não deu certo a investida na casa dos meus familiares?!?
- Ora, é simples. Há três motivos: primeiro, porque o seu pai é intransigente, um descendente árabe teimoso; segundo, porque você lhe causou um desgosto tão grande ao casar com Lourdes, que, mesmo tendo transcorrido mais de dois anos, ainda estão com a ferida aberta; terceiro, e este é o motivo mais forte, porque mexe direto com o brio deles: a tentativa de aproximá-los partiu de um estranho às famílias, no caso, eu. Seu pai jamais admitiria que um reencontro não partisse dele ou de seus adversários. Entendeu? E neste caso eles fazem questão de que a iniciativa parta dos adversários.
- Claro, Édson, você tem razão! Infelizmente meu pai sabe ser hostil como o deserto e determinado como um cavalo árabe.
- Bom, você deve conhecer melhor este lado do seu pai. Em contrapartida, sua mãe é muito mais compreensível e acredito que seja bem mais fácil trazê-la ao nosso lado.
- É, minha mãe é um pouco teimosa, mas quando ela percebe que a razão não é sua, ela se deixa levar. Já meu pai, se disser que a lua é verde, ele morre sem mudar de idéia.
- É, eu senti que sua mãe é mais maleável.
- Bom, o que posso dizer, Célio, é que tenho certeza que em breve teremos boas novidades em relação a este desentendimento sem sentido entre suas famílias.
- Que bom, Édson! Levo fé nisto também.
Nisso entraram as duas damas na sala e sentaram aos nossos lados. Lourdes já havia feito Aragelda dormir. Entrei logo no assunto do motivo de nossa visita:
- Lourdes, não sei se Maria já lhe adiantou algo. – Ela assentiu com a cabeça. – Mas, eu já conversei com Célio a respeito de um plano que temos em mente e achamos ser infalível para terminar com este problema entre as famílias de vocês. Precisamos unicamente da sua colaboração.
Ela não hesitou em dizer:
- Pode contar comigo! Estou disposta a fezer tudo o que for necessário para o bem de todos, principalmente de Aragelda. O que é necessário ser feito? Estou pronta!
Maria Ojeh animou-se com a determinação enfática da cunhada e entrou na conversa:
- Olha, é bem simples: nós pensamos que..., hã, nós queremos que... – Olhando para mim – Ora, Édson, fala você! Saberá explicar melhor!
E Célio:
- Hum, que suspense! Parece que estamos tentando uma sabotagem fantástica! ...Édson, acabe logo com estes suspense. Parece que estamos vendo um filme de terror!
- Bem, explico: Lourdes, nós bolamos um plano que envolverá você e seus familiares; é bem simples, mas você terá que representar o melhor que puder, senão voltaremos à estaca zero e ficará difícil efetuarmos mais uma investida.
- Bem, não sou atriz, mas se for o caso, darei o máximo de mim para ajudá-los a quebrar o gelo desses cabeça-duras.
Senti a empolgação de Lourdes em participar deste projeto e nitidamente deu para perceber que ela se empenharia ao máximo em fazer nossa idéia dar resultado. Falei:
- É bem simples. Prestem atenção: Lourdes, você irá este fim-de-semana com Aragelda visitar os seus familiares e dirá que Célio está com o firme propósito de visitá-los também. Dirá ainda, que vocês tão muito desgastados com os acontecimentos, com os desentendimentos entre as duas famílias e que, por causa disto, seu marido já sofreu e sofre muito. Mas, é importantíssimo você se mostrar tristonha, angustiada, sofrendo de fato! Deverá também, demonstrar o quanto vocês se amam; o quanto Célio faz por você e o que sua família significa para vocês, na harmonia do relacionamento e no engrandecimento de ambos. – Lembrei-me da incitação feita por Abdala Kasir durante nossa discussão na primeira tentativa e completei: - Você ainda poderá dizer que Abdala que encontrar-se com seus pais, mas que necessariamente, terá que ser na residência da família árabe. Nisto sinto um tanto de supremacia por parte dos Kasir. Mas já que eles assim o querem, tentemos assim fazê-lo.
Lourdes sorriu e falou radiante:
- Isto para mim não será representação; é a vida real que estarei demonstrando, só que nunca toquei neste assunto com meus pais, ou quando eu queria me referir a respeito, eles sempre diziam que eu tentasse ser feliz por meus próprios meios que que minha felicidade era a felicidade deles. Depois que casamos, nunca mais tocamos no assunto. O tempo passou e a gente acabou se acomodando neste esquema sem ninguém tomar a iniciativa. Eles só me perguntam e perguntavam se eu me sentia feliz com minha nova vida e eu dizia a verdade: “Sim, sou muito feliz com meu casamento. O Célio me faz muito bem!” E, para eles sempre bastou qe eu me sentisse bem. Mas, Édson, sua idéia é fantástica! Aliás, desculpe, Maria, eu quis dizer que a idéia de vocês dois é muito boa e vai dar certo. Minha mãe é incrível e não se oporá em receber Célio para uma visita. Até agora só faltou alguém tomar a iniciativa e isto vai acontecer. Além do mais os atritos nos últimos tempos andam bem mais amenos do que foram em outras épocas.
Admirei o desembaraço de Lourdes. Maria estava a me olhar com aqueles olhos grandes, negros, sensibilizada com tudo o que estávamos conversando. Olhei para ela e me levantei:
- Bem, era isto que esperávamos. Segunda-feira de noite passaremos aqui para ver no que deu esta tentativa.
Não fiquei muito tempo em pé, porque Célio não permitiu que saíssemos sem ao menos falarmos um pouco sobre os negócios. Ele possuía uma esplêndida criação de frangos e uma boa área de terra em cultivo. Mesmo eu sendo amigo dele há muito tempo, nunca havíamos parado para falarmos a fundo de nosso trabalho e nossas profissões. As mulheres entreteram-se em conversar sobre os afazeres domésticos, roupas e debulharam uns bons minutos conversando sobre tricô e crochê. O chá rodou pela sala várias vezes, com seu aroma sutil invadindo nossas narinas.
    Pensado que havíamos conversado o bastante – passava das vinte e três horas – mais uma vez levantei e mais uma vez minhas tentativas, meus apelos e justificativas não conseguiram combater a hospitalidade do casal. É certo que a conversa seduzia a ponto de passarmos a noite em claro. Porém, eu só pensava que amanheceria um sábado e este sempre era um dia de muito movimento em minha loja de sapatos. Tinha que estar em forma. Para Célio era fácil, pois não tinha hora para levantar. Mas, no meu caso, os fregueses me obrigavam a estar a postos as sete e meia da manhã. E na casa tão hospitaleira, onde o tempo passava voando, todos pareciam não estar percebendo a minha relutância em continuar dialogando. Meu interior me castigava exigindo com que não lhe roubasse as poucas horas de sono que o separavam de mais um dia laborioso; em contra-ataque, minha boa vontade, o querer satisfazer e a sede de aprender um pouco mais sobre o dia-a-dia de um criador de frangos e suas rotinas, e o simples fato de estar agradando, fizeram meu interior se calar. Lourdes foi mais uma vez à cozinha, a fim de trazer mais um bule de chá. Maria acompanhou-a com a grata satisfação em poder ajudá-la a nos servir. Célio não esperou em fazer uma observação a respeito:
    - Veja, Édson, como as duas se dão bem! Se não conseguirmos realizar nossos objetivos, estou crente que nas gerações futuras dos “poderosos” Kasir e dos “pavios-curtos” Sandfisch, a paz pouco a pouco será alcançada, através das misturas entre as duas raças.
    - Não podemos esquecer, Célio, de que você é o pioneiro nesta história. Podemos notar que o resultado destas uniões está perfeitamente delineado nos traços de Aragelda, que é uma florzinha especial: o princípio da reconciliação! Você foi cem por cento notável casando com Lourdes, Célio.
    - E eu as adoro. Mas você também foi cem por cento notável começando a namorar minha irmã. A Maria sempre teve uma queda especial por você e,...
    - E eu sempre tive uma queda especial por ela. Eu temia que ela não me aceitaria em namoro porque ela é oito anos mais velha do que eu. Mas, que bom, isto não foi problema e eu estou realmente encantado com ela. A Maria é tudo de bom!
    - A Maria é como um ninho de passarinho: parece rude, mas aconchega a todos e quer a todos bem.
    - Vou confessar uma coisa a você Célio. Mas espero que fique entre nós.
    - Pode confiar!
    - Quando eu era ainda criança, tinha uns nove ou dez anos e ela já era adolescente, ela me deslumbrava com aquele cabelo negro, espesso... Eu também me encantava com aquela pele escura, bronzeada, ...aquele rosto divino, irriquieto e descansado... aquele olhar... É, o olhar de Maria é fulminante! Ela enxerga a alma da gente!
    - Poxa, Édson, você está apaixonado mesmo!
    - Claro que estou. É um amor que nasceu na minha infância.



                **************



    Na cozinha desenrolava-se uma conversa idêntica:
    - Lourdes, você não acha que é completamente injusto e errado nossos pais se odiarem desta maneira?
    - Ora, é óbvio, Maria, que é completamente injusto! Eu não apóio nem um pouquinho; melhor, não apóio nada!
    - Pois é, cunhada! Eu nunca consegui me dar mal com ninguém... Mas, garanto que uma grande vantagem este rolo todo está me trazendo...
    - Édson?
    - É claro! Graças a nossa luta para acabarmos com este mal-entendido entre nossas famílias, finalmente consegui que ele se aproximasse de mim. Acho que ele sentia um pouco de ressentimento pela nossa diferença de idades, mas, o que é esta diferença quando estivermos na meia-idade? ...nada! Ele tem vinte e quatro anos, cabeça de trinta e eu, tenho trinta e dois anos e cabeça de vinte. Só pode dar certo, há há.
    - Vai dar.
    - É! E agora que o agarrei com unhas e dentes, não vai ser tão fácil alguém tirá-lo de mim.
    - Sabe, Maria, eu já havia notado há mais tempo que você tinha uma quedinha pelo Édson.
    - Quedinha?
    - Não! Uma queda significativa! Só ele não notava...
    - Mas agora eu fiz ele notar e ele não vai esquecer. ...E por falar em queda, estou com um ódio sem tamanho da cena que passei hoje na entrada de sua casa. ...Ai que chato, ele viu minha calcinha, mostrei tudo, caí de pernas abertas.
    - Isso acontece.
    - Mas ele olhou para ver mesmo! ...Como os homens são tarados! Qualquer chance que tem, já aproveitam e metem a cara para ver tudo, nos mínimos detalhes.
    - Não dê bola para isto, Maria!
    - Fiquei toda sem jeito, tentei remendar com frases provocantes e a emenda saiu pior.
    - Maria, o Célio me viu pelada tomando banho no arroio, quando nos conhecemos. E o danado ficou bem taradinho... Nunca havia visto uma mulher tão branca como eu, hehe.
    - Éééé? Eu não sabia! Mas, me conta, como isto aconteceu?
    - Ora, você sabe que tem aquele arroio nos fundos da casa dos meus pais, e no outro lado do arroio os rapazes geralmente vão caçar. Então, um dia, eu fui tomar banho no arroio, estava muito quente, e ele estava caçando e me viu. Na hora me afundei na água, mas como ela é muito limpa, transparente, ele viu tudo! Ainda pediu desculpas e saiu dali acabrunhado. ...Mas, do jeito como ele depois pulou e correu, vi que ele havia ganhado um troféu.
    - Eu não acredito que meu irmão fez isto! Nunca me contou nada sobre este episódio.
    - Não, ele não contou para ninguém. Eu me vesti e corri atrás dele pedindo para ele não falar sobre o incidente. ...Então foia primeira vez que nos olhamos nos olhos e o amor nasceu...
    - Uau, que lindo! Mas isto não tira deles a fama de tarados.
     - ...Também Maria, se não fossem tarados, muitas coisas da vida perderiam a graça, como... pintar as unhas, usar roupas provocantes... um perfume especial, um olhar, ...enfim, você sabe as armas que utilizamos. ...Não dê bola para o que aconteceu.
    - Ah, é? Mas ainda estou envergonhada. Lourdes, meu vestido levantou até a cintura! Mostrei-me toda, tudo, e vi o olhar de provocação que ele lançou primeiro no meio de minhas pernas, depois para meu rosto.
    - O que tem, Maria? Com certeza não é a primeira calcinha vestida que ele viu em toda a sua vida.
    - Mas em mim foi a primeira vez! Bom, ...acho que até foi bom. Assim ele viu que mesmo sendo descendente de árabes, sou uma mulher normal.
    - Há, há, há, gostei da piada. ...Mas, me conta, Maria, o que atrai a você no Édson?
    - Tudo Lourdes, tudo. Ele é tudo de bom. A começar pelo seu jeito carinhoso de tratar todas as pessoas, pelo seu sorriso sempre estampado no rosto, por querer sempre ajudar, pelo seu modo especial como me trata... Ele me ama, sabia? ...me sinto uma rainha quando estou com ele. ...Enfim, porque ele não repara nos meus muitos defeitos.
    - Não exagera, Maria. Você não tem defeitos.
    - Bom, talvez meu maior defeito seja querer acreditar em todas as pessoas e achar que o mundo pode se transformar num enorme paraíso de pessoas bacanas e amigas.
    - Com certeza é este o seu maior defeito. E é por isto que adoro sua amizade e prezo por ela.
    As duas se abraçaram calorosamente. Depois, Maria falou:
    - Obrigada, Lourdes! Também prezo nossa amizade. Mas, falando em amizades, lembra que o seu avô me emprestou uma vez, com o maior carinho, uma Bíblia escrita em alemão gótico, a qual foi necessária para uma gincana da escola?
    - Claro que me lembro! Naquela ocasião, foi Célio quem me perguntou se tínhamos uma Bíblia assim, e eu respondi prontamente que sim. ...Áh! – Olhando para o forro com um sorriso semi-aflorado – foi aí que nos apaixonamos!
    - Mesmo?
    - Sim! Sempre achei o Célio um cara diferente, aquela pele escura e aquele olhar inteligente...
    - Como é bacana relembrar isto, não Lourdes?
    - Sim, é uma nostalgia muito gostosa de sentir.
    - Falando em nostalgia, sabe o que o Arnus me disse quando entregou a Bíblia para mim?
    - Ah, o meu querido avozinho tem sempre alguns conselhos para dar. O que foi que ele disse, “minha filha”?
    - “Minha filha”! Foi bem assim que ele começou: “Se você, minha filha, soubesse um pouquinho do que está escrito aqui dentro, já teríamos feito as pazes há muito tempo com vocês”.
    - E o que você respondeu?
    - Respondi que ia tentar fazer alguma coisa pela paz entre as famílias e seus relacionamentos. E aquilo me marcou. Eu sempre pensava nesta afirmação que fizera para o seu avô, e mesmo não sendo promessa, resolvi que tentaria de tudo para novamente aproximar as duas famílias.
    - É o que estamos fazendo.
    - É! E tomara que dê certo!
    - Vai ter de dar certo!
    - Vai!
    Terminado o chá, Lourdes convidou:
    - Maria Ojeh, traga o açúcar, sim? Nossos amados devem estar com a garganta seca de tantos planos que elaboraram. Vamos levar este chá até eles.
    Lourdes pegou o bule com quatro xícaras sobre uma bandeja e foi para a sala. Maria Ojeh a seguiu. Entrementes, o velho relógio na parede ecoou lúgubre, ao mesmo tempo melódico, doze vezes em sua espiral metálica. As batidas me trouxeram de volta à realidade, à amarga certeza de que o repouso era por demais necessário. Veio-me à tona também, que após tudo o que pré-planejáramos e conversamos, dormiria tranquilo, pois nossos planos eram puros e sinceros. Haveria de tudo dar certo.
    Depois de muitas palavras e retoques nos planos para o reatamento entre as famílias, Maria Ojeh e eu nos levantamos e não sentamos mais. Nos despedimos e fomos para a casa entre latidos de cães denotadamente nervosos.
    Após um longo banho, com bastante água morna, coloquei um roupão e fui deitar. O sono porém, não conciliava. Coloquei um CD do Waikiki Minstrels e fui à cozinha pegar uma cerveja na geladeira. Ao retornar, aquela música havaiana envolvente e melódica, trouxe para bem perto de mim a imagem de Maria. Ela era uma mulher madura, mais velha do que eu e, junto a qual me sentia arrebatado de todas as vontades próprias. Em seguida, minha mente redesenhou a cena dela caída, completamente desajeitada em frente à casa do irmão. “Lingerie cor de vinho para as núpcias! ...Que provocação!” ...E logo já surgiu no pensamento o quadro dela fazendo meneios a minha frente com uma lingerie desta cor, e seu pescoço adornado com um colar de flores como as havaianas. Em seguida, sua silhueta em tom de pele escura, fazia contraste com a intimidade cor de mármore exibida involuntariamente naquele início de noite, em sua queda... Um ritmo mais acelerado entrou na música: agora era uma marimba em harmonia com uma guitarra havaiana a me levar para a orla marítima de uma praia paradisíaca. Novamente Maria estava junto a mim, gesticulando como de costume, e o sol, atrás dela, projetava uma silhueta tentadora mostrando todas as suas curvas através de um vestido solto de seda branco que a cobria. Aliás, tão tentadora como na realidade ela era. Suas ancas apareciam por entre o tecido semi-transparente de seu vestido, e denotadamente aparecia sua lingerie vinho me esperando. E eu fui possuído por esta cena, por esta melodia, por este momento... Na verdade, larguei o copo de cerveja e na imaginação, entrei com ela no mar. Eu, de roupa e tudo. Ela, com aquele vestido transparente na silhueta da luz do sol poente, o qual ia sendo tomado pelas ondinhas do mar, deixando mais ainda a mostra suas curvas. Adormeci com o som ligado, a luz também e o copo de cerveja pela metade e a garrafa pela metade. Só desliguei tudo ao acordar de manhã.



                   **************



    Lourdes entrou no pátio muito bem cuidado de seus pais, indecisa, ao mesmo tempo ciente de sua responsabilidade: tudo estava, a partir daquele momento por sua conta. Apesar de seus pais parecerem mais compreensivos, tudo dependia do seu modo de apresentar sua situação real, a fim de comovê-los e fazerem entender da necessidade de uma reconciliação.
    Seu pai, de olhar inteligente, ostentando um bigode semi-grisalho, mostrava-se sempre disposto a ouvir e tentar acertar o bem-comum de seus familiares. E justamente naquele domingo ele se encontrava sobremaneira feliz: havia comercializado toda a sua safra de milho. No encontro, Lourdes expôs todos os nossos pensamentos e anseios. Ele a ouviu quieto, sem esboçar qualquer reação de apoio ou desabono, simplesmente a ouviu. E quanto mais atenção ele prestava, mais ela se aprofundava no assunto, trazendo à tona nossas idéias e nossa vontade comum em acabar com estes desacertos entre eles e os Kasir. Aliás, em seu pensamento, no de Lourdes, ela já achava que seu pai ouvira tudo para no fim, concordar com todos os nossos propósitos e nossa vontade em resolver o problema.
    Ponderado como sempre, seguiu toda a tarde de domingo sem esboçar qualquer reação contraditória ou abonativa ao que Lourdes falara.
    Quase no fim da tarde, finalmente resolveu falar:
    - Minha filha, é impossível tentarmos resumir em um único encontro todos os motivos que nos levaram ao conflito com os Kasir desde as primeiras gerações. Mas, podemos tentar esta aproximação, sim. Porém, os Kasir, com toda a sua petulância, que parem de se julgar os donos absolutos deste lugar; afinal, aqui o sol não os cobre mais que a todos os outros. Também, num encontro destes, ninguém irá se rebaixar ou descer aos pés de ninguém. Seremos simplesmente seres racionais tentando chegar a um acordo amigável com futuro duradouro. Apoiamos sua iniciativa, filha!
    Por esta explanação sólida e madura de Marcus Sandfisch, pude concluir que aquele homem possuía um caráter inabalável, ostensivo, que fechava com seus propósitos. Não era chato ouvir Lourdes falando dos seus: suas angústias, alegrias, lutas e conquistas, enfim, ouvi-la falar da vida de sua família. Não me cabia imaginar onde ou quando, ou talvez, até como fora possível criar-se tamanha muralha entre as duas raças a ponto de se detestarem, já que ambas as partes eram formadas por pessoas corretas, inteligentes, prósperas e de bem.
    Mas, vamos às especulações sobre o motivo de tamanha discórdia entre os Sandfisch e os Kasir...
    Era corrente na cidade a conversa de que há muitos anos, em torno de 1930, quando os ascendentes dos Kasir vieram morar aqui para abrir uma casa comercial, trouxeram junto sua mudança, tecidos para iniciarem o negócio e seus filhos. Aliás, seus compatriotas já possuíam uma rede de comércio de tecidos em Porto Alegre. Dentre os filhos, um deles era prodigioso: inteligente e esperto, ele era o orgulho da família. Seu nome era Samir e na época beirava os doze anos de idade. Logo quando se estabeleceram aqui, Samir fez amizade com o filho de Herbert Sandfisch, de nome Klaus, qye era uns meses mais velho que Samir. Os dois foram muito unidos e ocupavam todo o seu tempo livre entre caçadas com funda, brincadeiras no meio das plantações e caminhadas no desbravamento da região. Apesar de morarem quase um quilômetro distante um do outro, tiveram uma amizade sólida, mesmo sendo crianças, e as famílias se orgulhavam desse relacionamento.
    Klaus era um garoto iluminado. Seu comportamento era o de um ser adulto e seu desempenho na escola e na ajuda a sua família espelhavam estas suas particularidades. Tinha uma habilidade manual invejável, e desde pequeno fazia esculturas em madeira e pinturas.
    Mas, a fatalidade ceifou a vida de ambos com esta tenra idade, quando se afogaram num banho no rio Caí. Foi uma tragédia sem igual  e o luto tomou conta de ambas as famílias durante meses.
    Aos olhos de todos da comunidade, acreditava-se que havia acontecido o normal: dois moleques irriquietos, numa tarde de verão, o sol a pino, calor, e a vontade em se refrescarem. O normal: um garoto convidou o outro para irem até o rio Caí, se banharem e abrandarem seu calor. Independentemente de quem tivesse partido o convite, é o tipo de situação normal que acontece frequentemente e os pais muitas vezes nem se dão conta de que seus filhos estão no rio tomando banho. E, apesar de ele não ser perigoso em sua maior parte, para quem não o conhece tem alguns pontos cruciais que podem se tornar perigosas armadilhas.
    Quando, aos poucos, eles foram se recompondo, talvez devido a grande perda, as famílias enlutadas tentaram encontrar culpados para esta fatalidade. Então, os Kasir acusaram os Sandfisch dizendo que Klaus havia induzido Samir a acompanhá-lo até o rio para se banharem. Ao mesmo tempo, os Sandfisch se defendiam dizendo que provavelmente Klaus havia sido induzido por Samir a acompanhá-lo até o rio. Como os pretensos culpados também foram as vítimas, surgiu entre as famílias um clima acusativo, o qual evoluiu para um desentendimento formal, deixando-os afastados e acirrados.
    Inclusive, no túmulo de Samir tem uma inscrição em letra árabe, onde diz: “Aqui jaz um ser pequenino e indefeso que foi levado para o seu destino contra a sua vontade.”
    E, apesar de anos terem se passado, este assombroso acontecimento ainda mantinha as famílias afastadas e inimigas. E, pelo que conta a história, nenhuma das famílias foi a culpada por iniciarem as desavenças. Na realidades, estavam se acusando de algo do qual não havia motivo de acusação. Crianças criam situações diferentes, e quando acontece uma fatalidade, ninguém tem a culpa. Mas eles, mesmo setenta e cinco anos depois, ainda tentavam encontrar culpados.

                    ************



    Maria Ojeh e eu fizemos a nossa parte. Comunicamos os Kasir do desejo dos Sandfisch em manterem um encontro amigável com eles em duas semanas. Ainda dizemos que os Sandfisch gostariam de se encontrar com toda a prole, assim como todos os Sandfisch se fariam presentes.
    Isto aconteceu num domingo de tarde chuvoso, onde Abdala Kasir ouviu nosso propósito e logo após, esboçou um olhar demoníaco, amedrontando Maria Ojeh. Ela, que tanto confiava na segurança de seu pai, no equilíbrio de sua mãe, agora balançava mais que pinguela de arroio. Mas eu, como sempre, do seu lado, segurei firmemente suas mãos de dedos finos, compridos e de unhas feitas com um capricho incomparável, esmalte vermelho, alisando-as, dando segurança. Finalmente, o olhar de Abdala mudou para interrogativo, ao que Maria disse:
    - Estamos dispostos a levar este encontro até o fim e ver estes desentendimentos terminarem de uma vez por todas.
    Os olhos de Abdala começaram a reluzir. Senti que suas intenções não eram muito puras, nem meramente altruísticas, porém, nada corteses. Mas, já que houvera a proposição de Marcus, com intenções completamente antagônicas  às de Abdala, confirmamos o encontro...



                ************



    Na casa de Célio preparamos nossos espíritos para qualquer ofensiva que pudesse ocorrer, a qual provavelmente partiria dos Kasir. Nossa atmosfera mostrava-se completamente frenética, entusiasmada e ao mesmo tempo angustiante: tudo poderia acontecer... até mortes poderiam resultar de tal encontro! Agora estávamos começando a ficar amedrontados ao cogitarmos este último detalhe...
    Mas, por tudo o que eu havia levantado, o velho Kasir transmitia a sensação de poder, mas no seu íntimo dava a impressão de ser muito dócil.
    Minha trintona parara de roer as unhasa: agora as corroía, carcomia, aprarecendo o encontro da pele com elas. Logo ela, que tinha unhas impecalvemente feitas. Eu, só de olhar, sentia agulhaços espetando a ponta de todos os dedos. Nada como expectativas inimagináveils com probabilidades de resultados dos mais variados.
    Houve horas de terríveis arrependimentos por parte dos que engendraram o plano, ou melhor, NÓS, nestas duas semanas seculares.
    A pessoa a demonstrar mais serenidade era Lourdes, pois confiava em seus familiares e imaginava perfeitamente o que seu pai poderia ou não fazer. Ele era comedido em seus atos, cauteloso as vezes, até por demais.
    Nos encontrávamos regularmente todas as noites, ora na casa de Célio, ora na minha. A escada em frente a sua casa já havia sido  trocada e meu desejo em ver a reprise da cena de Maria Ojeh, caindo, esboçando sua intimidade estampada na calcinha cor de mármore não ocorreria mais. Nos encontros nós discutíamos, prevíamos, calculávamos. O nervosismo era geral em todos os encontros. Parecíamos estudantes a ponto de enfrentarem um vestibular muito concorrido.
    A mim, o que realmente me prendia a todo este caldeirão era Maria Ojeh, aquela trintona especial, de cabelos negros, olhos negros e perfume inebriante. A esta altura já amava ela e não era difícil ver este sentimento em mim pois, agia como se fosse um cachorrinho em suas mãos.
    Faltando três dias para o encontro se realizar, ou seja, uma quinta-feira, Maria Ojeh falou-nos de suas dificuldades em conciliar com o sono. Acudíamos em suas preocupações realmente de dimensões exageradas. Porém, o sexo feminino possui um sexto, ou talvez, um oitavo sentido que nunca falha, o qual preconiza alguma consequencia boa ou desalentosa. É uma intuição única das mulheres,  a qual podemos até considerar como dom. Como nós, os homens, não possuímos esta arma maravilhosa, somos iconsequentes nos detalhes; preocupamo-nos com o todo e não com as partes.
    Os dias que foram caminhando até o sábado foram por demais marcantes em nós. Até Célio e eu, que estávamos confiantes quanto ao resultado do nosso encontro, ou melhor, quanto ao encontro das duas famílias, estávamos nervosos e denotávamos isto em nosso comportamento. Célio conhecia bem seu pai e sabia de tudo o que ele poderia criar neste encontro para acirrar com maior intensidade as intrigas entre as famílias.
    Mas, eu e Lourdes estávamos confiantes num resultado positivo neste encontro e não compartilhávamos com os anseios dos dois irmãos.
    O sábado raiou e o céu não se mostrou nada cordial com a humanidade, pois nuvens pretas se espalhavam em toda a sua extensão, feito uma colônia de mofo sobre uma laranja podre.
Meus pensamentos, nada concretos, eram turvos como o céu, que pouco a pouco, principiou a desmanchar-se em pingos, aumentando para goteiras e terminando em torrente de água.
    Minha manhã transcorreu normalmente na minha loja e as pessoas que foram atendidas não notaram meu drama interior. Perto do meio-dia, passou lá a Maria Ojeh, linda e vistosa como sempre, de cabelos molhados como quem saíra do banho, inebriando o recinto com seu perfume inconfundível.
    Passou lá para dizer que estava querendo desistir do encontro das famílias pois temia a reação de seu pai. Eu, mesmo compartilhando interiormente com o seu pensamento, respondi:
    - Maria, o mais difícil nós conseguimos, que foi induzir os pais de Lourdes a visitarem seus pais e fazer seus pais aceitar a visita deles. Vamos ver no que vai dar...
    - Pois é justamente ali que reside meu medo: no que vai dar! Pode dar mortes! Eles nunca se falaram pessoalmente. Como acha que vai ser a reação deles quando se verem frente-à-frente?
    - Normal, Maria, normal! Eles são pessoas de bem e devem estar tão ansiosos por este encontro tanto quanto nós estamos nervosos.
    - A responsabilidade é nossa. Fomos nós que provocamos este acontecimento.
    - E é por isto que não vamos deixar acontecer nada.
    - Que bom ter você ao meu lado, Édson. Me sinto bem mais segura.
    Saí por detrás do balcão, tomei-a em meus braços e nos abraçamos com muito carinho. Em seguida a beijei na testa e disse:
    - Vamos almoçar no centro?
    - Não! – Respondeu ela. – Preciso ir até na casa de meus pais, eles me esperam para almoçar. À noite a gente se encontra na casa de Célio.
    - Certo, Maria. A encontro às vinte horas lá.
    Um abraço, um beijo e ela se foi. Acompanhei seu caminhar gingado, sensual, até perdê-la de vista.



                *************



    À noite, regado a pizzas e cerveja, nosso encontro não poderia ter sido mais nervoso, excitante e temeroso na casa de Lourdes e Célio. Estávamos todos muito nervosos. Ainda mais com as últimas informações que Maria trouxera da casa de seus pais. Quando indagada por mim sobre o almoço com sua família, ela respondeu:
    - Foi muito estranho. Todos serviram as refeições em silêncio, ninguém falou nada, só se ouvia o respirar arquejante de meu pai. Minha mãe nem sequer o olhar a mim dirigiu. Tudo o que ela falou comigo foi: “Deixa que eu lavo a louça”. Estou apavorada!
    Célio incendiou ainda mais nossa temerosidade:
    - Mas como, Maria. Nossos pais não são assim! Principalmente minha mãe sempre tem palavras e assuntos para nos dirigir... Ela nem sequer perguntou sobre o seu namorado?
    - Não. Como eu vi o clima pesado por lá, vim embora assim que almocei. Até a comida estava insossa, sem graça.
    O remorso começou a tomar conta de mim lentamente, afinal, fora eu um dos maiores incentivadores para que este encontro acontecesse. Mas, agora a sorte estava lançada e não tinha mais nada para ser feito. O encontro iria acontecer e depois veríamos o prejuízo causado pelo nosso ato. Abaixo do teto que nos abrigava da chuva que caía sem parar, Maria Ojeh mais uma vez transmitiu seus receios e ansiedades preconitivas. Cheguei a concluir que ela estava fazendo o bicho maior do que era. Afinal, quem sempre prega ser de bem, jamais um dia será do mal. E era a noite e a tarde do último dia...
    Levei Maria até o seu apartamentinho no centro. Subimos. Ficamos namorando naquele quarto copiado das mil e uma noites até às duas da manhã e eu, por mim, atravessaria aquela noite nos braços cor-de-cobre daquela mulher sensual, entre tapetes, cortinas, afagos, tesão e o arfar provocante daquela trintona irriquieta. Estávamos os dois sem sono. Mas, eu sabia que minha mãe não dormiria enquanto eu não chegasse em casa e contasse a ela como estava sendo o preparo deste encontro memorável.
    Assim aconteceu. Maria já estava mais calma, eu havia falado muito a respeito do lado do bem das pessoas envolvidas e fui embora. Fui, com o nariz inebriado do gostoso perfume, intenso e discreto, que pairava no apartamentinho dela.
    Quando cheguei em casa ainda tive que contar para a minha mãe como estava tudo delineado para o dia seguinte, ou melhor, para aquele dia na casa da família Kasir.



                *************



    Domingo de manhã. Na casa de Abdala e Ilena Ojeh Kasir, encontravam-se além dos dois, filhos, netos irmãos, enfim, uma prole rica e fecunda que fora convidada para participar do encontro memorável. A algazarra no pátio era grande com crianças correndo e brincando por todos os lados. Apesar da chuva intermitente de sábado, o domingo se mostrava ensolarado e o pátio já se encontrava bastante seco.
    Quando Maria Ojeh e eu chegamos na casa dos Kasir e tentamos entrar, Abdala nos barrou, negando sua hospitalidade, trazendo à tona os receios de Maria. Disse-nos que, com toda a certeza, se viessem Marcus e seus familiares, estaríamos melhor colocados no meio deles. Seu temor era de que se surgisse alguma discussão, nós tomaríamos partido para o lado dos Sandfisch, mesmo estando em sua casa. Eu compreendera logo este detalhe, mas minha doce trintona não. Ela estava nervosa por demais: tremia de alto a baixo e nem meu pulso forte a segurá-la a livrou de seu tremor. À saída do portão da casa de seus pais, ela me falou:
    - Édson, meu pai hoje não está em condições de receber os familiares de Lourdes. Ele está completamente transtornado! Acho que ele tomou alguma coisa, e...
    - Bobagem, Maria! Ele também deve estar nervoso, assim como nós. Não julgue seu pai com tanta brabeza! Afina Lourdes, com a magnanimidade que possui, haverá de acalmar os ânimos de todos, principalmente os de teu pai. Acredite-me!
    - Alá te ouça! Estou ansiosíssima! Dará tudo certo, eu acredito! Tem de ser, e será!
    - Assim é que se fala, Maria. Vamos confiar e acreditar nas nossas famílias! Está na hora de se reconciliarem e se ajeitarem.



                ****************



    Finalmente, catorze horas da tarde de domingo, estacionou de fronte ao portão onde aguardávamos, uma perua, donde desceram Arnus, seu filho Marcus, a mãe de Lourdes Irmgard, célio e Lourdes com Aragelda em seus braços, além de irmãos e primos de Lourdes. Fiquei radiante ao ver descendo do carro Marcus, dialogando profundamente com Célio, sem objeções. Lourdes olhou-me sorrindo, ao que Aragelda a  imitou. Cumprimentamo-nos e entramos no pátio da família Kasir.
    À entrada da casa nos aguardavam Abdala e Ilena, que num comportamento de ‘etiqueta’ cumprimentaram a todos e convidaram a entrar na sala. Para nossa surpresa, antes que alguém pensasse no real objetivo a que nos propúnhamos àquela tarde, Abdala apossou-se de um instrumento de cordas, uma espécie de guitarra, ao qual ele chamou de “al’ud”. Arrancou-lhe algumas notas melódicas e choraminguentas, às quais Ilena seguiu entoando uma música de tradição Árabe, que também foi acompanhada por Maria Ojeh (mesmo estando sem véu na cabeça) e por Célio. Enquanto nos deleitavam com o belo espetáculo, apercebi-me de uma coleção de cimitarras, que em outras ocasiões quando estivera naquela sala namorando Maria, nem notara. Eram no total cinco cimitarras e avaliei elas serem de valor incalculável.
     Os acordes continuaram encantando nossos ouvidos, e mesmo sendo uma música quase chorada, deixaram a todos atônitos, quietos e esfusiados pelas canções desconhecidas.
     Marcus, em sinal de agradecimento, mandou seu filho até a perua pegar uma gaita que trouxera junto, e a empunhando, entoou várias canções germânicas, tradicionais, como: “ Ich hat eine Kameraden”, “Schön ist die Jugendzeit” e “Heimatlos”.
    Este começo serviu para amaciar os propósitos do encontro, e o problema começou a ser abordado. O primeiro a argumentar após as canções, foi Marcus o pai de Lourdes:
    - Bem, senhor Abdala, sua esposa Ilena, espero que após estes belos cantos que entoamos, possamos dialogar sem ressalvas, e conversar sem levantarmos a voz, enfim, fazermos o que há anos deveríamos ter feito: dialogar para selarmos nossa amizade. Espero encontrarmos a paz entre nossas famílias neste nosso encontro de hoje e que ela se torne duradoura.
    Os parentes do lado dos Sandfisch começaram a aplaudir.  Abdala que acompanhara atônito o desenrolar do acontecimento, tomou a palavra e, no discurso que fez, nos deixou embasbacados. Iniciou falando assim:
    - Para não me ater a formalidades, direi unicamente: “Caros Sandfisch”! Acredito que estarei citando-os todos. Cabe-me dizer que simplesmente, o ocorrido entre tantas gerações tem a ver com a falta de oportunidade de nos conhecermos melhor. Estamos contidos numa teia, num labirinto, que nos impossibilita de continuarmos no ponto em que estamos, sozinhos. Além disto, eu tenho sérios problemas de saúde e não haverei de me permitir  partir desta vida, sem antes ter a certeza de havermos acabado com todos os nossos incitamentos, nosso orgulho racial que não leva a nada, enfim, quando deixarmos de lado esta história em querer sermos senhores absolutos, donos de todas as verdades, mesmo que sejam do passado. Ultimamente andei meditando muito a respeito de todos nós; esta meditação  criou maior poder ainda nestas nestas duas últimas semanas e vi que este desdém que viemos cultivando é indigno tanto para nós como para vocês. Quero neste exato momento oferecer-lhes minha hospitalidade, minha paz, a paz de minha família, a paz dos Ojeh Kasir e, do fundo de meu ser lhe pedir desculpas por todos os incômodos e transtornos causados ao longo de todos estes anos.
    As palmas brotaram soltas e animadas. Abdala abriu os braços e abraçou  Marcus Sandfisch. Seguiram-se os cumprimentos entre todos os participantes do encontro. As mulheres não esconderam generosas lágrimas de contentamento. Maria, que há poucos minutos atrás vinha quase me derrubando com sua tremedeira nervosa, agora soluçava à vontade. Senti nela muito mais sua realização para com o evento do que a emoção do acontecimento em si. E eu a abracei no todo, com vontade, trazendo para perto de mim aqueles seios desejosos, aquele corpo encantador. E, para completar, eu a amava. Depois de Maria Ojeh me abraçar, ela também abraçou a todos os presentes, e via-se no seu abraço a felicidade do cumprimento de sua promessa.
    Após os agraciados cumprimentos, Marcus tomou a palavra com Aragelda em seus braços. A pequena sorria, parecendo ter entendido tudo o que acontecera. E, Marcus, feliz e realizado com o encontro, falou:
    - Sinceramente não sei como exprimir o tamanho de minha felicidade por este momento! Devo admitir, porém, que devamos retribuir algo para nossos filhos, senhor Abdala, os quais por sua força de vontade conseguiram com que chegássemos a este ponto. Esqueçamos o ocorrido de tantos anos atrás, a fatalidade que envolveu Samir e Klaus, pois eram crianças e não podemos buscar entre eles culpados. São mártires! O destino lhes tomou a vida e tenho plena convicção que hoje eles estão a nos apoiar.
    - Allah hu Akibar (Deus é grande)     - Foi o que Ilena falou, acrescentando: - Arlam ua Sarlam ( Sejam bem-vindos!!!) – Traduzido no pé do meu ovido pela doce Maria,  e falado a todos os presentes, traduzido em minha voz.   
    Marcus novamente tomou a palavra, dizendo:
    - Bem, proponho que no próximo fim-de-semana façamos um churrasco em minha casa, contando com a presença de todos vocês. Vamos comemorar a alegria deste reencontro. As portas de minha casa, a partir de hoje, sempre estarão abertas e serão todos recebidos como gente da minha família.
    - Agradecemos os convites, e com certeza estaremos presentes. – Disse Abdala, visivelmente emocionado. – Quanto às portas, digo o mesmo: sejam todos bem-vindos! Tornemo-nos uma grande família!
    Do lado de fora da casa dos Kasir estava amontoada a cidade inteira a espreitar o desenrolar dos fatos. Decerto esperavam cenas de luta e de sangue. A notícia se espalhou no momento em que foi concretizado o encontro entre as famílias e Maria comentara seus anseios com uma amiga. Masa, para a sua tristeza e nossa felicidade, isto não aconteceu e o povo aos poucos se dispersou.




                *************



    De noite, na casa de meus pais, era incomensurável nosso estado de alegria. Estávamos reunidos Maria Ojeh e eu, Lourdes e Célio. Para completar a felicidade, posso assegurtar que daquela data em diante, acabaram-se as brigas e as famílias nunca mais se estranharam.
    Quando todos foram embora, imaginei como muita coisa neste mundo seria fácil de resolver e concretizar, bastando para isto um pequeno empurrão, um diálogo sincero ou um ato de entrega ou humildade. A vaidade e o orgulho sempre levam à ruína. E, no caso das famílias, estas duas palavras deixaram afastadas as pessoas de bem, amáveis e inteligentes, durante várias gerações. Não bastasse isto, no futuro poderia resultar em afrontas diretas, resultando talvez, até em mortes. A satisfação tomou conta do meu ser, já que minha pessoa foi importante na realização deste entendimento. Veio-me à mente minha bela trintona. No ar da sala onde me encontrava ainda estava suspensa a sutil mistura perfumada dela: algo de Jasmim com Maderas do Oriente. Lembrei-me das promessas de núpcias em detalhes menores cor de vinho... Definitivamente estava no momento de tomar a iniciativa. Afinal, ela tomara conta do meu seu e tudo o que a ela pertencia, enchia os meus sentimentos.
    Maria Ojeh me arrebatou neste período em que lutamos para unir as famílias. Mulher madura, completa, perfeita. Fui domado, dominado com sua graciosidade, com seu olhar, seu jeito feminino, doce, perfumado. Ela me enlaçou em sua teia sedutora e eu não tive mais como sair dela. Estava por demais apaixonado. Maria era perfeita: olhar enigmático, mas ao mesmo tempo doce, compreensível, cúmplice. Não existia outra pessoa igual: em certos momentos mulher madura, em outros, menina meiga, doce, desejosa. E eu, que tinha pensado nunca casar, acabei cedendo aos encantos desta mulher especial, mudando completamente meu pensamento  referente às mulheres. Não consegui resistir a sua voz poderosa a sussurrar palavras comprometedoras em meus ouvidos. Ela sabia como me dominar. Acabei tomando uma decisão...



                   ************



    No domingo seguinte, na casa dos Sandfisch, houve o encontro entre as famílias Kasir e eles, num almoço de confraternização e harmonia, que fez com que todos os laços novamente fossem atados.
    Maria me chamou cedo para irmos até lá, a fim de não perdermos nenhum momento do maravilhoso encontro. Mal sabia ela que eu havia preparado uma surpresa.
    Durante o almoço, muito foi conversado e todos os membros de ambas as famílias estavam entrosados.
    Após o almoço, comuniquei a todos, sob o olhar estupefato de Maria Ojeh, que a estava pedindo em casamento, noivando com ela. A surpresa de Maria foi enorme. Não havia esperado uma surpresa de tão grande desenvoltura; na hora de colocar a aliança ela tremia tanto, que tive que segurar sua mão para que desse para colocar a aliança. Sua reação foi tão grande, que se atirou em meus braços e me crivou de beijos. No desequilíbrio caímos juntos. Os beijos continuaram no chão em meio à gargalhada geral. Tudo culminou com uma enorme torta de morangos e muita cerveja fabricada pelo próprio anfitrião.

       



   

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Conto - INCERTEZAS...

      

                 Incertezas...
Foi numa daquelas vezes em que o Sol realmente não sabia se estava anêmico, doentio, ou se simplesmente eram as nuvens a embaralharem mais uma de suas esplendorosas aparições de meio-dia, que uma garota meio estúpida, a Bea, se encontrava no restaurante satisfazendo seu estômago exigente. Devorava um prato de “completo” em cinco minutos. Claro, um pouco de razão ela tinha, pois aquele restaurante só possuía quatro mesas (hoje ele está melhor: possui cinco) e o pessoal lá fora esperando, devorava as pessoas que devoravam a comida, com palavrões. Não adiantava fazer devagar: se não comessem ligeiro, perderiam o apetite.
Bea pagou a conta e saiu. Saiu com o grude mal mastigado, tanto que se enxergava a bola por fora. Mais tarde eu ficaria sabendo que aquilo não era o estômago de Bea, mas, que na ocasião ela realmente se encontrava grávida. Grávida? ...Um rapaz loiro a esperava. Era seu irmão, o qual provavelmente a levaria ao serviço. A família só possuía um carro e a única pessoa que dirigia era Fausto, irmão de Bea. Ela não era uma garota muito linda, nem sequer agradável, nem tampouco inteligente, mas eu necessitava conversar com ela. Era a única que mexia com meu eu, que me balançava, e por inescrupulosidade do destino, a amava. Eu?!? Que vivia sonhando com rainhas...
Passava sempre na frente do restaurante quando voltava do almoço e sempre a via  saindo com o grude a mostra.
Havia algumas semanas que a conhecia de vista. Por conversas e fofocas, já a conhecia há mais tempo. A mesma cena se repetia na hora do almoço todos os dias e eu até já me acostumara ao seu jeito desleixado de ser, cabelo desalinhado e barriga à vista à saída do restaurante. Mas, eu, mesmo louquinho para iniciar uma conversa com ela, não via um jeito de chegar perto dela e iniciar essa conversa. Assim, para me aproximar dela, levava sempre um bilhete comigo, o qual dizia o seguinte:
“NÃO HÁ Ó GENTE,
Ó NÃO SEREIA,
COMO VOCÊ,
Ó QUERIDA BEA! ...ESTOU INTERESSADO EM  MANTER UM CONTATO IMEDIATO COM VOCÊ!
COMO SOU? ORA, UM FO-O-O-O-O-O-FO!
VOU ESTAR HOJE À NOITE NA PRAÇA DA IGREJA. ESPERO VOCÊ!”
Eu acreditava que este bilhete era bastante convincente. E num dia de chuva, deu certo de passar o bilhete para Bea através do guarda-chuva que ela deixara na entrada do restaurante. Aproveitei a oportunidade quando vi ela largando seu guarda-chuva lá e joguei o bilhete dentro dele, sumindo de mansinho. E, com o convite lançado, esperei ansiosamente por um encontro a sós com ela.
A noite chegou, a madrugada apareceu, mas Bea não se fez presente ao encontro. A partir daquele momento não tive mais calma e me atordoava saber o que ela pensara daquele inusitado bilhete.



                **************



Depois desta primeira tentativa, por sinal muito frustrada, encontrei um caminho bem melhor: explorar o campo do seu emprego. Ela trabalhava numa lojinha de moda infantil. Adroaldo me dissera isto. Fui lá, numa sexta de tardezinha. Entrei. Lá estava ela: linda, melhor, deslumbrante! Eu era aficcionado naquele cabelo rebelde, mal-cuidado, ornando aquele rosto angelical. E, seu jeito elétrico de ser me excitava. Disfarçadamente, comecei a olhar os produtos nos cabides e,
- ...Pronto?!?
Virei-me pois falaram às minhas costas. Desilusão! Não era Bea. Quem dissera aquele “pronto” provavelmente devia ser a mãe da dona da loja. E,
- Eu, ...hã... eu... áh! Eu queria ver por um vestidinho para, ...hã, ...minha afilhada, e,
- Ora, mas que bom! Que bonito, lindo mesmo! Nós temos vários tipos de marcas e modelos para todas as idades, em todas as cô, áh, ...qual é mesmo a idade da afilhada, já lhe perguntei? Temos todas as cores e formas e,
- Mas, ...
- Cavalheiro, siga-me. Aqui adiante temos uma seção para cada idade, modelos maravilhosos,
- Mas, ...
- Qual é mesmo a idade de sua afilhadinha?
- É, ...
- Não me contou ainda, não?
- Mas, ...
- Olha só este aqui, que mimo! Cai muito bem! Mas, a idade dela é?
- Hã, é... seis anos. Isto, seis anos!
- Ora, ora, começando a criar inteligência! Precisa de algo personalizado. Venha comigo, moço.
- Mas, eu queria,
- Ora, ora, já estamos chegando. Ela precisa algo personalizado como este vestidinho aqui. Ou, que tal, este aí adiante. Ou, quem sabe, aquele lá.
- Mas, ...
- Você é um dindo de sorte. Achei o modelito certo para ela.
E já foi tirando o vestidinho verde-água do cabide, abrindo-o e me mostrando os detalhes.
...A vendedora me envolveu tanto com seu papo profissional, largo e ligeiro, que acabei comprando um vestido caro para uma criança de seis anos e ao mesmo tempo, nem consegui olhar para Bea. O maior problema após sua aquisição era o  que fazer com ele? Não ia botar fora um vestidinho novo, verde-água, o qual me comera a grana de um dia de trabalho. Por fim, acabei doando-o a uma instituição de caridade pertinho de casa, onde as freiras cuidavam de crianças carentes em sua creche.



                ***************



Entrei quatro vezes em um único mês naquela loja comprando presentes para minha afilhada fantasma de seis anos de idade e Bea nenhuma vez me atendeu. Os cálculos das probabilidades não contribuíram uma vez sequer. Com todo este compra-compra, deixei feliz a vendedora-vovó, a qual disse que eu devia adorar minha afilhada lhe oferecendo tantos mimos, e a instituição, onde uma freira perguntou o motivo da promessa que estava pagando. Simplesmente lhe respondi que estava pagando uma promessa de amor que havia acontecido e que aos poucos estava se concretizando.
Finalmente, um dia, porém, deu certo. Entrei na loja e Bea me atendeu. O mundo caiu sobre mim. Nem estava conseguindo encará-la direito. Por fim, perdi toda a segurança porque ela realmente estava grávida. Não pelo fato da gravidez em si, mas porque certamente haveria outro em sua vida. A aliança na mão direita confirmava-o proeminentemente. Poderia até ser um disfarce, contudo, sempre vaga no ar aquele “se”. E, já que minha estrutura muscular não configura um exímio lutador, não procurei me envolver muito, afinal seu namorado podia ser um brutamontes daqueles de jogar porta afora qualquer um que bancasse o ignorante frente a sua noiva.
Enquanto Bea ajeitava as roupas ns cabides, sem olhar para mim, perguntou:
- O que você deseja?
- Eu desejo... olha, na realidade, eu desejo só fazer uma pergunta...
- Pois não? Qual é a pergunta?
- Sobre um bilhete que seu noivo me contou... – Atochei para ver sua reação. E ela enfureceu:
- Que bilhete???
- Ora, um bilhete que um atrevido andou lhe escrevendo e escondendo dentro do seu guarda-chuva. É verdade?
-     Jordão não tem jeito mesmo. – Pensativa. – Paspalho! A língua dele é mais solta que cachimbo em boca de desdentado. Poxa! Só o Jordão mesmo! Por que esse imbecil precisa ficar espalhando por aí as coisas que se passam conosco? ...Quer saber de uma coisa?
- Hã?
- Mas quer saber mesmo?
- O que?
- Não te mete, tá?
- Calma, Bea, calma! Você me deu licença pra fazer uma pergunta e eu somente a fiz, e,
- Vá para o diabo com sua calma e suas xeretices!
- Uau, que menina braba você é! Eu não quis ofender.
- E eu não quis responder! ...Só que bati com a língua nos dentes.
O clima estava tenso, mas eu não quis acabar esta história assim. Sentei-me num banco com degraus e continuei encarando Bea. Pensei: “Poxa, persigo esta garota há dois anos e não vou deixar me intimidar.”
Bea, por sua vez, virou-se de costas para mim e começou a remexer as roupas à frente dela. Eu queria saber em que condições ela ficara quando achou aquele bilhete e com toda esta explosão, já deu para concluir algo: o bilhete mexera com ela, colocara ela em parafuso. Em seguida, Bea afrouxou um pouco, indicando certo remorso pelo destrato anterior:
- Sabe, - pensativa, fitando o forro da loja – não há nada mais bacana do que um cara gostar da gente, nós ficarmos sabendo que tem alguém de olho, e não sabermos quem é. Após ter recebido aquele bilhete, eu não cansava de imaginar como poderia ser o rosto do atrevidinho.
- Como assim?
- Ora, ele se autoproclamava de fofo... melhor, foooofo!
Naquele instante vermelhei feito um pimentão. E ela, com o olhar para o infinito entre o forro e as roupas continuou:
- Ah, o cara chamando a si mesmo de fofo só para eu cair na conversa dele... Devia estar muito a fim de mim para correr o risco... Eu deveria ter aceito aquele convite e ver no que dava, afinal, o Jordão só é o pai do meu filho e as circunstâncias fizeram com que parecêssemos noivos.
Por dentro eu estava me corroendo de vontade em chegar perto, abraçá-la e dizer: “Larga do Jordão, Bea. Sou eu quem estou apaixonado por ti e ajudo a criar este filho que está esperando como se fosse um filho meu!” Ela era muito linda: olhos negros, melhor, pretos, cintilantes, penetrantes, brilhantes! Nunca vi um olhar igual em toda a minha vida: duas contas reluzindo e refletindo toda a energia do fundo de sua alma. Me apaixonei mais ainda. E, como para quebrar o encanto do momento, ela reagiu:
- Bolas! ...Por que estou falando tudo isto para você? Cai fora! Não vendo sentimentos aqui, só roupinhas para crianças!
- Bea, eu,
- Cai fora! Se não quer comprar, não tem nada a perder aqui.
- Espera! – Alterei a voz. – Vai ter que me escutar.
- O que foi agora? Decidiu-se em comprar mais um vestidinho para sua afilhadinha de seis anos?
- Não! ...É que... eu,
- Vamos, fale de uma vez por todas!
- Fui eu quem escreveu aquele bilhete porque sempre achei você uma pessoa especial e, sinceramente, estou a fim de você.
- Grávida? ...há, há, há, isto só pode ser uma piada. Quem ficaria a fim de uma mulher grávida não sendo o pai da criança?
- Eu! ...Bea, acredite, sempre fui apaixonado por você, grávida ou não, sempre quis você.
- Meu amigo, chegou tarde! Já tem outro ocupando a trincheira e ele com certeza não gostaria de saber de sua história.
- Então diz olhando em meus olhos: “Eu amo Jordão!”
- Pra que? Ele me engravidou, agora vai ter que arcar com o futuro da criança.
- E você, como fica?
- Em que sentido?
- Ora, você não ama ele, pelo que pude notar.
- São detalhes.
- Detalhes que podem custar caro para sua felicidade.
- E quem liga para isto? ...A felicidade é ter um prato de comida, um teto e um pacote de fraldas descartáveis. O resto se acomoda...
- Bea!!! ...Não acredito que esteja falando isto. Você está completamente fora de seus sentimentos! Onde fica o amor, o carinho, a paixão?
- Se você souber, me diz!
- Estes sentimentos todos ficam no que eu desejei pra você, independente da gravidez, independente de o Jordão amá-la ou não, independente de qualquer coisa, eu estou aqui, abrindo meu coração.
- Como é seu nome?
- Rubem.
- Olha, Rubem, se tentou me desestabilizar, conseguiu. Fiquei toda transtornada. Afinal, o Jordão só é o pai do meu filho e eu não tenho nenhum sentimento por ele. São seus pais que estão forçando a barra para ficarmos juntos. De minha parte, foi um acidente terrível, inesperado, e com o qual agora tenho que arcar as consequências. Mas fico feliz em saber que tem pessoas que me admiram e que estão a fim de mim.
- Que bom! Está sendo sensata.
- Não, estou completamente fora de mim, não sei o que pensar... ...por que estou falando todas estas coisas ...por que tu não chegaste antes em minha vida? Por que só agora?
- Porque nunca houve a oportunidade, Bea. Já estou observando você há pelo menos um ano, e nunca tive o prazer de ter esta conversa com você, como a que estamos tendo.
- Por que?
- Porque tu não vais a bailes, não frequentas as baladas e não estás nunca por aí. Só aqui na loja a gente consegue te encontrar.
- Pior!!!
- Posso te pedir uma coisa, de coração?
- Pode, Rubem!
- Reconsidere toda a sua vida e saiba que, mesmo com tudo o que possa acontecer, sempre estarei aqui, pronto para ampará-la.
- Obrigada! ...É gratificante receber uma força assim, inesperadamente e grávida.
- Vem cá! – Disse incisivamente chamando Bea para junto de mim. Quando se aproximou dei um abraço caloroso, carinhoso e pedi mais uma vez para ela reconsiderar sua relação com Jordão. Bea me abraçou com tanta energia que senti seu coração pulsando dentro do meu. Estremeci. Ela tinha que ser minha, custasse o que fosse!
Saí da loja aliviado e com uma pontinha de esperança em poder reverter este amor fugaz no que se metera o casal. E Bea, por sua vez, mesmo não tendo falado nada sobre a impressão que tivera a meu respeito, pude constatar alguma reciprocidade em nossa química pelo olhar que ela me lançou quando falei que estava a fim dela e pelo abraço apertado que me deu quando a tomei em meus braços.



                ********



Dois dias depois de incontáveis sonhos com Bea, encontrei Adroaldo num bar. Estava chovendo e ele se encharcando com cerveja. Vi logo não haver ambiente par debatermos o caso Bea-jordão. Mas, como era inevitável  naqueles momentos de embriaguês, Adroaldo desembuchou tantas farpas sobre sua esposa, que aos meus olhos, só lhe sobraram as unhas dos pés. Reclamava sobre seus vestidos, seu cabelo, seus olhos, suas graxinhas-a-mais, aqueles fiozinhos pretos entre o nariz e a boca, seus sapatos, seu modo de ser, seu perfume, seu... até reclamava sobre  seu excesso de sensualidade naqueles momentos, pois o faziam ejacular sempre antes de qualquer carinho mais profundo.
Adroaldo nunca me falara sobre este seu problema. Eu pensava que ele, um homem tão viril, levasse uma vida sexual normal. Mandei-o visitar um psicólogo, ao qual ele retrucou severamente:
- Sabe, um caso destes se resolve na marra. Neste mundo quem tem mais problemas são justamente os psicólogos: os problemas dos outros... De todos os outros! E ele só vai considerar o meu caso, um probleminha a mais de rotina.
- Não, Adroaldo, não é assim! Você está completamente errado. Os psicólogos agem bem diferente...
- Não? Então... então veja o que aconteceu com o coitado do Jarbas: tá tão complexado que nem pisca mais para as garotas, muito menos, puxa assunto com elas.
- O Jarbas é um cara inibido, ensimesmado, mal de nascença...
- É psico, ...hã... psicologuite aguda!
- Mas qual problema ele tinha que foi se consultar
- Não foi consultar-se; foi visitá-lo e acabou se engatando nele. E... sua mãozinha caiu.
- O Jarbas? ...quer dizer que ele é gay?
- Sim, isto mesmo! Ele é! Cuidado, para ele, todos somos, uih, - fez um trejeito, - hommmens!
- Agora está explicado: aquela festa no Parque Centenário... foi o único da turma que não arrumou companhia.
Ele dizia a todos que estava muito ocupado com a nova amizade que fizera recentemente... E era com outro cara! Caramba!
    - É! Ele definitivamente debandou.



                     ***************




Larguei Adroaldo na porta de sua casa. Queria certificar-me de que ele chegaria inteirinho e no lugar certo: seu lar-doce-lar, com o intuito de, no dia seguinte, levar o caso Bea-Jordão a término.
Assim que ele entrou, sua mulher já gritou:
- Bêbado de novo?
- Não, amor, só tomei meia dúzia, e...
- Gambá! Você não tem jeito mesmo!!!
- Pára, amor, não judia!
... E a briga começou.
Antes de ir embora, pude constatar que ele não sairia inteiro daquela briga, tamanha foi a zoieira. Era xinga pra cá, gritos pra lá, berros por cima, copos por baixo se estraçalhando no chão, enfim, quebradeira geral.
...Realmente uma cena que colocou-me à prova a veracidade dos casamentos eternos. Escutei um pouco o fuzuê e fui-me embora.



                ***************



Fim de semana. Cristina, a Cris, estava sentada, vestida com seu curtíssimo short e sua decotada blusa na sorveteria do Alexandre. O sorvete descia-lhe goela abaixo feito avalanche. Estava um dia quente. Resolvi fazer-lhe companhia:
- Se puder, gostaria de ter a honra em sentar-me ao seu prestimoso lado. Não falarei, contentar-me-hei em admirar seus encantos, tão a mostra!
- Ora, ora, que cavalheiro! Tenha a bondade, faça-me o favor! A donzela aqui, tá só no frio... mais só do que frio!
- Óh, sim! Com sua licença... Permita-me madame!
- Esteja à vontade!
Sentei-me no banco ao seu lado. Rimos juntos. E, Cris:
- Sabe, é tão bacana hoje em dia não haver mais todas                         aquelas formalidades de tratamento. Eu, pelo menos, penso que é muito mais direto e objetivo tratar os outros por você e tu; pô, acaba na família, manja?
- Claro! Geralmente um tratamento mais distante... o senhor, senhorita...
- Prezado cavalheiro...
- É! Deixa a gente tão frio, não liga, não dá intimidade.
Nisto veio o Alexandre para junto de nós:
- Sorvete de...
E eu para Cris:
- De:
- Morango e creme.
- Dois! Um com quatro bolas.
- O meu, só com duas bolas! – E olhando atrevida para mim – Só preciso de duas bolas, mais, não! – Sussurrando: - um monte de bolas atrapalham em tudo!
E desatou a rir infantilmente. Eu ri junto. E Alexandre:
- Salta dois morango e creme para a mesa sete! Um duplo!
Tomamos vários sorvetes e rolou muita conversa na temperatura dos mesmos.
- Quando cheguei em casa já era tarde, mas antes de ir dormir pensei em Cris. Ela era uma garota linda, educada, maliciosa, curvas indescritíveis, embora seu nome encaixava mais num gigantesco iceberg. E, por inescrupulosidade do destino, a amava. Eu?! Que só sonhava com formas fogosas e ardentes... as dita-cujas mulheres quentes! Agora, simplesmente porque tomara sorvete com ela, meu fogo do coração e da paixão novamente se inflamava. Mas, eu tinha motivos para sentir tudo isto, pois, nas três horas em que ficamos juntos na sorveteria, só não rolou beijo porque ela era meio desatrelada a sentimentos. Pelo menos era isto que eu pensava. No mais, tivemos um papo muito cabeça, daquele tipo onde se perpassa todos os assuntos e onde nossas opiniões fecharam na maioria das vezes.
Eu já havia me encantado por Cris há mais tempo, mas, frente aos últimos acontecimentos com Bea, fiquei completamente perdido. Mas, como certamente a Bea seria parada dura para conquistar, resolvi investir em Cris.



                ***********



Cris e eu havíamos combinado um encontro na praça da Igreja sábado à noite.
Enquanto a aguardava, me apareceu, sem mais nem menos, o Jarbas. Másculo e debochante, proferiu:
- O ilustre companheiro de guerra deve estar batalhando por mais uma donzela.
- Ora, parece então que somos dois – respondi.
- Quem sabe!
- Posso saber o nome da beldade que lhe fará companhia esta noite? – arrisquei. Ele respondeu encabulado:
- Ora, ora! ...Que diferença isso faz?
- Ora, ora o que? Pode me dizer quem ela é! Ninguém vai ouvir. Fica entre nós!
- Para ser franco, Rubem, estou aqui só para passar o tempo – sentou-se ao meu lado – mas se você quiser, ... – Amenizou e afinou a voz; pegou no meu joelho, e ofegante me encarou e começou a piscar os olhos fremitamente; seu olhar ficou provocante, digo, efeminadamente provocante. Me vi numa enrascada. Ele, meigamente, continuou:
- Se quiser, pode preencher o meu tempo com toda a certeza e eu posso preencher o seu e...
- Corta essa, Jarbas!
- Calma, eu...
- Olha, Jarbas, se há no mundo alguma coisa que abomino é catinga de homem erotizado, tá legal?
- Calma, ‘men’, eu só estava pensando e,
- Pois pensou tudo errado ao meu respeito! Não tenho nada contra, mas eu não sou chegado a este tipo de relação. Prefiro ainda do jeito como sempre foi: a relação entre os homens e as mulheres.
- Óh, o boneco está ofenso! – E afinando mais ainda a voz – Alguém já te falou que teu charme é con-ta-gian-te, bem?
- Já, já! Mas todas eram garotas. Entenda bem: GA-RO-TAS!
- Ái, áih! Que booooofe! Estou su-fo-ca-da com este teu papo  grannnde e groooosso de hommmmão...
- Jarbas, por favor, minha paciência está se esgotando!
- Jirbana, bem, JIR-BA-NA!
- Faz um favor então, Jirbana: desgruda, sim? Não quero bater boca com você, afinal esta é uma opção sua e se você se sente bem assim, vá à luta. Mas não comigo, tá? Procure uma companhia que o aceite como é.
- Noooossa, tá botando moral na rodada! Senti firmeza, bem! Mas, eu,
- Nem mas, nem mais, nem menos, Jirbana! Olha quem vem chegando! Cai fora Jarbas, aliás, Jirbana! Te manda que agora estou em outra e você está poluindo o ar com este sovaco de desodorante vencido.
- Óh, que crueldade! Sairei daqui, mas saiba que é pro-tes-tan-do por dis-cri-mi-na-ção!
- Vai, vai, cai fora!
- Calma, Rubem!
- Xô, xô!
Cris já estava bem perto de onde nos encontrávamos. O gay falou:
- Não seja rude comigo, tá? Já levantei e já estou saindo.
- Tchau, passar bem! – Disse-lhe num deboche escancarado. Ele respondeu sensualmente:
- Sonhe com os anjos, “benhe”! – Piscou e abanou em dedilhado. Acabou sumindo na escuridão, balançando as ancas como se fosse um marionete. Nisso, Cris agora bem perto, puxou a bolsa que trazia a tiracolo para a frente e sentou-se ao meu lado no banco da praça:
- Ufa, que chatice me soltar dos velhos! Tô atrasada, né? Que horas são?
- Dez para as nove, Cris; é cedo! Ainda temos bastante tempo para conversarmos.
- Isto é o que você pensa! Se a conversa for boa, agradável, o tempo não passa; voa, derrete!
- E vamos conversar sobre o que?
- Ah, qualquer assunto.
- Então começa você...
- Sim, sim...
...Depois de uma pausa, buscando as palavras para me dizer, olhando para as estrelas, Cris falou:
- Escuta, Rubem! Você... ...você já teve alguma vez verdadeiro amor, paixão, amor mesmo por alguma garota?
- Por que esta pergunta?
- Ora, porque é um assunto que dá o que falar!
- Bom, não digo que sim, nem que não! Pra mim o amor é uma coisa tão misteriosa, ao mesmo tempo real e visível, que muitas vezes nos confunde. Já fui louco por garotas que sequer sabiam  o que o amor significa (no mesmo instante lembrei-me de Bea e imaginei como seria se a tivesse ao meu lado naquele momento). Já desprezei, em outras oportunidades, garotas que seriam capazes de comer gilete por mim. Acredito que o verdadeiro amor surge no primeiro olhar e essa necessidade para se verem mutuamente, dialogarem, seja a química que faz este amor crescer. E isto faz um bem danado para o corpo e a alma.
- Boa explicação, Rubem. Mas, amor AMOR, pra mim é a polarização entre dois elementos distintos; veja bem, eu penso assim: entre toda a humanidade cada mulher e cada homem tem um polo. Parece incrível, né, mas acho que isto funciona assim. E acabamos amando de verdade, quando encontramos o polo que atrai com o nosso.
- É, você pode ter bastante razão; olha, tomemos o contrário: por que existem algumas pessoas com as quais não simpatizamos de jeito nenhum? São pessoas que aos nossos olhos parecem desagradáveis, insossas e metidas. Mas, na realidade, são pessoas boas, educadas com seus amigos, seus parentes e têm suas alegrias. São polos adversos! E nesse sentido, acredito, pode se aplicar o amor, assim como você falou!
    - Sabe, eu acredito que muitos casamentos não dão certo apenas porque duas pessoas se conheceram, acharam um ao outro interessante e tiveram a impressão de não existir ninguém no mundo mais capaz de fazê-los felizes, de completá-los. E casam. Ora, pode ter acontecido de se encontrarem polos meramente semelhantes, onde tudo vai muito bem por muito tempo. É claro que casamentos de dois, três, quatro, cinco anos e fim, é falta de preparação. Eu me refiro a casamentos de duração: dez, quinze, vinte anos ou até mais, que terminam na maior, de uma hora para outra. Cada um toma seu rumo, e maldizem o tempo que perderam nesta relação. Sabe o motivo de isto acontecer?
    - Ora, pode ser também falta de preparação, de conhecimento, Cris!
    - Não! Eu não acredito! O mais provável nesses casos é o negócio das polarizações semelhantes, mas não as devidas. Cuide só: porque as polarizações são semelhantes, vai tudo muito bem, e até pode durar uma eternidade. Pode até durar uma vida inteira. Mas, e sempre existirá aquele “mas”, se um dia, por descuido ,um pisar mais fundo no calinho do outro, descobrem a inexistência de afinidades em toda a complexidade do amor, da vida em comum, aí tudo desbanca. E este é o início de uma avalanche incontrolável. É o estopim. Dali para frente, só um passinho, por menor que seja, em falso e ...BUM!
    - Cris, você daria certo como psicóloga, sabia?
    - Há, há! Conta outra!
    - Não, é verdade! Sério! ...Que maneira sublime de explicar as nuances do amor, da vida em comum... estou gamado!
    - Ora, Rubem, eu só coloquei o meu ponto-de-vista. E ele pode ser bem diferente do seu.
    - Não, não! Neste ponto pensamos igual. A vida caminha com uma certeza pré-tracejada e acredito que tem a ver com os tais polos e afinidades.
    - E uma afinidade profunda é o mais gostoso de se ver num casal; repare uma vez, se conhecer alguém assim, como os dois são harmoniosos, cheios de trocas, palavras e toques, emoções... neles tudo é mágico, complementar. ...Ah, e os toques! Eles vivem trocando energia enquanto se tocam.
    - Como é bacana ouvi-la falando assim Cris! Isso me empolga!
    - Bom, até eu me empolgo. E falo, falo, falo tanto, que às vezes só digo frases soltas no ar, sem nenhum sentido.
    - Mesmo se assim o fosse, ainda seria melhor do que nos encontrarmos e não termos assuntos. Mas, realmente, você parece mestra em relacionamento humano.
    - Ora, conta outra! A verdade é que leio muito, adoro assuntos que giram em torno do relacionamento entre as pessoas, e vou tirando minhas conclusões.
    - Que, por sinal, tem tudo a ver, Cris. – Enquanto falava estas palavras, segurei firme a sua mão e a fitei nos olhos.
    Pouco depois, enquanto ainda me fitava, disse:
    - Sabe, Rubem, gostei do “estou gamado!” que você falou antes, foi sério?
    - Ora, e quem não gama com tudo o que falou?
    - Só com o que eu falei?
    - ...Adivinha!
    Um silêncio comprometedor tomou conta de nós dois por alguns instantes. Fitávamo-nos com olhares desejosos, tentadores. A pureza da sinceridade aflorava nas grandes pupilas castanhas de Cris. Ela tinha o dom de hipnotizar seus interlocutores somente com seu olhar fundo e franco. Enquanto nossos rostos se aproximavam para um inevitável beijo, ela disparou, num “flash”:
    - Rubem, você seria capaz de sentir um profundo amor por mim, com afinidade polarizada como acabamos de falar?   
Meu coração disparou desenfreadamente, palpitando em dose dupla. Fui pego completamente desprevenido. Para disfarçar fiz alguns trejeitos daqueles que dão a impressão de a gente estar se ajeitando no banco, porém, meus olhos traiçoeiros jamais se tornariam cúmplices no esconder das incertezas deste coração. Tentei argumentar para sair do embaraço, que visivelmente estava em meu semblante:
- Não sei por que me pergunta isso...
- Só por saber! E pelo jeito, te peguei completamente desprevenido.
- A... amar você?
- Sim, Rubem, no duro da palavra!
- Seria, claro! Imagine só: nós dois? Acho que seria ótimo! Mas, me diz você agora, Cris: E você, seria?
- Isto é uma cantada?
- Tome do jeito que quiser.
- Eu seria capaz, claro! A gente nunca sabe o que o futuro nos reserva. Pelo menos, nunca o censurei pelo incidente lá no supermercado quando nos conhecemos, e ainda não acredito que você tenha feito aquilo sem querer!
- Por acaso tenho culpa, Cris, se a barrinha de margarina escorregou de minhas mãos e foi cair justamente dentro da sua blusa? Ora, não foi por querer!
- Não sei, não! ...Me arrepiei de alto a baixo com aquela coisa fria descendo no corpo. E a desgraçada da margarina me ensebou todinha. O soutien novinho que estava usando ficou manchado de gordura e nunca mais saiu.
- Coitadinha!!!
- Quem prova não ter havido um bocado de malícia nisso tudo... Desconfiei a partir do momento em que você, com a maior cara de pau se prontificou a me ajudar a tirá-la.
- Cordialidade...
- Passou a mão. Isso pra mim foi curiosidade!
- Uma tentativa de amenizar seu furor...
- Degustando a minha ira com seus toques indiscretos!
- Só quis ajudar!
- Eu fiquei possessa! Sua sorte foi que eu, quando o vi, de cara simpatizei com você e assim minha ira se amainou.
- Bom... neste incidente você ao menos provou ser bastante temperamental.
- E você provou ser bastante atrevido e indiscreto.
- Objetivo e perspicaz!
- Nunca! – Mexendo o indicador diante de meu nariz – na-na-na, ni-ni-ni, nó-nó-nó. Malandro, aproveitador e muito indiscreto.
- Mas, eu fui discretíssimo! Nem sequer afaguei seu belo rostinho!?
- ...Agora que já passou bastante tempo, me responda: você fez aquilo de propósito, não foi?
- Não! Aconteceu!
- Assim como aconteceu o convite em seguida?
- Não, aquilo foi para torná-la mansa novamente.
- Que lindo, Rubem! Farei de conta que acredito!
- Cris, foi só um incidente. Mas, o convite, apesar de oportuno, foi de coração!
- E quem diria que você fosse de cara atacar o meu ponto fraco, convidando para tomarmos um sorvete!
- De morango e, ...
- Creme e, ...
- Morango!
Rimos. Ela envolveu meu pescoço com seus braços e suavemente roçou meus lábios com sua boca ardente, esperando uma iniciativa minha para revidar com um beijo caloroso. Mas, no momento em que seus lábios me tocaram, imaginei Bea me beijando, deixando-me completamente transtornado. Me senti completamente perdido na malha da paixão. Como poderia gostar de alguém diferente, mesmo sendo a Cris, se a Bea fora minha escolhida?
Revidei com um selinho, afaguei seus pernões malhados, coxas atléticas, pigarreei e para atenuar o assunto paixão, busquei voltar ao tema do supermercado:
- Cris, vou ser sincero com você: aquela cena do supermercado foi truta! Só quis me aproximar de você.
- Eu sabia!!! Atrevido!
- Mania de fazer novas amizades...
- Oportunista,
- Simplesmente um natural forçado!
- Aproveitador de donzelas desavisadas,
- Sociólogo!
- E malandrão! Não, ...doce malandrinho!
- Tudo são oportunidades.
- Se ao menos tivesse deixado cair uma das margarinas mais caras, mais finas.
- Aproveitei a situação: é agora ou nunca e... zás!
- E foi!
- Um “Por Acaso” bem planejado.
- É, por acaso!
- Foi aquela curtição!
- Sim, curtindo com a minha cara, isso sim!
- Não, Cris, foi a vontade em tê-la perto de mim.
- Oportunista!
- Não, especialista! Especialista em conquistar belas garotas.
- E ganha todas?
- Noventa por cento.
- É?
- Sim! Vou à luta com vontade!
- Menino levado.
- Eis a nossa afinidade!
- Desafina um pouco, Rubem: eu até que sou bem educadinha...
- Aqui está nossa afinação: somos educadinhos!
- Ééé! Vou concordar para não perder um amigo.
- Topas?
- Só depois dos quarenta.
Rimos. Após algum tempo de silêncio comprometedor reiniciei o assunto:
- O que houve com seu pai e sua mãe? Não quiseram deixá-la vir?
- É! Disseram que uma garota de família de dezenove anos, devia ficar em casa lendo história, arqueologia, romances, ba-le-la, morou?
- Um a zero para os seus pais!
- Um a zero para mim que soube desdobrá-los e lhe dar o prazer de minha companhia, aqui.
- Realmente, Cris, devo concordar com você. Mas, posso saber como isto foi possível?
- Com tato e papo!
- Hum! E eu entrei nesse papo?
- É lógico! Aleguei encontrar-me com um rapaz culto o qual me ensinaria toda a literatura ao vivo. E que isso aconteceria em lugar público, rodeados por muitos juízes e promotores a nos fiscalizar. Ficariam controlando o tempo e os nossos interesses.
- E o nosso atual interesse é?
- Creme e morango!
- Ora, ora, Cris! Não fala de outra coisa! Não tem outros assuntos?
- Tenho: sorvete, casquinha, cascão, todos cheios de creme e morango e uma cobertura de menta ou chocolate... áh, que delícia!
- Quer saber o que é delicioso?
- Quero! Diga para mim: o que é mais delicioso que sorvete?
- A sua companhia, Cris. ...De coração, sua companhia é muito gostosa, agradável e, ...sinceramente, não sinto o tempo passar.
- Uau! Sério? ...deste jeito vou me apaixonar por você!
- Calma, Cris, vamos primeiro satisfazer o seu desejo.
- Creme e morango lá no Ice Xande, que tal?
- Já que precisamos ficar em público conforme fez promessa aos seus pais, nada mal. Vamos?
- Se o cavalheiro me der a honra...
- É muita bondade sua, “mademoiselle”, dar-me a honra em poder acompanhá-la.
- Com açúcar e com afeto?
- Não! Com afeto e com açúcar.
Levantamos e saímos da praça.
A felicidade abrilhantava os nossos passos e fomos de mãos dadas até o Ice Xande. Senti prazer em caminhar ao lado de Cris segurando sua mão. Ao nos ver, Alexandre sorriu e de longe já saiu gritando:
- Saem dois duplos creme e morango, um com cobertura de menta e chocolate.
Nossa conversa ainda rolou muito sobre o amor, paixões e polos. Cris havia me mostrado outra dimensão no amor, que justamente é esta que une os apaixonados para sempre devido à perfeita polarização que têm entre eles.
Deixei ela na porta de sua casa e meia-noite já me encontrava em casa tomando um banho bem friozinho.
Cris me empolgara bastante com este encontro mais próximo que tivéramos e me maldisse por não ter beijado com toda a dimensão do momento na praça, aqueles lábios carnudos, sedutores e desejosos. Minha paixão por ela triplicou aquela noite. Ela era perfeita, ideal. Todavia, faltava-me sentir aquele ‘algo mais’, aquilo que mexe com a gente quando nos encontramos com pessoas que pensamos amar, e que só aconteceu quando encontrei Bea.



            *************



Duas semanas se passaram. Neste tempo, entrei na loja de Bea três vezes, onde só tive a oportunidade de ser atendido por ela uma única vez. No mais, comprei mais presentes para minha afilhada fantasma de 6 anos e por conseguinte as doações na instituição de caridade. Na vez em que Bea me atendeu, vi claramente sua satisfação em estar comigo pois não teve pressa em me liberar, muito diferente do que fizera comigo no outro encontro. Aquele brilho intenso no seu olhar me fascinava, me hipnotizava. Ela disse:
- Rubem, você de novo aqui?
- Sim, já estive duas vezes aqui e você nem me viu.
- Desculpe, mas todos querem falar comigo.
- Dá para notar. ...Como vai a gravidez?
- Nem me fala! Está uma fase difícil. Tenho muitos enjôos e todos dizem que forço isso para chamar a atenção. Mas não é! Eu ando muito enjoada, não consigo nem sentir de longe o cheiro de muitas coisas, principalmente o cheiro do Jordão.
- Sei como são estas coisas, Bea. Minha irmã passou maus bocados quando esteve grávida do Igor e quase se separou de meu cunhado por não suportar mais o cheiro dele. Isto é uma fase, logo passa.
- Espero que seja mesmo.
- Mas, me fala, Bea: desculpe a intromissão, mas pensou a nosso respeito?
- Pensei. E tudo que tenho a dizer é: é uma loucura! Você caiu do nada em minha vida e desarranjou minhas certezas apesar de eu não compactuar plenamente com elas. Nunca vi nenhum homem ficar a fim de uma mulher grávida! É uma utopia, não dá para acreditar. – E dobrando os braços em sinal de desafio: - Você é louco, Rubem!
- Francamente Bea! A gente não tem como decidir sobre as escolhas do coração. Só penso em você... estou a fim de você, sim, grávida ou não. Mas, vou ser paciencioso e esperar sua vida se resolver. Que nasça o nenê e veremos o desenrolar do seu relacionamento com Jordão.
- Você é louco, Rubem! Piradão.
- Sim sou! Louco por ti!
- Eu, ...eu ando muito confusa. ...Confusa mesmo! Esta gravidez não era para ter acontecido... Eu realmente tenho que deixar a vida andar para ver no que dá. Mas, ...não me espera muito animado pois nem o conheço para sair me atirando assim, na maior, em seus braços.
- Me responde com sinceridade: ao menos, foi com minha cara?
- Rubem, Rubem, Rubem... o que vou dizer? Ainda ontem nem o conhecia. Mas gostei de ti, sim. Você me inspira confiança, e isto é uma sensação boa.
- Bom, fico muito feliz em saber que pelo menos resta um fiozinho de esperança.
- É, pode crer! ...Uma mulher grávida disputada por dois homens! Há, há, há, isto daria um belo livro de romance. ...Mas, vamos falar sério. Quero conhecê-lo melhor. Precisamos nos encontrar para conversarmos e,
- Opa! Será que ouvi direito? – Atalhei.
- Sim, Rubem, ouviu. Eu vou tirar uma semana de férias no começo do mês que vem. Passa aqui na última semana deste mês e vamos combinar um dia para nos encontrarmos e conhecer-nos melhor. Que tal?
- Perfeito, Bea. Passo aqui mesmo. Mas, vê se você então me atende antes da vovó, certo?
- Combinado!
Peguei suas mãos com as minhas, apertei-as e senti uma troca de energia muito forte. Neste meio tempo ela chegou seu rosto perto do meu ouvido e sussurou:
- Obrigado pelo carinho, Rubem. Está me fazendo muito bem e teu cheiro não me enjoa.



                *************



Na semana antes das férias de Bea, combinamos nosso encontro que seria na sexta-feira seguinte, onde passaríamos a tarde no Shopping em São Leopoldo, e nos conheceríamos melhor.
O tempo para mim parou. Aquela semana seria uma eternidade.



                *************




Na Terça-feira daquela semana, perto do meio-dia, estava almoçando em casa, quando bateram à porta. Fui atender; era Adroaldo, esboçando um olhar estúpido e profundo:
- Rubem, ...fiquei sabendo de uma coisa muito desagradável!
- O que é?
- ...
- Fala, homem! – Desesperei. No silêncio nervoso dele percebi que não sairia dali notícia boa mesmo. Na hora pensei em minha família, mas Adroaldo falou:
- Sabia que a Beatriz, a tua pretendida Bea, era noiva de um tal de Jordão?
- Era, não; é! ...Êpa! Espera aí... ...aconteceu algo?
- Pior! Aconteceu! Ela era noiva! Esta noite...
- Fala homem!!! – Gritei.
- Calma, Rubem! ...Esta noite sofreram um acidente de carro.
- Fala, fala! E Bea?
- Calma, deixa eu contar! ...foi com o carro do pai de Beatriz; Fausto, o irmão dela, dirigia. Iam além de Beatriz, no carro, a mãe dela e o noivo Jordão. E,
- Quem morreu? Ou, morreu alguém? Fala!!! Pelo amor de Deus, Adroaldo, diga logo. Está me deixando angustiado!
- Espera aí! Deixa eu contar com calma!
- Fala!
- Eles iam no aniversário de uma tia de Beatriz em São Leopoldo. Quando desciam o morro da antiga Quimisinos, sabe, ali na Scharlau,
- Sei, sei, continua!
- E vinha atrás um caminhão carregado de canos. Ele veio perto e não conseguiu frear por causa do peso da carga, entrando na traseira do fuca. Jordão morreu na hora,
- Óh, não,
- Beatriz perdeu a criança e muito sangue. Estava grávida, sabia?
- Sim, sim, e?
- E está muito, muito, mas, péssimo mesmo no Hospital Centenário em São Leopoldo, na UTI. Está por um fio e não sabem se vai aguentar. Está todo mundo comentando e,
- Coitada da Bea! – Eu tremia como se estivesse com febre. Pensei no nosso encontro que estava marcado e enguli em seco. – E Fausto? E a mãe de Bea?
- Só se arranharam um pouco. O pior foi com Bea e Jordão porque sentavam atrás. Jordão justamente estava sentado no lado onde o caminhão tentou passar para não bater, pegando ele em cheio.
- E Bea, me diz: onde mesmo está internada?
- Na UTI do Centenário em São Leopoldo. Precisa de muito sangue.
- Sabe qual é o tipo?
- Claro. Como hoje minha praça de vendas foi em Sapucaia, na volta passei lá e doei. O sangue que precisam é B negativo.
- Pena, não posso doar. O meu é B positivo. Mas, vamos lá vê-la?
- Não adianta. Ela está em coma.
- Coma???
- Sim, em coma. Bateu com a cabeça e teve traumatismo craniano.
- Tem certeza que está em coma?
- Sim.
- E esta ainda! Pode acordar sem conhecer ninguém... pode ficar em coma anos a fio!
- Não é bem assim, Rubem.
Uma pausa se fez. Meu meio almoço empedrou no estômago e eu estava ofegante, com o coração querendo mais espaço. Cruzei os braços, respirei fundo e disse:
- Por que teve que ser justo a Bea? Agora que eu tinha uma grande esperança em me acertar com ela, está com a vida por um fio, quem sabe, sem volta... – Minha adrenalina estava no máximo de seu nível, minha voz ficou embargada. Completei: - Justo a Bea!
- Rubem, não seja tão pessimista! Tudo pode acontecer.
- Sim, Adroaldo, ela pode até morrer!
- Ih, sai pra lá com esta língua de trapo! Respeite ao menos o azar dos outros.
- Tá, tá, não se altere! Foi só o modo de me expressar. Tudo haverá de dar certo e tudo se arranjará. ...Quem sabe, ela voltará logo do coma, normal, sem sequelas!



            ************



Não demorou muito para toda a cidade ficar sabendo do acidente. Bea era bastante conhecida e todos a queriam bem. Tinha caído um pouco da moda quando engravidara, mas com o tempo, o pessoal foi acostumando, aceitando-a, como se tudo estivesse normal. Cidade pequena é fogo!
Bem, a noite não estava muito longe e Cris novamente iria se encontrar comigo.
No encontro ocorreu outro atraso como de costume, para “desdobrar os velhos”, como dizia, e Cris só chegou às nove e meia. Não fosse aquela paixão insegura, a teria mandado plantar batatas naquele mesmo instante em que ela, toda sorrisos, me encontrou.
Tinha ido ver Bea no hospital e eu nem sabia que as duas haviam estudado juntas. Cris estava muito abalada com o fato (assim como eu, mas não demonstrei) e a noite foi bastante monótona. Para dizer a verdade, foi um saco! Quando cheguei em casa, maldisse o encontro e fiquei matutando um bocado de tempo para ver se realmente existia polarização por Cris. Só fui dormir quando obtive a certeza. O amor é uma coisa tão incerta, que a gente procura arrancar dele todos os porquês. Quer-se ter tudo esclarecido com provas concretas e tudo pesadinho na balança. Já ocorreram casos de estar apaixonado um dia sim, um dia não e, no fim das contas, a balança sempre se equilibrava. É uma dúvida tão horrível que não aconselho ninguém a passar por isso. Mas, e sempre este “mas”, é a lei da relatividade. Não a de Einstein, mas sim, da relatividade do dia-a-dia: “O que deve ser, será!” Já dizia o poeta. Há ainda a suposição de Cris: dois gênios semelhantes podem se atrair anos, mas se não forem destacados, iguais, qualquer dia: BUM! Acontece a separação.
Nessa noite pensei muito em Cris, em seu jeito de ser, em seu perfume, em Bea e sua terrível situação em coma e em minha atual situação a respeito de amores. Tudo era um mar de incertezas...



                ************



Passaram-se alguns dias. Cris e eu continuávamos nos encontrando, porém menos frequentemente, e, por enquanto, sem assumirmos compromissos mais profundos. Bea continuava recebendo bê negativo e ainda estava em coma. Eu ainda não tivera coragem de visitá-la. Os médicos diziam que ela não resistiria. A expectativa era geral.
Como o calor e o movimento no Ice Xande aumentaram, Alexandre colocou uma garota a trabalhar com ele. E o movimento aumentou muito mais... Por que? Bem, a Bida, como a chamavam, era a nova contratada da sorveteria e era da mais formosa compleição criada pela natureza: era ela correndo de mesa em mesa, atrás do balcão e do balcão para as mesas, balançando aqueles seios enormes, deixando engasgado todos os seus frequentadores. Além disto, Bida possuía um cabelo lindo, alinhado, deixando aparecer bem o rosto cor de sorvete-de-coco-queimado; pernas compridas ofereciam-lhe uma altura avantajada e um bumbum bem arrebitado demarcava o trajeto de sua tanga fio dental. Seus olhos eram uma espécie de varilux: de dia eram mais verdes e à noite eram mais azuis. Meio loira, completava-lhe o rosto um par de covinhas discretas nas bochechas, quando sorria.
Levei tantos beliscões de Cris por causa de Bida, que cheguei a crer firmemente num traço comum em nossa polarização: quando bate o ciúme é porque o amor já se instalou. Nosso relacionamento começava a se tornar especial.
Voltando à Bida, ela era linda, boa de corpo mas totalmente desprovida de pensamentos e brilhantismo. Isto se via pelo modo como respondia às perguntas dos frequentadores do Ice Xande. E, por inescrupulosidade do destino, a amava. Eu?! Que só sonhava com garotas cultas, geniais, inteligentes!!! Maldisse meu coração que escolhia as garotas erradas para mim. Mas, resolvi deixar a vida levar o barco da maneira que lhe era melhor. Bida me balançava com seu balanço gingado por entre as mesas, e Cris me embalava com sua cultura, sua inteligência e sua sabedoria. Dois fogos e eu no meio. Para completar, Bea, em coma, por quem eu realmente sentia algo especial, puxando em ambos os lados, com a corda bamba...

                ***********



- Com licença?
- Pois não! – Respondi. Fiquei matutando sobre aquela voz familiar ao meu lado. Aconteceu no cinema, no qual eu entrara atrasado e já estava tudo escuro e poucos lugares sobraram. Como demorei para me ajeitar, foi-me feita a solicitação a fim de não impedir a visão da tela pela pessoa ao meu lado. Perdi metade do filme tentando localizar de onde conhecia aquele timbre familiar.
Fim do filme; quando as luzes se acenderam e a minha memória ainda estava encucada sobre a “voz”, com um pouco de surpresa vi tratar-se de Bida. Ela já havia saído da linha de bancos quando me levantei. Olhou para mim, sorriu aflorando as covinhas nas bochechas e abanou. Parecia muito feliz em me ver naquele ambiente diferente. Fiz um gesto para que me esperasse. Ela aguardou. Em rápidas pinceladas mentais pensei sobre os assuntos abordáveis, afinal, teria que ser uma conversa bem pomposa para preencher aquela cuca oca. Saíram estas palavras:
- Filme como este não mexe com sua emoção, né, Bida?
- Me chame de Anita, sim?
- Óh, desculpe, Anita! Todo mundo chama você de Bida e, ...eu nem sequer sabia o seu verdadeiro nome. Por isso não pode me culpar. Achei também o seu nome muito lindo e,
- O que você queria? Por que me fez esperar?
- Ora, sabe, a gente...
- Não me vem recrutar para que eu faça um serãozinho especial e prepare dois “duplos creme e morango” um com cobertura de “menta e chocolate” para você e aquela – debochando – intelectualóide sabidona do brejo.
- Só se fosse com você, eu pediria!
- Então, tente!
- Não, Bid, hã, Anita! Meu desejo é ter sua companhia num refrigerante bem geladinho, e quem sabe, num lanche. Topa?
- Deixa eu ver... – esboçando um sorriso doce, com aquelas covinhas encantadoras, - precisa me convencer primeiro.
- Bom, se é assim, lá vai: Anita, quero conhecê-la melhor. Para que isto aconteça, desejaria levá-la a uma lancheria e lhe pagar um lanche e um refrigerante. Enquanto saciamos nossos seres, saciaremos também nossas mentes sobre as curiosidades e particularidades de cada um. ...Então?
- Há, há, há!
- Que foi?
- Delicioso!
- Fui convincente?
- Brilhante! Jamais fui convidada por alguém com tanto estilo! Se superou!
- Ora, não me faça corar! Pediu para eu ser convincente e eu procurei as melhores palavras para realmente a persuadir a ficar comigo um pouco, pois não queria perder esta oportunidade em conhecê-la melhor.
- Bem, eu topo! Me convenceu! E agora?
- Agora vamos jantar. Conheço um lugar. Venha!
O cinema já estava vazio e entravam os espectadores para a segunda edição. Saimos.
Em largos passos, perto do cinema, entramos numa lancheria. Que belo ambiente! Estava toda decorada em verde-musgo. O complemento era com diversos vasos de samambaias espalhadas pelas paredes e pelo balcão, cada uma cuidada como se fosse a única do recinto. Ali tudo era verde: luzes, cadeiras, guardanapos, toalhas. Estes detalhes simplesmente envolveram Bida, ou melhor, Anita, deixando-a parada um bocado de tempo a fitá-los. Sentamos. Anita puxou logo conversa:
- Você está sendo o primeiro a me convidar para sair e jantar. Os caras daqui dão a impressão de nem terem criado barba ainda. Esta gentalha cheira só a má-intencionada!
- Como assim?
- Ora, os caras aqui, se convidam a gente, é par conhecermos o seu quarto, ou, maliciosamente, o seu “som”. Isto se não falam diretamente em motel. Ninguém pensa em fazer amizade quando aparece uma garota nova no pedaço. Só pensam em sexo e em cama!
- Hum, interessante...
- E você agiu diferente. Achei legal!
Aproveitei o embalo, arriscando:
- Sobre os caras, é inegável que existe o desejo de lhe dar uma cantada, afinal,
- O que é isto? – Cortou ela de soslaio. – Tá me cantando?
- Não!!!
- Olha, se tá  afim de um programinha, pegou o bonde errado. – Pegou a bolsa e levantou. – Passe bem!
Fez menção em sair. Levantei também e a segurei pelo braço, dizendo delicadamente:
- Anita, Anita, espera! Se quisesse cantá-la, agiria de maneira diferente. Jamais a traria para uma lancheria cheia de gente. Somente a convidei para lanchar comigo, para que pudéssemos nos conhecer melhor. Sobre cantadas, eu quis unicamente fazer uma brincadeira para quebrar o gelo entre nós, já que é a primeira vez que conversamos, mas vi que fui mal. Desculpe!
- Assim está melhor.
Sentou de novo e largou a bolsa na mesa. Sorriu, esboçando suas covinhas. Pareciam dois umbiguinhos. Eu estava me derretendo em desejo de roçar aqueles lábios sensuais, em acariciar todas estas formas voluptuosas que formavam seu corpo, enfim, de ser dela, ser sua cobiça. Mas, seu gênio era indomável, exigindo destreza em sua conquista.
O garçom nos entregou os tablóides do menu. Pegamos eles, abrimos e com surpreza vi que também eram impressos em papel verde. Fizemos nossos pedidos. Para formalizar minha aproximação com ela, pedi o mesmo lanche: Xis galinha com rodelas de salaminho dourado em medalhões de cebola. Ela segurou minhas mãos amigavelmente, me fitou e sensualmente disse:
- Que tal começarmos nossa amizade com você dizendo seu nome?
- Me chamo Ru,
- Ah, deixa eu ver... – Cortou ela. – Fora às vezes que aquela “brejeira” te chama de “mano”, ela também...
- Espera, eu,
- Ela te chama de Rubem! É Rubem teu nome?
- Posso falar?
- E quem te proíbe?
- Você! Não consigo falar uma frase inteira e você já me corta! Por favor, deixe eu também falar, certo?
- OK, desculpe; às vezes, minha língua não me obedece.
- Mas, sobre meu nome, sou Rubem, sim. Gosta?
- Amei! É um nome imponente! ...Mas, por que a ‘brejeira’ te chama de “mano”?
- É uma história comprida e não sei se gostaria de ouvir.
- Tenta!
- Bom, a Cris me chama de mano porque temos muitas afinidades e,
- A Crrrriiiis! Grande coisa!
- Parece que está com ciúmes?
- Eu? Há, há, há! Ciumes daquela pernuda brejeira? Capaz! Mas, deixa assim, vamos falar de nós...
Nesse ínterim chegou o garçom com os pratos de lanches que havíamos encomendado, ricamente enfeitados com salada de alface e tirinhas de couve. Indaguei-lhe sobre estes adornos, os quais não constavam nos dizeres do menu, ao que ele respondeu:
- Cavalheiro, vê-se que é a sua primeira vez a frequentar o nosso estabelecimento. Aqui vivemos natureza. Não servimos nenhum prato sem  o acompanhamento de algum detalhe em verde.
- Maravilha! Maravilhoso! Devo parabenizar este estabelecimento pela iniciativa! Vocês são o último recanto da natureza pura. Parabéns!
- O-obrigado! – Respondeu o garçom. – Bebem alguma coisa?
- Anita? – Disse eu. E ela:
- Uma coca, por favor!
- E o cavalheiro? – Disse o garçom.
- São duas! – Completei.
Ele saiu. Minha cuca trabalhava, quase fundida, analisando essa garota explosiva, estranhamente sentada em minha companhia, a fitar-me com voluptuosa malícia. E lá no Ice Xande era uma donzelinha bobinha, desorientada, desmiolada, sem futuro, balançando seus enormes seios entre os ‘milk shakes’ dos tarados frequentadores. Resolvi cavocar em seu passado:
- O seu sotaque não é de gaúcha. Posso saber de onde é?
- Sou de Campinas.
- Campinas, São Paulo?
- Sim! Qual é a surpresa?
- Ora, não se encontra uma campinense nova todo o dia perdida aqui no Caí.
- É, olhando por este prisma, tem razão.
- E como  se perdeu aqui, no Rio Grande do Sul?
- Não me perdi. Apesar da cor de nordestina, sou gaúcha, tchê! Meus pais também são e resolveram voltar após o falecimento de meu vovô.
- Por que só depois do falecimento?
- Porque ele deixou algumas terras de herança. Trinta e dois hectares, lá em Nova Colúmbia.
- E para você não ficar isolada no interiorzão veio para o Caí, conhecer os rapazes e,
- Está me subestimando, Rubem!
- É?
- Sim, eu vim para cá, para continuar meus estudos.
- Estudas? Aonde?
- Estou fazendo Comunicação na Unisinos, à tarde.  À noite, como você sabe, trabalho com o Xande e de manhã, durmo, estudo, lavo minhas roupas, passeio... faço compras, e por aí vai...
- Vida puxada, hein?
- É, meu pai não tem condições financeiras de bancar minha Faculdade sozinho. Assim, pelo menos, salvo minhas despezas particulares.
- Anita, estou surpreso! Melhor, gostei de  ver! Sempre tive bastante consideração por pessoas esforçadas como você. Este tipo de atitude faz ver o quanto um ser humano é capaz, quando dirige seus esforços para um único fim... O qual no seu caso, é a Faculdade.
- Para você ver! Me faço de burrinha lá no Ice Xande para não dar chance aos aproveitadores. ...Mas, me fale sobre você! O que faz além de cantar todas as garotas da cidade?
- Sou músico.
- Só isto?
- O que??? Acha pouco? ...Mas, para contentá-la, sou músico só para satisfazer meu ego. Trabalho mesmo com tornearia de madeira.
- Legal, Rubem. Imagino você pensando nas garotas e torneando aquelas pernas de mesa. Deve ser muito hilário.
- Deve um dia conhecer minha empresa para ver como funciona. Garanto que irá se encantar...
- Sim, com certeza, assim, como estou encantada por este restaurante...
Nisto chegou o garçom trazendo as duas cocas. Após uns goles do refrigerante e algumas garfadas no lanche, resolvi aprofundar-me um pouco mais:
- Anita, devo confessar que fazia um juízo completamente errado ao seu respeito!
- Em que sentido?


- Ora, em vários sentidos... você parece tão desligada e ingênua lá o Ice Xande, parece diferente, outra pessoa.
- Ah, lá eu sou assim para não dar moleza para nenhum mal-intencionando. Aqueles gaviões ficam rondando a gente, sabe?
Rimos. Eu insinuei:
- Mas, agora está dando um pouco....
- Bem é que notei  em você um cara não muito pretencioso.
Exultei. Ela não me conhecia, danadinha. Prossegui:
- Pretencioso?
- Não, diferente.
- Diferente como?
- Ora, por exemplo... – Anita vacilou um pouco, parecia estar com medo ou vergonha de falar. – Hã, você, por exemplo, não solta piadas indiscretas quando estou trabalhando.
- Seja sincera, Anita! Você não queria dizer isto primeiro. Você está querendo dizer outra coisa...
Plantei esta, para tentar colher o que Anita tinha contra Cris, pois, duas vezes a ofendera chamando-a de brejeira. Eu tinha certeza que nestas entrelinhas havia uma pitadinha de ciúmes e ela estava por aflorá-lo a qualquer momento. Falei:
- Anita, pode se abrir comigo. Estou querendo conhecê-la melhor, e assim, quanto mais franqueza a gente tiver, melhor será. Diga o que iria falar?!
Titubeando ela respondeu:
- Bem, ...um cara como você, ...amigo de todo mundo, ...conhecido, ...pagando sorvete para uma “tralha” como a “diaba brejeira”; convenhamos! ...Ainda não percebeu que “aquilo” não é uma garota à sua altura?
- Hã, eu...
- Você se tortura horas a fio com as idéias filosóficas dela; ela viaja por universos inimagináveis tentando provar que são reais, fala termos que até o dicionário duvida que existam e atura aquela “gralha” matraqueando o tempo todo, enquanto poderia estar se divertindo, rindo, na boa!
- Mas, eu me divirto com ela!
- Com todo aquele papo de pirada? Ela fala demais.
- Bom, eu, sabe, ...também falo!
- Mas ela fala muito mais do que você.
- Talvez...
- E você deixa tudo rolar, assim, na boa.
- Gosto da Cris.
- ...Ou só se encantou com seu saber?
- Não! Sinceramente, eu gosto dela!
- Quando estão juntos, dá para perceber que ela domina totalmente a situação e você some na sombra dela.
- É o jeito dela, Anita. E eu gosto!
- Gosta de ficar à sombra de alguém? ...duvido!
- A Cris não me sufoca.
- Pensa bem, Rubem: será que ela não te sufoca? ...desgruda! Ela não te merece.
- E quem haveria de merecer-me?
- Ora, tantas garotas... Inclusive uma simples garçonete!
Depois desta confissão, não havia dúvida nenhuma sobre o efervescente ciúme dela por Cris. E Anita jamais o demonstrara lá no Ice Xande. Senti um reprimido orgulho vaidoso, tive vontade em me atirar em seus braços. E meu orgulho foi coroado com uma saída categórica de Anita:
- Rubem, se  minha companhia agrada, tenho folga todas as noites de segunda-feira; que tal?
- Nada contra. Amei a idéia, e é claro que sua companhia me agrada, até bastante. Quero encontrá-la, sim!
Retirei a última folhinha verde de alface do prato, a qual Anita, mais do que ligeiro, se prontificou a devorar, pois o seu prato já se encontrava vazio fazia tempo. Alcancei aquele pacotinho feito de alface todo embrulhadinho, dentro da etiqueta, com o garfo. Ela aproximou sua boca e, num movimento lúbrico mordiscou a ponta da folha, levando-a lascivamente à boca, até fazê-la desaparecer atrás de seus lábios fetichosos. Restava ainda, meia garrafa de refrigerante para mim, e o dela já havia terminado. Derramei um pouco em meu copo e lhe ofereci. Ela aceitou, predispondo de novo sua boca lascivamente ao gargalo da garrafinha. A servi. Ela passou a língua discretamente por sobre os lábios e sorriu. O seu agir era tão comprometedor, que por um instante até tive o desejo em convidá-la para conhecer o meu “som”, mas, relembrando suas mágoas do início de nossa conversa, nada fiz.  Paguei a conta e me prontifiquei a levá-la para casa. Anita negou minha companhia. Foi sozinha, dizendo que não era longe dali.
Quando cheguei em casa, primeiro um super banho. Depois, coloquei um cd no som e comecei a divagar sobre as duas garotas que estavam mexendo comigo. E, no meio da cadência marcante do solo de “Samba Pa Ti”, pensei na personalidade forte e determinada de Anita... Como uma conversa podia modificar tanto  a impressão que se tem de uma pessoa... Anita não era oca, burra, muito pelo contrário: Faculdade de Comunicação na Unisinos! Poxa, se contasse isto aos frenéticos frequentadores do Ice Xande, ririam de mim. Uma  garota super-aplicada tentando trabalhar seu futuro às custas de um tremendo esforço no presente. Linda, gostosa, inteligente e perspicaz, ela completava todos o meus anseios quanto à mulher ideal. Concluí que ela possuía ao todo ao maior quantidade de requisitos para se tornar a minha cara metade. Faltava porém, o essencial: sentir aquele ‘tchã’! Um coração apaixonado sempre dá aquele ‘tchã’ quando se ama. Eu me sentia melhor, mais a vontade na presença de Cris... Mas Bida era muito mais bonita, mais gostosa, mais mulher, e Bea, moça simples, comum, nem tão bonita, em coma, era a única que balançava minha alma de verdade, fazendo sentir aquele ‘tchã’. Bom, imagina só o quanto estava apaixonado por Bea, a ponto de declarar-me a ela, grávida.
Com este novo encontro, imprevisto com Anita, minha vida caminhou mais ainda, para dentro das incertezas...




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Minha primeira e única visita para Bea foi na quarta-feira daquela semana. Fui a São Leopoldo especialmente para vê-la. Parecia um prenúncio. Quando entrei na sala onde ela se encontrava, na UTI, cercada de, pelo menos cinco aparelhos, meu coração acelerou. Quando vi aquele pedaço de gente, que há poucos dias era um sol radiante flamejando a todos  os que a rodeassem, naquele estado, chorei. Virei-me de costas para ela e chorei copiosamente. Meu mundo ruiu em cima de minha insignificância frente ao quadro em que ela se encontrava. E, em meio ao bip-bip do monitor cardíaco, meus soluços fizeram coro e eu comecei a tremer fremitamente. Não me controlava, parecia que algo me chacoalhava. Meu queixo batucava num ritmo acelerado parecendo um sapateado de dança norte-americana. Virei meu olhar para ela: rosto descolorado, lábios roxos, cabelo empastelado enfaixado com gase ensanguentada, não suportei a cena e senti me desfalecendo. Uma enfermeira, que se encontrava aplicando uma endovenosa em paciente ao lado de Bea, ao ver meu estado, me socorreu, tirando-me da sala. Tomei uns dois ou três comprimidos diferentes, dos quais nem sei o nome nem a finalidade. Porém, posso garantir que havia um calmante entre eles, pois o coquetel logo dissipou aquela angústia inicial que se apoderou de meu ser.
Refeito, entrei novamente na UTI e fui para perto de Bea. Encarei-a. Seu olhar aberto, parado na imensidão denunciava seu estado acéfalo. Segurei com firmeza sua mão esquerda e disse:
- Êh, valentona! Vai sair dessa!  Olha que minha afilhada precisa de mais vestidinhos verde água e você é a única que sabe escolhê-los com um ...jeito especial.
Olhei firme para ela. Meu coração estava aos pulos, louco para explodir de compaixão. Continuei:
- Bea, por que não nos conhecemos antes? Desde que a vi me apaixonei e, ...
Meus olhos se encheram de água. A enfermeira que estava atendendo mais uma pessoa na mesma sala da UTI ficou me fitando com o canto dos olhos, temendo ter que agir mais uma vez comigo. Mas, sob efeito dos comprimidos que tomei, estava firme, mas emocionalmente abalado. Continuei:
- Sonhei um mundo sem igual para nós três: eu, você e seu bebê. Mesmo quando grávida, a queria mais que qualquer pessoa neste mundo. Meu coração escolheu você e eu... não me opus, ...não lutei contra.
As últimas palavras já sairam meio embargadas. Virei-me novamente de costas para ela e chorei. Chorei fremitamente, parecendo uma criança longe de sua mãe. Aquele ser humano, angelical, em fase de passamento, outrora fora o destino de todos os meus sonhos. Tinha motivos suficientes para estar me sentindo daquele jeito. Enguli um nó bem grosso, voltei a ela e novamente a fitei. Aqueles olhos que eram de um brilho intenso, envolvente, agora não passavam de um par de contas discretas em sua face. Peguei em sua mão mais uma vez, apertei com carinho aqueles dedos esfolados. Tive a impressão que ela conseguiu desviar seus olhos, num movimento íntimo em minha direção, enquanto seu polegar nicou em minha mão, tentando me transmitir algo. E eu disse:
- Bea, coragem! A vida te espera!
Ao falar a palavra “vida”, meus olhos se encheram mais uma vez de lágrimas. O momento foi muito emocionante. Deu-me a impressão de que ela estava esperando minha visita.
Beijei minha mão e a pousei delicadamente em sua testa, descorada e deformada, cheio de marcas e de um hematoma que já se dissipara deixando a pele escura.
Não resisti ao momento e dei um beijo delicado em sua face, sussurando:
- Ainda quero namorar contigo. Estou te esperando!
Um calafrio atravessou meu corpo, pois senti que talvez nunca chegaria a ser seu verdadeiro namorado.
Seu olhar parado me deixou a impressão de dizer: “É, ainda vamos ser namorados!”
Saí. Coração a mil, tremendo. Quando cheguei na portaria, ouvi os alto-falantes anunciando:
- Emergência! Emergência! Paciente no leito catorze da UTI com parada cardíaca. UTI, emergência! Paciente no leito catorze, procedimento com eletrochoque...
Parei. O leito catorze da UTI era o de Beatriz. Quis voltar, mas um enfermeiro me persuadiu a não fazê-lo devido ao meu estado emocional. Mas, eu ao mesmo tempo, queria estar ao seu lado. Quando cheguei de volta à UTI, o leito catorze já estava vazio. Senti a morte rondando os corredores daquele hospital.



                **************



O falecimento súbito de Bea me deixou fora de circulação vários dias. Parada cardíaca. No começo chorei muito. Parecia ter perdido a namorada. E, nem sequer nos conhecíamos direito. Mas, acabei me conformando com a idéia de que ela estaria numa bem melhor na outra vida e, provavelmente com Jordão.
Durante o seu sepultamento, me aproximei de Fausto, seu irmão e ambos nos consolamos. Acabei tornando-me um ótimo amigo dele e com isto aprendi a conhecê-la melhor e ver que tesouro de ser humano ela fora.
Bida e eu nos encontrávamos regularmente às segundas-feiras na lancheria verde-musgo e ela fazia questão de sempre mordiscar lascivamente a última folha de alface do meu lanche. Ela era especial. Aquelas duas covinhas que apareciam em suas bochechas quando sorria, cada vez mais me envolviam os pensamentos. Nosso relacionamento estava formidável, mas ao mesmo tempo, Cris e eu continuávamos tomando sorvetes no Ice Xande. O outono já entrara e a época, aos poucos, estava despropiciando o consumo do produto. Foi esta, uma das poucas vezes em que o frio trouxe uma vantagem: a de ir na casa de Cris tomar chimarrão. Bida – agora já fora liberado para chamá-la assim – nem desconfiava. Cris, por sua vez, jamais fez objeções por eu ir às segundas visitar meu tio no Portão. Na realidade, saía com a bela fera, sua rival. E, ao invés de estar tudo azul, maravilhoso por eu estar namorando as duas ao mesmo tempo, estava tudo um belo de um breu ao meu redor. Cris e eu nos dizíamos namorados porque tudo indicava sermos feitos um para o outro. Bida e eu também nos dizíamos namorados porque não havia o conhecimento por parte dela dessa tal de polarização. Eu gostava muito dela; bem dizer, quase a amava. Mas não o suficiente para dizer olhando em seus olhos: “Eu te amo!” Do contrário, com Cris me declarava sem titubear.
Como ambas aos poucos foram exigindo mais de mim, tive que optar por uma delas. Com qual ficaria? As duas eram inteligentes, belas, delicadas, alegres e amorosas. Incertezas...
Em várias noites, antes de adormecer, me corroeu a incerteza da escolha. Comparava a dúvida à escolha entre cerveja e vinho na hora de uma refeição: ambos predominam de acordo com o tipo de acompanhamento. Mas, entre o amargo da cerveja e o doce do vinho se esconde o álcool, o ingrediente danado que nos faz revesar entre um e outro. E assim me encontrava: embriagado pela paixão. Queria ficar com as duas, e usufruí-las de acordo com as oportunidades. Egoistamente era esta a verdade! Todavia, o destino se encarregou de optar por mim.
Acabou tudo no momento em que, um dia, tomando chocolate quente na lancheria verde-musgo com Anita, entrou Fausto e eu o convidei para sentar conosco. Os dois começaram a conversar como se já se conhecessem há anos, porém duvido que já tivessem se visto alguma vez. Deixaram-me completamente de escanteio. Como era estupidamente inapropriado meter-me na conversa deles, fiquei observando, boquiaberto e estupefato, pela maneira como o momento estava acontecendo: simplesmente presenciava o acontecimento daquela polarização de que Cris e eu tanto faláramos. A conversa entre eles fluia em sequência, cada qual falando por sua vez, sem se interromperem. Fausto e Anita mostraram harmonia e afinidade desde o primeiro olhar. O romance deles começou nessa noite; completavam-se em suas frases e seus gestos. Os olhos de ambos brilhavam feito cristais. Lembro que Fausto a levou para casa e Bida nem se lembrou em despedir-se. Fausto engrolou um ‘tchau’ disperso. Fiquei sozinho, a mesa cheia de alimentos não terminados. De soslaio, divisei um garçom cochichando com outro, referindo-se a mim com chacota. O outro, por sua vez, cutucou o colega e senti que ele engrolou algumas palavras de ordem e procedimento. O outro se virou, começando a espanar o canto do balcão com uma toalhinha. Eu, em minha solidão, fiquei feliz e triste ao mesmo tempo. Mas, aos poucos, a felicidade tomou o lugar todinho nos meus pensamentos. Primeiro, porque só me sobrava a Cris; segundo, porque nossos pensamentos sobre o amor foram acertadamente corretos. Não havia margem de erros, pelo menos no caso Bida – Fausto. Apoderou-se de mim uma nessecidade enorme de contar a experiência detalhadamente para Cris. Tinha a certeza que ela não romperia comigo, por ter mantido um caso de amor “paralelo” ao seu. Porém, um rompante de ciúme colérico e frenético provavelmente haveria de enfrentar.
Na noite seguinte ao ocorrido encontrei-me com ela. Para minha surpresa, ela sabia de tudo fazia tempo e me disse ter conhecimento de todas as minhas incertezas e decisões. E que, para não me forçar a uma decisão incerta devido às pressões, deixou-me livre  e solto aventurar neste caminho turbulento da paixão. Para ela, a maior alegria foi eu ter contado tudo, não escondido nada. Mas, confessou sobre minha paixão por Bea:
- Rubem, nunca forcei a barra contigo porque sempre vi que acabarias com a Beatriz. Vocês, apesar de se conhecerem pouco, tinham tudo a ver, eram feitos um para o outro, uma polarização perfeita. Porém, quis o destino que...
- Deixa assim Cris. Não vamos mais falar nela.
Meus olhos se encheram de lágrimas, sendo acompanhado por Cris, que também ficou embargada.
Engulimos juntos, respiramos fundo, e então, perguntei:
- Com ficaste sabendo do meu caso com Bida?
- Ora, Rubem, como tu sempre dizes: cidade pequena é fogo! E tu não imaginas, mas ao menos duas vezes estive na lancheria verde-musgo, escondida, longe, no canto dos garçons, só para observar voc    ês e ver se viriam a namorar de verdade alguma dia... Nada a ver. Vocês são amigos, bons amigos e imaginavam-se apaixonados. Estavam iludidos. Esta é a verdade.
- Desculpe, Cris, por eu ter agido assim, eu,
- Psssit! Cala! Deixa de falar, Rubem. Aconteceu e não resultou em nada. Isto é o que importa!
Neste momento, tomei Cris em meus braços e a abracei com uma intensidade tal, que senti seu coração pulsando junto ao meu, num ritmo digno de enlace, de amor.
Naquela noite, muito ainda conversamos sobre essas certezas incertas. E no fluir de toda esta natural espontaneidade minha mente livre da pretensão por outras garotas, despertou em mim aquele tchã que só sentira por Bea. Foi esquisito, maravilhoso, esfusiante. Cris já o sentira há mais tempo e não o havia me confessado. Mas eu, senti um fervilhar gostoso no coração, algo tipo como formigamento, deixando meu ser especial. E aquilo com certeza era amor. Combinamos estreitar nossas relações daquele dia em diante.
Este acontecimento fez mudar um pouco a minha suposição sobre o amor: não é só à primeira vista que se gama! Pelo menos, entre mim e Cris, não aconteceu isto. Despertou o tchã do amor depois de vários meses de relacionamentos. Inclusive, meu “som” ela já conhecia. Já ouvira ‘músicas’ de todos os ‘gêneros’ comigo... E pensar que tudo começou com a margarina barata que fiz entrar em sua blusa ‘sem querer’ no supermercado...
Como agora os dias eram belos: nos sentíamos leves plumas a flutuar nas brisas da paixão. Cris fazia me sentir bem e completo em todos os momentos. Havia afinidade.



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Incertezas... Pois é, o caso de se amar é complicado! Veja a quantas andava o nosso romance após onze meses de namoro: resolvemos noivar. Eu me tornara um amigaço do pai dela, o qual indubitavelmente era um poço de cultura e uma lição de vida inimaginável. Não havia medidas nem obstáculos para o que viesse a enfrentar. E seguramente, esta alma guerreira sua filha herdara. A meiguice procedia de sua mãe. E eu a amava. Cris era a essência de um sentimento bom e a certeza de um turbilhão de felicidade.
Fausto e Anita foram morar juntos e seu relacionamento foi marcante na cidade pois eram sempre vistos muito unidos, polarizados, apaixonados.
Um ano após o nosso noivado, Cris e eu casamos e estamos juntos até hoje, melhorando a cada dia nosso relacionamento e nossas afinidades. É, o amor é indescritível! Mesmo que a gente procure determinar um futuro para nosso amor, nossa paixão, o destino dá um jeito e escreve seu rumo independente de nossa vontade. O amor é isto: tudo dá certo, desde que seja ao lado da cara-metade que o destino polarizado nos reservou.



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