quarta-feira, 30 de outubro de 2013

O Lenço



   Hoje foi mais um começo de noite daqueles onde a sombra insiste em tentar velar a luz que tanto busco em sua plenitude nestes últimos dias. É um misto de verdades que me cercam e completam o cenário, e fica difícil não pensar no que eu não gostaria. Fica difícil até separar as vibrações positivas que tanto estou precisando, das vibrações aflitivas, dos sentimentos, da carga emocional. Não são negativas, não. São tênues faíscas que riscam meu mundo como lampejos para anunciar que ainda nem tudo passou. Que tenho que ser forte, entender que é o processo da vida que se faz presente, e este processo não tem pressa, nenhuma pressa, é lento, massacra a cada lampejar, dilapida meus sentimentos em momentos, em instantes, todos os dias como se fosse num esforço ímpar, querer me impor a condição de viuvês. Viúvo é pesado! Acho viúva mais leve. Mas esta condição se instalou em mim, e mesmo corroído por todos estes sentimentos que a ausência da Bere me proporcionam, coloco no papel para compartilhar, já que isto me faz sentir melhor e também atende a tantas pessoas que pediram para eu continuar postando estes sentimentos. Que também se sentem bem nesta partilha. Então, vamos lá.
   Os filhos saíram, cada um seguindo seus compromissos. Wagner na Faculdade e Guilherme na Mostra Caiense de Cinema que ele organiza. Me sinto muito só. Somente só. Garoa leve lá fora nesta noite escura, gota por gota se desprendendo dos telhados e o pec pec delas caindo pulsam com meu coração ainda tão fragilizado. Queria acalmá-lo, muito, mas ele se nega a obedecer. Também não o culpo, perdeu sua metade da força que pulsava junto com ele há pouco mais de mês quando Bere partiu. Respiro fundo. Preciso me distrair para não pensar. Ouvir música! Não. Tem tantas que em vêz de me distraírem vão puxar ainda mais esta lembrança que confesso, é doce, é serena, mas sua vibração não faz bem sentir o tempo todo.
   Scotty está lá fora uivando. Saudades da Bere. E a cada lamento seu, meu lamento interior o acompanha e me sinto no desejo de também poder uivar como ele em uma forma de externar esta acuada saudade da ausência dela. Mais um úivo sentido, muito sentido. Em mim é como uma facada na minha alma. Então, não consigo conter esta insistente lágrima que nestes últimos dias também vem pra fora, sozinha, sem pedir licença mesmo eu não querendo, como se isto já fosse algo normal em minha rotina. Olho para a tela do computador e o que vejo é ela afagando a nuca do Scotty com carinho como tantas vezes fêz. Mais um úivo e minhas lágrimas aumentam. Me angustia ver ela neste carinho, porque na tela está apenas esta folha do bloco de notas aberta esperando minhas dissertações, mas sua presença imaginária ofusca minha tentativa em escrever. Olho pro lado, olhos marejados, óculos embassados, tiro, limpo e vejo Scotty perto da porta ensaiando mais um úivo. Ouço nitidamente a voz dela dizendo a frase que tantas vezes repetiu junto dele ao acariciá-lo: "Queridinho da vovó, vem cá, quero te dar um tsóde (carinho)!" Penso em mandar Scotty calar. Prefiro não arriscar. Talvez então ele aumentasse seus áis.
   Resolvo ir até ele. Me acocoro ao seu lado, afago sua cabeça, seu queixo, falo, elogio, e ele nem me olha. Fita acabrunhado o chão como se ali enxergasse os pés dela. Aqueles pés de anjo, pequenos, com as unhas sempre perfeitas, aparadinhas e pintadas, dentro daquele chinelinho de dedos de alças douradas que ela tanto gostava de usar. Ponho a mão embaixo do queixo do Scotty e tento puxar sua cara para me fitar, mas ele puxa pra baixo, insistindo em fitar o chão. Converso com ele. Ele não muda. Bom, pelo menos parou de uivar. 
   Volto pro computador, talvez fale com alguém para me distrair. Não. Não vou falar com ninguém, porque uma palavra diferente pode ser o suficiente para eu desabar em choro incontrolável. Ando assim. Chorão. Um cara cinquentão que em toda sua vida não chorou o que já chorou nestes trinta e poucos dias. Depois desses anos todos agora descobri o alívio que o ato de chorar dá. Então deixo fluir. Choro mais uma vez. No ritmo dos úivos do Scotty, que talvez esteja mostrando seu modo de chorar assim. É profundo o sentimento. O vazio é muito mais cheio de ausências que a gente possa imaginar. É um volume incontrolável de infimidades que passam pela mente, rebuscando a essência deste vazio, que fazem chorar mais. Mas não há dor. Só há lágrimas e vazio. E enquanto estou divagando nestas palavras, Scotty novamente cai em si e volta a lamentar sua saudade com úivos doloridos. Parece que está sendo torturado, tão sofrido ele úiva. Penso numa solução...
   Quem sabe pego uma peça de roupa dela, usada, mesmo que lavada, ele acalma. Boa ideia. Um lenço! Destes que ela usava para cobrir sua cabeça durante o tratamento na ausência de cabelos! Estes cabelos que tanto ela amava e que a condição da doença fez caírem um a um, lentamente, num sofrimento sem igual. Uma tortura para ela que durou dois meses e que a fez se dar por vencida, quando chamou sua cabeleireira e pediu para passar a máquina zero. Ela amava aqueles cabelos e por horas, quando sadia, muitas horas tratou deles como se fossem sua maior riqueza corporal, para continuar feminina, radiante para mim e de semblante doce como sempre teve.
   Até, quando isto aconteceu aqui em casa, a cabeleireira veio, fez o processo e depois que ficou pronta, Bere me chamou e disse enquanto se olhava no espelho:
   - Vidinha, olha, não fiquei tão feia assim! Achei que tinha uma cabeça deformada mas não, ela é redondinha, perfeita.
   Eu elogiei também, disse que ficou linda, sexi, nobre.
Mas, sinceramente, mesmo eu vendo ela assim, e realmente eu ter falado a verdade pois, olhando para ela enxerguei mais sua luz interior através de seus olhos negros e a ausência de cabelos não apagaria minha admiração por esta luz, senti nas entrelinhas do que ela dissera, sua grande dor em se ver assim, sem seu bem maior, o cabelo. Vi isto nitidamente pelo seu olhar de autocompaixão, louca para chorar, mas precisando se mostrar forte a fim de provar que cabelo não era tudo e que realmente queria a cura, mesmo sem cabelo. Mas, para ela, "seu cabelo era tudo" e eu sabia disto. Deixei ela com a cabeleireira e fui pro banheiro deixar meus sentimentos fluírem e chorei. Chorei de pena. A única vez que chorei de pena dela. Pena em vê-la passar por uma provação a mais, talvez a mais dura porque lhe arrancara da cabeça sua autoestima, pensando no que mais ainda a esperava.
   Vou até o nosso quarto. Onde achar um lenço no meio de toda aquela roupa? Procuro em várias gavetas. Não encontro. Revejo bermudinhas, camisetas, pijamas, abrigos. Roupinhas que ela adorava usar. Abro mais uma gaveta, só roupa íntima. Chamou a atenção no fundo da gaveta uma 'necessaire'. O que tem lá dentro? Puxo um pouco mais a gaveta, tiro aquela bolsa, abro o fecho e vejo o mundo de lingeries que adornaram nossas tantas noites de amor. Uma história a parte num mundo encantado e tantas vezes vivido, intenso e pleno. Mais um úivo prolongado e sofrido do Scotty ecoa pela noite, agora silenciosa. Parou de garoar. Scotty me trouxe de volta à realidade. Fecho a 'necessaire' e guardo. Procuro mais. Finalmente encontro uma gaveta cheia de lenços no criado mudo. Todos eles, cheirinho de limpo, lavados. Mesmo assim peguei um colorido. 
   Levo ele para fora, onde o Scotty está sentado em seu lugarzinho habitual e dou o lenço a ele. Bom, para ver sua reação, é melhor olhar no vídeo que fiz com ele recebendo este presente. Indescritível o que ele sentiu. Me emocionei com a sua reação se adonando daquele pano, me advertindo a não tirar mais dele. Naquela noite ele não uivou mais.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

30 dias sem Você, viúvo. Seus Últimos Passos. Prenúncios.



Hoje tirei a aliança. Foi difícil, só com sabonete e muito jeito. Mas tirei. Olhei para a mão, a marca desta aliança no mesmo dedo, mesmo lugar durante 31 anos, me senti nu. Senti como se algo em mim estivesse faltando. Sensação estranha. Afinal, a aliança jamais saiu do dedo, e sempre ostentou este compromisso ao mesmo tempo doce e sério de um casamento que foi tão desejado por nós dois.
Devolvi a aliança para o dedo. Mais sabonete para colocar. Vou ficar com ela mais um tempo, até não me sentir estranho sem ela.
Já senti saudades. Muitas. Mas hoje não sinto saudades. Estranho, mas a saudade da ausência é quem me faz sentir. A saudade da ausência é quem me pega desprevenido, em detalhes simples, insignificantes para todos, bobaginhas, mas que para mim são como um tufão, que passa e me assola. Como nestes dias depois de jantar, Jornal Nacional terminando, dando boa noite, e instintivamente num flash a pergunta dela soou nitidamente em meu ouvido, como se estivesse presente, dizendo: "Vidinha, lava a loucinha para eu olhar a novela?" Palavras faladas como notas musicais numa melodia, esta frase que foi tantas vezes repetida. ...Bah! Os acordes destas palavras ficaram suspensos no ar, e confesso, ainda até hoje soam como um jingle repetitivo, insistindo em me manter ligado nesta pequena cordialidade que ela com tanto jeito pedia e eu com tanto amor desempenhava.
Saudade da ausência de seu gosto particular em comidinhas diferentes, como fatias de melão, doce, junto com algo salgado tipo bife acebolado. Ou ainda, aquele mesmo jeitinho de pedir as coisas que faziam com que eu nunca negasse: "Vidinha, já que hoje tem carreteiro de linguiça, para acompanhar, frita um ovinho pra mim deixando a gema mole?" - E eu, já no habitual conhecimento deste gosto dela, nem havia posto seu prato na mesa. Estava ali, do lado do fogão, para esperar o ovinho frito do jeito como ela gostava, pois tinha a certeza que o pedido seria feito. Então, quando agora rescinde na cozinha o aroma de carreteiro de linguiça, rasga mais uma vez meu íntimo o tufão da saudade da ausência deste pedido simples, banal, mas de uma ternura sem igual, inegável.
Saudade da ausência esta, que quando fui procurar para trocar os guardanapos, aqueles, de pano que enfeitam cozinha, sala, aquele toque feminino numa casa. Procuro, vasculho e acabo na frente de um gaveteiro no quarto de visitas, o qual eu nunca abri. Abro gaveta por gaveta, e um mundo desconhecido se abre aos meus olhos: nas seis gavetas, em cada uma tem vários conjuntos de guardanapos para todas as ocasiões. Detalhe: todos os conjuntos de 6, 8 peças do mesmo jogo, separados, estão colocados em saco plástico transparente. Tudo organizado. Então, este jeito único dela de fazer as coisas do dia a dia, de preparar simples detalhes para facilitar uma troca de guardanapos, derrapa na saudade da ausência dela e logo insiste em me arrancar mais uma lágrima no canto dos olhos. Reluto, me chamo de bobo, mas o instinto fala mais alto e o choro é inevitável. Deixo rolar, não seguro. Choro. Afinal, estou sozinho aqui diante deste gaveteiro e cada lágrima solta me faz sentir um pouco de alívio. É como transpirar pelos olhos. Nada de dor. É a impotência diante de uma situação que foge ao controle da serenidade da vida. Sabe, aquela sensação de que uma viagem aconteceu, e a volta está se extendendo, e esta extensão será infinita? Algo como sentir que não vai acontecer mais, mas que no inconsciente este acontecimento poderia ser mágico, possível. Mas que no consciente é completamente impossível. Um desejo sem volta e uma volta impossível. Sensação do nada no meio do tudo.
É como aquela estrada que se extende até o horizonte e cada vez que se chega lá, ela aponta outro horizonte mais distante.
Assim eu me sinto. Um rumo a seguir na mesma direção de antes, só que agora sem horizonte definido. E isto dá num vazio que de vez em quando, ao esbarrar em detalhes, faz brotar uma lágrima, discreta, mas que insiste em marcar mais um momento a ser vencido, mais um horizonte a ser encontrado. Bere nunca ficou tantos dias longe de mim. 30 dias. Já são 30 dias! Viajou tantas vezes sem mim, mas aquela volta dela faceira de uma viagem com muitas novidades para contar, comprinhas pinçadas com carinho para cada um de nós, malas de roupas, usadas ou não, todas pra máquina, lavar para guardar, ...aquela volta, não verei mais, não mais acontecerá. A saudade da ausência destes detalhes, que quando eu perguntava o motivo de lavar também a roupa da viagem que não usou, ela respondia:
- Se viajou comigo, merece voltar lavadinha pro armário do mesmo jeito como a que eu usei.
Uma frase, que para mim soava boba, sem sentido na época, agora vibra como uma melodia em meus ouvidos todas as vezes em que ponho a máquina de lavar a funcionar. Seu jeitinho de limpeza, tudo cheiroso, não perfumado, cheiroso! Aquele aroma que dá prazer em sentir, ah, todos esses aromas fizeram nossos anos de vida em comum ter mais intensidade, mais aconchego, se somaram à harmonia de nosso casamento. "Gosto de tudo cheiroso! Eu sou cheirosa!" - Dizia. E mais esta frase soa como melodia a me acompanhar, quando entro no banheiro do nosso quarto e sinto o cheiro gostoso daqueles pausinhos saindo do potinho aromatizante, a dar um cheiro suave ao ambiente, e a saudade de sua ausência assola mais uma vez com sua voz ensinando: "Vidinha, uma vez por semana tem que inverter estes pausinhos para este aroma continuar assim!"
Péraí! ...Sim, acabei de voltar deste banheiro. Fui sentir de perto de novo aquele cheiro gostoso, lavar o rosto e os óculos, tirar estas lágrimas que estavam ofuscando minha visão e poder continuar escrevendo. Perdi a conta de quantas vezes já parei de escrever para fazer isto. Mas quero atravessar isso deste jeito, para aprender a superar lentamente todo este vazio que os detalhes de sua ausência estão me causando. E a soma de todas estas emoções, me puxam para as coisas que foram acontecendo em seus últimos dias. Coisas estranhas, prenúncios.
Tudo começou na viagem que fizemos em Agosto à Itacaré na Bahia para comemorarmos a melhora do resultado dos exames dela, em parte, porque a outra parte, por defeito na máquina de ressonância ficamos para saber o resultado depois da viagem. Ainda bem. Senão ela não viajaria.
Então, um dia caminhando de mãos dadas na areia da praia, ela se achegou a mim, e disse:
- Que paraíso isto, né vidinha? Tudo tão lindo, este céu, este mar, palmeiras... ...pena que não vou ver isto de novo.
Olhei para ela e respondi:
- Como não, querida? Já esqueceu? Fevereiro, Itapema, vamos alugar a mesma casa e passar dez dias lá e vais voltar a ver o mar, o céu...
- Não vou ver mais. - Disse ela. E arremedou: - Tem muito tempo até lá.
Olhei para ela e disse carinhosamente:
- Querida, vamos nos apegar ao que temos conquistado. Muita coisa boa pode acontecer!
Ela ficou quieta e continuou caminhando aconchegada em mim.
Outro dia, de tardezinha, tomamos banho e estávamos nos aprontando para sair com a turma até o centro de Itacaré, fazer comprinhas. Ela, a uma certa altura, sentou na cama, e começou a me fitar enquanto me arrumava. Vi ela pelo espelho a minha frente, e fitando ela assim, pelo espelho, disse:
- Querida, ainda não estás pronta! Termina de te arrumar, não vamos atrasar a turma. 
Então ela falou séria:
- Estou sendo um fardo na tua vida, né?
Virei para ela, a encarei e disse:
- Eeeee, que é isto? Já esqueceu? Na alegria na tristeza, na saúde na doença... Não foi isto que prometemos?
Ela encheu os olhos de lágrimas e me fitou com um olhar tão carinhoso que fixou, não consigo desfazer. E enquanto me encarava, com muita profundidade, queixo tremendo disse convicta:
- Amor, se tu quiseres, quando voltarmos desta viagem, me deixa, separa. Arruma outra! Tô vendo que tu estás sofrendo comigo e não quero isto. Não é este o teu jeito de ser. Se é para eu te deixar infeliz, me deixa, tô no fim mesmo! Vai vive, porque o que me faz sofrer mais ainda é te ver triste por minha causa. Eu não quero isto pra ti.
Desatou a chorar. Rolou um clima muito tenso, porque ao mesmo tempo em que fiquei muito irritado com a besteira que ela falou, senti a nobreza deste serzinho, que sempre deu muito mais amor do que quis em troca, em mais uma demonstração de amor doado, incondicional, abrindo mão do que mais precioso tinha para não fazer sofrer. Então, sentei ao seu lado, a abracei, encarei e disse carinhosamente:
- Jamais, jamais, jamais... ouviu? ...nunca jamais fale de novo uma besteira destas! Nunca, ouviu? Se for para sofrer contigo, nem que isto me deixe muito infeliz, vai ser a teu lado que quero ficar, sempre, todos os dias, todos os momentos, custe o que custar. Meu amor por ti é muito maior do que este 'fardo' bobo do que estás falando.
E ela, ainda chorando disse:
- Eu sabia que responderias isto. Só que eu "precisava ouvir" isto de ti!
Nos abraçamos, beijamos e ela foi lavar o rosto, tirar o choro, terminou de se arrumar e saímos. 
E os prenúncios continuaram, como quando fomos consultar a última vez com sua oncologista.
5 dias antes de sua partida, quando íamos a Montenegro ela me disse:
- Pio, hoje não quero falar com a doutora, quero que tu fales tudo o que tem a dizer, sabe o que falar.
E durante a consulta ela não abriu a boca.
Eu fui relatando tudo à médica, e de repente, Bere começou a chorar. Um choro sentido, aquele tipo de criança com dor, miudinho, encolhido, sabe? A doutora disse:
- O que foi, Berenice?
E ela respondeu:
- Eu vi meu pai e minha mãe! (Ele falecido há 7 anos e ela falecida há 2 anos).
Eu virei para o lado onde ela estava, a abracei, e a doutora disse:
- Berenice, isto é o efeito do teu estado clínico, estás fragilizada, ictérica, teu cérebro pode criar situações assim.
Mas ela continuou na insistência de sua visão. Depois de muito tempo, conversas, acalmou e não falou mais.
Voltamos para casa. Durante o caminho ela ficou o tempo todo olhando o infinito, sem falar uma palavra sequer. Eu conversava e não recebia respostas. Eu estava impressionado, ela não era assim. Mas, conhecendo ela estes anos todos, sabia exatamente que ela estava pensando na visão do pai e da mãe. Até que, a uma altura da viagem, dei uma beliscada de leve em sua coxa e disse:
- Amor, acorda! Estou falando contigo e tu não estás respondendo! - E ela:
- Ai! Doeu, sabia? Fala, só escuto. Não estou afim de conversar.
Quando chegamos em casa, ela foi no banheiro do estúdio. Quando saiu, puxou a descarga,  a caixa não fechou, ficou vazando, ela disse:
- Eu NUNCA mais vou usar este banheiro porque ele é de mal comigo! - E não usou mais.
De noite, fui cozinhar feijão.
Ela só esporadicamente ficava comigo na cozinha quando eu adiantava comidas demoradas. Naquela noite, veio, sentou na banqueta atrás de mim, eu lidando com os temperos na frente da panela, ela ficou me olhando, apaixonada. Aí eu disse:
- O que foi amor? Não vai olhar a novela?
E ela respondeu:
- Não! Estou aqui observando para ver qual é teu segredo para fazer uma comidinha tão gostosa.
Eu ri e disse:
- Vidinha, não tem segredo! É só jogar as coisas na panela e ficar cuidando.
Daí ela disse:
- É! Mas eu quero saber o momento exato em que tu botas tua pitada de carinho na comida.
Olhei estranho para ela e disse:
- Pitada de carinho? Vem cá que minha pitada de carinho é você. Nos abraçamos, beijamos, juramos amor eterno, ela estava radiante, feliz, deu boa noite e foi cantarolando para o quarto se preparar para dormir: "Quando a luz dos olhos meus e a luz dos olhos teus resolvem se encontrar..." Ela adorava esta canção.
Na sexta, feriado do dia 20 de Setembro, de tardezinha ela protagonizou uma conversação muito estranha, a qual me deixou perplexo.
Ela disse:
- O Pio, não vai fazer?
Eu perguntei:
- Fazer o que, amor?
E ela:
- Ai, Vidinha, sabe, cuia, bomba... como é mesmo?
Eu completei:
- Fazer o chimarrão?
Então ela arremedou me encarando:
- É isto mesmo! Chimarrão! Ai, como ando perdendo a noção das palavras mais comuns! Por que isto está se apagando em mim? - Seu queixo começou a tremer e encheu os olhos dela de lágrimas. E aqueles olhos negros, aguados, a me encarar precisando de uma resposta para seu conflito pessoal ficaram me fixando, como que, implorando esta resposta. A mim, enquanto a fitava, um nó incômodo se alojou no pescoço, enguli em seco e só consegui dizer:
- Amor, vai passar! Segunda tem o procedimento, então tudo aos poucos voltará ao normal!
E ela, sem tirar um momento os olhos de mim, medindo minha sinceridade, lágrimas rolando dos seus cantos, me abraçou, começou a chorar largado e disse:
- Tenho medo! ...Tenho muito medo de que isto não vai passar!
E aquele nó na garganta apertou mais, sufocando. Ficamos um momento assim, abraçados, em silêncio, ela com o seu conflito exigindo respostas e eu sem respostas com o nó me apertando. Só consegui sussurar engasgado em seu ouvido:
- Confia! Vai dar tudo certo!
Eu já estava sentindo durante estes últimos dias cada vez mais em sua fragilidade os lapsos de memória, troca de nomes, mas não achava que era tanto. E mesmo louco para chorar, gritar, sei lá, muitas coisas somadas, durante os últimos meses vendo nossos sonhos todos se esvaindo como num soprar, vendo aquele serzinho frágil, doce, num conflito pessoal com uma coisa tão banal do dia a dia como fazer um chimarrão, mudei o tom para disfarçar e falei:
- Ai amor, não encasqueta! Vai ver que é por causa do teu estado de saúde, frágil, ictérica, como a médica falou. Já vou fazer o chimarrão. Vai até a sala que já trago aí prontinho. - Ela foi. Esperei a água ficar no ponto, botei na térmica e corri para o banheiro do estúdio e chorei. Chorei. Chorei muito! Sabe, aquela dor do certo, mas incerto? A gente sabe que tem pela frente, mas não quer acreditar, não quer saber, e não quer que aconteça? Senti isto.
Quando voltei para a sala ela estava olhando TV, mas com o olhar no infinito, fixado na tela, mas vendo além dela, não vendo o que se passava. Notei que ela já vinha fazendo isto há dias.
Tomamos nosso chimarrão durante a novela, enquanto ela atualizava sua página no Facebook (já deletado a pedido seu em vida).
Sábado teve visita de primas, amigos, ela até alegre se mostrou rindo com piadas, acontecimentos, mas sempre muito cansada, recebeu as visitas no quarto, acamada.
No Domingo, estranhei porque fui fazer o programa de rádio na emissora, eu sempre deixava as batatas cozidas para ela fazer a maionese. Ela tinha um jeito único de fazer, bem colorida, mas naquele domingo ela não fez nada. Deixou tudo para mim. Quando voltei do programa, ela disse: 
- Nossa, o programa de hoje foi para mim né? Aquelas músicas que tu tocaste, me fizeram lembrar tantos programas, todas parecem terem sido escolhidas pra mim. Obrigada! - Me beijou. - Eu agradeci, não entendi, porque a seleção de músicas foi normal, aleatória, sem intenção de fazer homenagem especial a ela. Então ela disse:
- Deixei as batatas para tu preparares a maionese hoje. Gosto do jeito como tu fazes! 
Então pus fogo na churrasqueira, fiz um churrasquinho, almoço em família, com os filhos, ela adorou, e claro, também a maionese daquele domingo preparada por mim.
O resto do dia transcorreu normal. Só que sempre, ela muito debilitada.
Segunda feira, véspera de sua partida.
Tínhamos marcado em Porto Alegre, no hospital da Santa Casa procedimento para colocação de stent em seu canal biliar na passagem do pâncreas.
Acordei às 4:15 da manhã com ela embaixo do chuveiro tomando banho. Não sei que horas entrou, mas ficou no banho até às 5:30 como se estivesse este tempo todo tentando tirar no banho algo que não queria, que tivesse que ser apagado. Ficou no box acocorada o tempo todo, posição fetal, olhando o nada, deixando a água correr sobre o corpo. E só saiu de lá com muita insistência minha, dizendo que nos atrasaríamos. Foi o último banho de sua vida. Ajudei-a a se secar, se vestir. Ela ainda disse: "Tô um horror, nem olha para mim assim, nua!"
Saímos dentro do horário, o amigo Laubin nos levou. Chegamos na Santa Casa em Porto Alegre um pouco depois das sete horas.
E logo já fui fazendo os papéis de internação para o procedimento, vi que muitas coisas que assinei tinham risco de complicações de mais de 50%, mas era necessário fazer, senão ela morreria intoxicada com sua própria bílis. Bora, assinar, fazer.
Na entrevista ela ainda brincou com o anestesista dizendo: 
- Doutor, você é tão jovem, podia até ser meu filho!
E o doutor riu, nós todos rimos. Terminou a entrevista, eu saí e o procedimento começou.
Foi um sucesso. Tudo acabou bem, procedimento endoscópico, com resultado positivo, tanto, que ela ganhou alta duas horas depois.
Me chamaram, fui buscá-la na sala de recuperação, ela estava radiante. Um sorriso largado de quem passou mais uma etapa, de quem iria agora novamente se reerguer.
Como o caminho do centro cirúrgico até a saída do hospital era longo, levei ela numa cadeira de rodas, e nós dois ficamos esperando no hall de entrada do hospital enquanto o Laubin foi pegar o carro no estacionamento porque estava chovendo. Ela sentada na cadeira de rodas, eu do lado dela em pé. De repente, me encarou braba e disse:
- Puta sacanagem, né?
Eu respondi:
- Sacanagem o que, amor?
- Ué, meu pai disse que ia estar aqui comigo hoje e não veio!
Me passou um calafrio na espinha, mas tentando ficar neutro respondi delicadamente:
- Amor, já faz 7 anos que teu pai faleceu, não tem como ele prometer estar contigo hoje aqui! Tu estás ainda sob o efeito da anestesia e estás vendo coisas!
Nisto ela puxou o meu braço me trazendo bem perto dela, me encarou, aquele olhar que tantas vezes trocamos, sincera, e disse séria:
- Mas ele prometeu! Deveria estar aqui!
Eu desconversei, sugeri para olhar o vídeo que estava passando na tv, ela olhou e ficou prestando atenção ao vídeo e sossegou. Eu, mesmo parecendo estar tranquilo, estava ruíndo, desabando por dentro, sensação horrível, indescritível, pois sua convicção da promessa da presença do pai foi taxativa, marcante, incontestável, me balançou.
Voltamos para casa.
Ela passou o resto da segunda acamada, tomando bastante sucos e água que era o que haviam prescrito no hospital. 
De tardezinha saiu da cama e veio tomar chimarrão na sala.
Disse para eu ir apresentar meu programa da segunda na rádio, que ela estava bem e que tinha a companhia do Guilherme. O Wagner foi para a faculdade.
Quando voltei do programa fui até ela no quarto, ela olhando tv, perguntei se precisava de algo, ela disse que não, então fui jantar. Passou algum tempo, Wagner já de volta da faculdade, ela chamou os filhos, deu boa noite a cada um, beijou e disse que amava.
Depois de jantar, fui até o quarto, então ela pediu para eu ajudá-la a ir até o banheiro.
Ajudei. Perguntei se queria minha companhia e ela disse que sim. Eu fui olhando o filme que estava passando na tv do quarto, e ela ficou durante muito tempo sentada no vaso, olhando para o nada, o infinito e mesmo que eu falasse, não me respondia. 
Com muita conversa e carinho consegui tirar ela do vaso. ficou mais de uma hora lá, já era perto da meia noite. Ajudei-a a se vestir e na passagem da porta do banheiro para o quarto ela parou, olhou para mim, mas não falou nada. Então perguntei:
- Que foi amor?
E ela falou baixinho:
- Lavar as mãos.
Levei-a de volta, ela lavou as mãos, ajudei a enxugar e voltamos para a cama. Quando ela já estava deitada, ela me olhou, com aquele mesmo olhar de 33 anos atrás, olhos negros, enxergando para dentro de mim, brilho intenso, sereno. Esta troca de olhar durou um bom tempo, sem falarmos nada. Nos beijamos, e eu disse: Dorme bem, amor, te amo! E ela respondeu num sopro:
- Te amo!
Dormiu. Eu ainda fui para o estúdio terminar uma vinheta que tinha que entregar no outro dia de manhã. Fui dormir pouco tempo depois. Deitei ao seu lado, estava dormindo, serena.
De manhã acordei, ela tinha que tomar remédio às 8 horas. Já me chamou a atenção que sua posição, do jeito como pegou no sono de noite, continuava a dormir, sem mudar. Eu levantei, botei café a passar, peguei o remédio e fui até o quarto para ela tomar. Estava num sono angelical, num respirar de paz. Tentei acordá-la, ela sentiu, falei do comprimido, mas por mais que ela se esforçasse, não conseguiu abrir a boca para tomar. 
Então foi aquela correria. Ligações para sua médica, para o SAMU, todos solícitos fazendo sua parte. Veio logo enfermeira que tomou suas condições vitais e já foi orientando o médico que havia feito o procedimento em Porto Alegre e ele via celular dando as instruções de como agir.
Levaram de ambulânca até o hospital.
Eu e meu filho Guilherme fomos atrás de carro enquanto Wagner ficou em casa abrindo a loja e cuidando de tudo.
Enquanto esperávamos no corredor do hospital em frente à emergência, um biiiii contínuo começou a soar entre espaços. Guilherme, do meu lado, encheu os olhos de água e disse:
- Perdemos a mãe! - Eu disse:
- Nossa filho, não fala assim! ...Por que tu achas? - E ele:
- Escuta.... (Mais um biiiiiii se deu). - Desfibrilador, pai! Já tentaram cinco vezes. Difícil voltar depois de tantas tentativas. - Levantou, olhos embargados, disse: - Pai, vou lá na rua, não aguento ouvir isto!
Ele saiu para a rua, e aquele sinal crucial, o biiiii continuou por mais uma quantidade de vezes que eu não somei.
Até que, meia hora depois, a difícil tarefa do dr. Heron em me comunicar que havíamos perdido a Bere. Graças a Deus o Guilherme estava comigo na hora da derradeira notícia e nós dois nos amparamos.
Ela foi em paz, sem dor, sem saber que tinha partido, do jeito como sempre fora seu desejo.
Sim, tudo isto já faz um mês.
E quando penso para trás, tentando entender tudo isto, descubro que suas últimas palavras de fato foram para mim, e foram incisivas, depois de uma intensa e última troca de olhares, selando este grande amor que vivemos ao dizer na despedida: "Te amo!"



Tenho certeza absoluta que mesmo sabendo antecipadamente que este relacionamento só fosse durar 33 anos, teria muito prazer em viver tudo de novo, como foi, sem tirar nem por, porque nosso amor sempre foi soma, nunca divisão. E, mesmo assolado pela saudade e varrido pela ausência, em vez de lamentar a perda, me orgulho muito, mas muito mesmo da vida que Berenice me proporcionou e que eu pude na medida do possível retribuir, num equilíbrio de paz e bem estar. 
Gente, foi um privilégio indescritível poder ter sido casado com Berenice durante 31 anos, um ser muito, um ser tudo, um ser todo, cheirosa e completa, que dos detalhes fez nosso mundo e este nosso mundo foi em cada detalhe, completo. Enfim, um ser vida, "minha Vidinha", como nós carinhosamente nos chamávamos.



A alegria em fazer comprinhas quando viajava para trazer um lembrança a todas as pessoas que ela amava.



A cada flash, um sorriso para estampar a alegria do momento.

Adorava Praia, Céu azul, Sol, povo, clima de mar.


A cada flash, a alegria para estampar sua felicidade em estar realizando tudo o que desejava.


Mais comprinhas: pagava com amor os presentes comprados porque sabia o quanto iria agradar a quem recebesse.


Foto tirada no Sábado dia 9 de Março de 2013, após ganhar alta no hospital na Sexta, depois de uma semana em tratamento contra uma pancreatite que, na realidade já tinha acontecido por metástase de câncer no pâncreas.







Adorava picles.


....e café.


cervejinha vez ou outra também gostava.



Flagrantes da vida real.


De uniforme. Adorava seu trabalho em contabilidade no escritório Neiva Dahmer.



Preparando a maionese. Jeito único de fazer, elogiada por todos.


Testando o sofá novo na vitrine da loja.

FAMÍLIA É TUDO!!!!

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

UM GRANDE AMOR: COMO TUDO COMEÇOU.








   Tanta gente tem me dito que acompanha toda a nossa história de amor, nossas cartas, bilhetes, fotos, só que eu não contei como tudo começou. Incrível, mas todos têm me perguntado como a Bere e eu nos conhecemos. Então vou tirar um tempinho para recordar aquele dia.

   Mas antes, só para constar: a virada de ano, de 1979 para 1980 foi em minha casa na cidade de Harmonia, para onde levei vários amigos e onde passamos o ano novo juntos com muita animação e folia. Então, lá pela 1 hora da manhã do dia primeiro de Janeiro de 1980, eu fui e deitei no meio da rua, de costas, em frente à casa onde morávamos e gritei a plenos pulmões para meus amigos: - Este ano vou arrumar uma garota de verdade e vou casar com ela!
   Gozação geral, pois conheciam minha índole de paquerador, malandro e que que eu não ia me fixar em uma única menina. Mas aconteceu. Inusitadamente, sem pretenções, e minha promessa virou realidade.
   Era um sábado, 9 de Fevereiro de 1980. Eu estava muito chateado porque havia levado o fora de uma garota de Montenegro (não lembro mais o nome, namorei tantas). Paulinho, meu cunhado, me convidou para irmos até o rio Caí, tomar um banho e conversar. 
    Fizemos isto. Enquanto nadávamos nas águas, ele disse:
    - Que tal, pra esquecer aquela garota de Montenegro, vem comigo e com a Ane  ao baile de Kerbb em Santa Terezinha? Assim, tua mãe vai deixar tua irmã ir comigo, já que tu também irás.
    Então, eu disse:
   - Sabe que é uma boa ideia Paulinho. Vou junto no baile e me vingo desta montenegrina ingrata na primeira garota que dançar comigo por ter sido rejeitado pela outra.
   Então, tudo combinado, O Paulinho no seu Chevetão cor de sujeira ano 74, ajudei a por gasolina, fomos até o baile em Santa Terezinha com minha irmã Ane (sua namorada) e eu.
   Chegando lá, a pista fica no segundo piso, subimos e para entrar no salão, o último degrau que fica mais alto que o piso do salão em si. Quando parei ali, já vi ela, a Berenice, de lado, no outro extremo do salão, dançando na frente da banda.
   E, sei lá, não entendo o motivo, balancei. Aquela garota me chamou a atenção. Nossa, só conseguia ver ela. Parecia a única pessoa presente naquele salão. E o salão estava lotado.
    Pensei: "Vou ter que dançar com esta menina!"
  A noite caminhou, compramos uma mesinha, onde ficamos o Paulinho, a Ane, eu e uma grande amiga da família, uma ex-namorada minha, que vou chamar de Neca.
   Ane, Neca e a garota que eu pretendia, foram colegas de aula no segundo grau.Elas tinham se formado em dezembro do ano anterior. Eram conhecidas, amigas, sabiam tudo umas das outras. Só que eu não sabia disto e não havia contado para eles que pretendia dançar com aquela garota, que não saía da frente do palco.
   Rolou muita conversa, bebida, risadas, mas eu, sempre de olho naquela garota, ali longe, na frente da banda.
   Quando eram umas duas e meia da manhã, disse para a Ane: 
   - Olha, vou ter que dançar com uma menina. Eu estou de olho desde que o baile começou e não quero sair deste baile sem dançar com ela.
   A Ane riu e disse:
   - Quem é a vítima? Mais uma de tantas, maninho? ...Hehe, vai lá, te diverte.
   Eu olhei sério para ela e só consegui engrolar:
   - Sei lá, mana, desta vez é diferente!
   Levantei e fui até ela para convidar para dançar.
   Nisto, ela saiu da frente da banda e começou a caminhar de volta para, sei lá, um lugar, uma mesa, banheiro. Só sei que saiu da frente da banda e veio cabisbaixa em minha direção.
   Fui até ela e quando cheguei, ao mesmo tempo em que eu a convidei para dançar em um ouvido, um outro rapaz a convidou para dançar no outro ouvido. 
   Graças a Deus, minha voz foi mais poderosa fazendo ela ouvir somente o meu convite. E ela sempre jurou ter ouvido somente a minha voz naquele momento do convite.
   Ela aceitou dançar comigo, fomos até a pista, e quando estávamos nos preparando para dançar ela disse:
   - Desculpe, mas estou meio bêbada!
   A peguei em meus braços, ela meio molinha, eu suado de alto a baixo, era verão, dava pra torcer a camisa de tanto suor. Começamos a dançar. Parece que a banda sentiu nosso primeiro encontro, pois entrou em um bloco romântico, iniciando com a melodia instrumental Concerto para um Verão. Dançamos, ela se largou em meus braços, meio tomada pela bebida, meio gostando e me deixou a conduzir durante as melodias românticas, umas 3 ou 4.
   Quando voltaram ao ritmo animado, abrimos os olhos, eu a envolvendo toda, era magrinha, disse: 
   - Quer dançar mais?
   Ela respondeu:
   - Claro, vamos agitar, faz bem! ...Cura a bebedeira. - E sorriu. Nossa, o brilho daqueles olhos negros, me olhando sinceros, e o jeitinho de sorrir, ela era dentucinha, algo que me cativou, sei lá, porque era diferente. Uma imagem que sei descrever com todos os detalhes ainda hoje em dia, porque foi única.
   E enquanto dançávamos, a pergunta óbvia de minha parte:
   - Como é teu nome?
   - Berenice! Mas não gosto dele. Me chame de Bere, de Bê, de Bea, de Nice, de Bereca, de Biba, que vou gostar mais.
   Então eu respondi:
   - É um nome diferente. Pelo menos não é Maria como tem tantas por aí.
   E ela num sorriso doce respondeu:
   - Mas eu sou Maria Berenice.
   Rimos largado. Então ela me perguntou:
   - E o teu nome, como é?
   Eu respondi:
   - Como faz o pintinho?
   Ela me olhou com aquele olhar enigmático que tantas vezes durante nossa convivência fez, levantando somente uma sobrancelha, disse:
   - Piu?
   Comecei a rir e respondi:
   - Sim. Meu nome é Pio com "o" no fim. 
   - Ela riu muito. Se largou, tipo, como se fosse piada. Depois de refeita, disse:
   - É muito diferente o teu nome... Pio, piu piu. ...Bom, pelo menos também não é José como tem tantos.
   Aí eu comecei a rir e respondi:
   - Mas eu sou Pio José.
   Rimos um monte. Nos abraçamos. Sabe, aquele tipo de abraço que parece que há anos já foi repetido? Assim. Foi um começo inusitado, mas já mostrando sua química. 
   Quando a melodia terminou, saímos da pista, fomos até a copa e compramos uma coca para tomarmos e ela aliviar o excesso de cerveja.
Naquela época tinha uma promoção da Coca Cola que tinha nas tampinhas plásticas internas impresso: Amar é... - E os dizeres de muitas formas que descreviam como é amar.
   Bom, neste post está a cópia do que estava escrito dentro de nossa tampinha de Coca:   "Amar é andar de mãos dadas."
  Pegamos a garrafa e fomos até a mesa onde estavam minha irmã e meu cunhado, juntamente com a Neca. Então, quando chegamos perto ela disse:
    - Não posso ir ali. Tu não estás ainda namorando a Neca? Como ela vai reagir?
    Eu ri e disse:
    - Não, a Neca é do passado. Ela está ali como amiga de minha irmã. 
  Berenice relutou um pouco em sentar conosco pois estava meio constrangida, afinal conhecia a Ane e a Neca e sabia de nossa história. Só não tinha sabido que eu era o cara das coisas que havia ouvido falar tantas vezes.
   Um dia, enquanto namorados ela me contou que tinha desejado diversas vezes conhecer alguém como o namorado que a Neca tantas vezes, apaixonada descreveu, no caso, eu.
Bom, Sentamos lá, e como as três se conheciam, Neca, minha irmã e Berenice, a conversa andou animada e tudo correu como se fosse o início de uma grande amizade.
  Ficamos o resto do baile juntos, muita conversa, primeiras impressões, trocamos endereços.
  Quando foi a hora de ela ir embora, a levei até o ônibus e na despedida, por mais vontade que tivesse de dar um beijo pra valer (já que eu era fogo), só consegui dar um beijinho respeitoso em sua testa como sinal de admiração, combinando nos encontrarmos no baile de Carnaval, dia 16 de Fevereiro no Salão Fink em Harmonia.
    Foi uma semana muito apreensiva, eu não consegui mas pensar em nada além dela.
  Aconteceu o baile, aluguei uma mesa, e ela veio lá. Tremi como uma vara verde para recebê-la e acolhê-la em minha mesa, juntamente com a vizinha Sueli que a acompanhava nos bailes, já que seus pais não gostavam de frequentar bailes.
   E no meio de muita conversa entre nós dois, a pergunta feita por mim na lata:
   - Quer namorar comigo?
   E ela, aquele olhar doce, puro, ímpar, olhos negros, levemente levantando uma sobrancelha, e como nunca ninguém tinha me olhado, no fundo dos olhos, respondeu:
    - Quero!
   E a partir deste momento começamos a caminhar juntos, sempre, uma parceria que durou toda a sua existência.
   Eu vivia eufórico. Comentava com todos os amigos e amigas dizendo: 
   - Agora arrumei uma garota com quem vou casar!
   Primeiro se mostravam em dúvida, já que meu perfil não era de casar um dia.
   Mas eles começaram a me apoiar, pois sentiam o verdadeiro amor que existia entre eu e ela.
   Foi um bela vida que durou 33 anos de muito amor e parceria.
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    Mais um fato engraçado:
    Isto foi quando a levei a primeira vez em minha casa para meus pais a conhecerem. Sábado de tarde, o ônibus da Unesul parou no centro de Harmonia, onde descemos a Bere e eu para passar o sábado e domingo em minha casa. Por ela ter os olhinhos meio 'puxados' quando me conheceu, vizinhos a viram descer do ônibus e ficaram impressionados com a 'japonesa' que eu havia arrumado como namorada.
   Mas, quando chegamos no gramado em frente da minha casa paterna, a mãe estava esperando.
    Apresentei a Bere a ela, ao que a mãe falou:
   - "Prazer em conhecê-la! Seja bem vinda em minha família e em minha casa. Mas, filhinha, não repara! O Pio não vai casar nunca! Ele trás uma diferente toda a semana aqui pra casa!"
  Rolou aquele clima, nos entreolhamos, mas depois de muitas explicações à Bere ela entendeu, já que minha mãe, em sua simplicidade, talvez tivesse tentado fazer a Bere entender que talvez não seria ela minha escolhida para este compromisso sério que durou 33 anos, onde só houve amor, respeito, reciprocidade, carinho, lutas e vitórias.
Nosso relacionamento dá para resumir em uma única frase: "Valeu a pena!"


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   Em nossas trocas de correspondência, foram ao todo 230 cartas, 750 páginas escritas, só falando de amor e mais de 300 cartões postais.