sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Segundo dia: O Diário de Bere - 9 de Março de 2013



  Segundo dia do Diário de Bere.
   9 de Março de 2013.

   Abaixo o segundo dia em que Bere escreveu sobre si. Sinto na letrinha dela a satisfação em receber visitas e o carinho que ela tem por estas pessoas. Também recadinhos, sua simplicidade e também preocupação. A cada linha que escreve consigo ver na letra o quanto de profundo ela tentou ser.

09/03/2013
   Visitas: Lena, tia Eugênia, Lica, a Claidi (amiga e fisioterapeuta) estava  aqui, pedi p/ela vir pois minhas pernas estavam muito doloridas. Vi em sua fisionomia sua preocupação como se soubesse q/eu estava pior do q/dizia. Ah, q/massagem gostosa, q/alívio. Obrigada amiga Claidi, sem saber foste a primeira a me ajudar neste quadro (doença) tão difícil.
   Depois a tarde visita da Lili e do Evanir. A Lili até me deu um bjinho. Mais tarde chimarrão na área, mensagem da Gisele no celular, ligação da cunhada Íris, desejando melhoras e oferecendo ajuda na casa. Te gosto muito cunhada (por isso pare enquanto há tempo). Ligação da Silvana, querida amiga. Acho até q/com esse nome "amiga" a única, sempre com palavras de otimismo. Falei da minha preocupação c/os exames, e ela toda otimista, 50% é o médico, 50% é o nosso pensamento positivo. Foi tudo q/fiz amiga, até li novamente o livro "O Segredo" enquanto estava internada. Mas como poderia contar pra ela por telefone o diagnóstico q/já conhecemos: eu, Pio e os filhos? "Silvana "para" enquanto é tempo!" Ainda não abri pra meus irmãos (sobre a gravidade de minha doença). Decidimos aqui em casa só contar qdo tivermos falado com a outra médica.
   Jantamos juntos nós quatro, com uma fatia de pão c/chmia e tomei café com leite. Diante de tanta fartura na mesa, aquilo pra mim era um manjar dos deuses, pra quem ficou 4 dias sem comer (no hospital). Depois da novela e do BBB, vamos olhar um filme nós quatro (de comédia).
   A minha maior preocupação é como esses 3 homens vão se virar sem mim, é tão engraçado, homem não consegue fazer duas coisas ao mesmo tempo, enquanto q/a mulher se preciso for, faz dez.
   Amanhã volto a escrever...

.........................

   Neste mesmo dia, eu também escrevi um desabafo e falei das incertezas que nos esperavam. Minha revolta com o que havia acontecido e tudo o que viria pela frente. O pior é que relendo este artigo que escrevi em março, fechou com o diagnóstico do doutor que havia tratado sua pancreatite e que havia descoberto seu câncer. Só que não foram 8 meses de sobrevida, e sim, somente 6 meses.

   09 de Março de 2013  

   Pois é.
   Câncer.
   Câncer de pulmão.
   O que vou dizer?
   Tô sem chão, sem palavras, sem ação. Já viu a pessoa em quem a gente deposita uma vida inteira de amor, carinho, energia, esperanças, enfim, quem a gente vê para ser eternamente teu esteio, num segundo, na maior levar uma rasteira? Tô vivendo este momento. É. O momento de saber que minha cara metade está em vias de um tratamento prolongado, que depende de sua reação para termos esperanças. E o pior de tudo é que  esta reação não é inerente ao entusiamo e à capacidade dela. É unicamente inerente à tolerância do seu organismo.
Então eu me pergunto: Prezado Deus: qual é a Tua em despedaçar uma família tão bem estruturada, tão bem administrada e tão bem cuidada, de um amor sem tamanho? Sinceramente, sem palavras pra não blasfemar. Ó Deus, eu amo tanto, tanto, tanto ela, dá uma chance a ela para que se recupere, tá? Nem que fique com sequelas. Prefiro ela doente do meu lado do que perdê-la. Vai, Cara, dá uma chance a ela!!!! Ela quer tanto um dia ter netos. Dá uma chance, vai!!!
   Choro sozinho, desamparado. Bere já está dormindo. O médico não deu esperanças. Me disse que o pai dele teve o mesmo tipo de câncer e só viveu 8 meses. Só 8 meses???? Meu Deus!!!! To desesperado. Não sei o que virá pela frente, mas sei que minha capacidade de encarar as coisas terá que se superar. E muito! Terei que encontrar respostas sinceras mas evasivas a tantas perguntas que daqui pra frente Bere fará. Vou ter que administrar tantas dores, incertezas, tantos choros e revoltas dela, tenho que me preparar. E muito! Também já decidi. Se o tratamento dela custar caro, vendo tudo. O importante é ela se recuperar. Minha cabeça está a mil. Aqueles 8 meses que o médico falou estão espetando meu cérebro desde ontem, me deixando completamente agitado. Não contei à Bere. A primeira vez em que eu não fui sincero com ela. E isto também me incomoda, me sinto um traidor. Mas de que jeito eu falaria uma coisa dessas: "Vidinha, o médico te deu só 8 meses de vida." Não, não vou contar. Mesmo sendo a primeira vez em que quebro a plena sinceridade em nosso relacionamento, não vou contar. Prefiro pensar assim: não menti, só omiti a verdade. É, é isto! ...Minhas lágrimas rolam soltas, não quero chorar, tenho que ser forte. Não quero, não quero, não quero!!! Que droga!!! Como faço pra parar de chorar??? Meu bem mais precioso está lá, dormindo, afetada por um mal sem tamanho e eu menti a primeira vez nestes anos todos de casados! Ela está desconfiada que algo eu não contei, porque conhece meu semblante. E ela sabe. Queria tanto ter uma "cara de pau" e mentir sem me denunciar. Mas eu não sei disfarçar. Me sinto o último deste planeta: eu menti. A primeira vez pra Bere. Como dói não ter dito toda a verdade. Muito, muito. Mas de que jeito eu falaria em 8 meses de sobrevida??? De que jeito? Estou com o coração, a mente, a vida, tudo, tudo dilacerado. Tudo em farrapos. Juntando os pedacinhos que sobraram. Por mentir e por sofrer a dor de minha Vidinha que não sabe o grande mal que tem em seu ser. Um mal muito, muito maior do que ela imagina. Coitadinha, sinto tanto por isto. Ela não merecia. Primeiro a doença, depois minha mentira. Minha conciência pesa. E muito. Droga de choro!!! Mas como posso parar??? Com tanta bomba que caiu em cima de nós nestes últimos 5 dias, estou destroçado! Calma Pio!!! Respira fundo, vai. Cada caso é um caso e o dela pode ser diferente do que este maldito doutor falou. Temos que primeiro ouvir a oncologista porque o médico que me falou isto não entende de câncer, mas de pâncreas.
   Resta agora encarar. Eu QUERO estar junto dela em todo este tratamento! Nem que perca dinheiro, clientes e negócios por causa disto. Agora é ela!!!! Somente minha Vidinha! QUERO mostrar a ela que a amo de verdade, do fundo de todo o meu ser e minha alma e QUERO provar isto com minhas atitudes daqui pra frente. Eu QUERO estar do lado dela quando for recebendo notícias boas ou ruins. Para rir e chorar com ela. Vou mostrar a ela que ela é a pessoa mais importante deste planeta, deste universo. Que ela é o amor infinito que tanto nós falávamos. Que ELA é para mim o amor INCONDICIONAL por quem eu amo demais e por quem minha vida se norteia. E não é um cancerzinho qualquer que se meteu no meio que vai mudar tudo isto. Nem que seja um cancerzão. Nem que eu emagreça pela correria, nem que durma mal ao seu lado em alguma cadeira de hospital. Nem que ela fique sem cabelos pelo tratamento de quimioterapia ou mal-cheirosa por tantos remédios que venha a receber. Supero, meu amor é maior. Vou sempre lembrar do seu cheiro ao sair do banho com o cabelo desalinhado, mas lavadinho esperando o secador. QUERO estar sempre ao seu lado, para que quando ela precisar pegar na mão de alguém, terá a minha perto, é só pegar. E quando uma lágrima sua rolar, terá o meu afago para tirá-la de seu rosto. Quando precisar de uma palavra, é a minha a promeira a lhe retrucar com otimismo. E quando uma dor a incomodar, ter minha massagem ou meu carinho pra confortar. Eu queria muito mais botar pra fora meus sentimentos, mas estou tão transtornado, pensando mil coisas ao mesmo tempo, puto da cara por aquele doutor ter cometido a besteira de falar em 8 meses, meus sentimentos estão agitados. 8 meses, não é nem uma gestação! Preciso de uma cerveja.





Esta foto foi tirada no dia 9 de março de 2013 à noite, depois da janta que ela falou que comeu pão com chmia. Dá pra se notar perfeitamente a minha dor neste beijo, de quem está com o sofrimento na flor da pela, precisando muito de luz pra administrar o que vinha pela frente. Ao mesmo tempo, no sorriso amarelinho de Bere, que não convence, sabendo do que tinha pela frente. Choro ao ver esta foto porque é a estampa do nosso sofrimento interior.


terça-feira, 26 de novembro de 2013

Primeiro Dia: O Diário de Bere - 8 de Março de 2013




 O Diário de Bere.
   8 de Março de 2013.

   Minha emoção ao encontrar este tesouro está muito além do que se possa imaginar. Choro de alegria por descobrir este caderno onde Bere registra os primeiros dias de sua doença. São poucos dias, mas é um registro suficiente para eu o ter e guardar como um dos bens mais preciosos que Bere poderia ter me deixado, além dos ensinamentos e dos filhos. E ela guardou o caderno de um jeito, que sabia que eu não encontraria logo. Não foi por falta de eu procurar. Ela sabia que eu procuraria algo escrito por ela. E eu tinha certeza de que ela tivesse deixado algo escrito. Ela certamente o teria feito. Então, a emoção ao descobrir foi tão grande, que só consegui ler o começo. As lágrimas não me deixaram ler o resto. Só no dia seguinte, refeito da surpresa do achado, que consegui ler. Aqui transcrevo o que ela escreveu no primeiro dia, quando já em casa, após 4 dias internada. Ela foi hospitalizada com pancreatite e voltou para casa sabendo que tinha câncer pulmonar. Notícia terrível, difícil de administrar, que tirou nosso chão. Mas sentamos, conversamos e resolvemos enfrentar tudo juntos, como sempre fizemos. Bere em seus apontamentos tinha o costume de abreviar "que e para" colocando só a primeira letra e travessão.



08/03/2013
   O Wagner ainda não tem uma namorada, mas tive q/começar a escrever novamente, pois não sei qto tempo me resta.
   Quero deixar registrado Pio, q/fostes o melhor marido q/uma mulher pode ter "esse cara é você." Te amo, nosso amor foi tão lindo, educamos dois filhos lindos, maravilhosos. Quero os três firmes e fortes p/um ajudar ao outro. Filhos amados, me perdoem, não sei se fui a melhor mãe, mas fui a "melhor que pude ser."
   O q/peço p/vocês, logo não estarei mais neste plano, então quero q/façam assim: cada atitude q/forem tomar na vida, pensem: Será q/a mãe aprovaria? Vocês terão a resposta do fundo do coração e então façam.
   Vi os olhinhos do Wagner hj tentando disfarçar o choro qdo o Pio contou tudo.
   Amor da minha vida (Pio), do fundo do meu coração eu te peço: Refaça tua vida c/outra pessoa. Só peço q/escolha alguém q/valha a pena e q/os meninos vão se dar bem, não p/me substituir, mas viverem em harmonia.
   Não parem suas vidas, sigam em frente, viagem, tirem férias, vão à praia, sempre lembrando de tomar um banho por mim. Estas últimas férias em Itapema estavam maravilhosas, como nos divertimos.
   Por incrível que pareça, neste momento estou calma, aguardando tudo q/ainda está por vir.
   Dá um recadinho p/minhas amigas também, e colegas do escritório q/sempre tentei ser a melhor amiga, colega possível. Se algum dia ofendi uma de vcs com atos ou palavras, me perdoem, sou humana. Continuem aí firme e forte trabalhando, façam cada minuto de suas vidas valer a pena. Digam à Neiva q/sou muito grata pela oportunidade, q/sempre procurei ser a melhor funcionária possível, mas na nossa profissão infelizmente erramos muito.



sábado, 23 de novembro de 2013

60 Dias sem Bere, Viúvo




 60 dias sem Bere, viúvo. 

   Hoje ando me sentindo sensível. Amanhã completarão dois meses em que fiquei viúvo, e quanto mais o tempo passa, mais eu sinto a ausência dela, nas coisinhas dela no seu dia a dia. Não queria que fosse assim. A saudade da ausência da Bere deveria estar diminuindo. Mas não está. Quando vou fazer alguma coisa na casa, ouço a voz da Bere conversando comigo, dando suas dicas, fazendo estas mesmas coisas que eu faço, que ela faria com tanto amor e alegria. Com dedicação. Como é sábado, juntei as toalhas de banho e de rosto de todos os banheiros para lavar, como ela sempre fazia. Toalhas de três banheiros, só elas na máquina. Adotei a rotina dela. E cada toalha, ao pegar ela analisava. Via se não estava muito encardida para aplicar algum produto antes de por na máquina de lavar. E novamente ensinava: "Deixar no sol até estarem quase secas, depois dez minutos na secadora, para afofar."
   Ontem foi o dia de lavar nossas roupas de cama. Tudo. Até o travesseiro dela eu venho cobrindo com uma fronha, e mesmo sem usar, troco e lavo toda a semana. E quando a saudade aperta durmo abraçado nele. E enquanto arrumo a cama, relembro a dica que sua experiência me ensinou: "Coloca o lençol, encaixa os elásticos nos quatro cantos do colchão, estica. Depois pega o travesseiro e puxa ele do meio da cama para as bordas para tirar todas as dobrinhas." Refaço seu gesto. Bere não gostava de fronhas,lençol e colcha mal colocados. Dizia que se dormia melhor com tudo liso, ajeitadinho, e que colcha desalinhada mostrava o relaxamento de uma dona de casa. E amanhã, lavar nossa roupa. E, como Bere me ensinou: "Roupa que solta tinta lava a mão. E extende ao avesso no sol para não desbotar. Já a roupa branca, seca à sombra para não amarelar." Isto tudo ouço no meu interior, como se ela estivesse do meu lado me orientando.
   Minha sensibilidade está diferente. Já não tenho mais tantos momentos de emoção, de choro. Mas eles ainda acontecem. Mesmo nem tantos, ainda frequentes. E quando acontecem, choro muito. A dor da ausência das coisinhas da rotina de Bere estão me abalando, e como já disse, é como um tufão que assola, passa, faz seus estragos e vai embora. Ainda ando acordando diversas vezes na semana, exatamente às 6:15, quando o despertador dela a acordava. E ele está desligado. E no despertar, no inconsciente ouço o chuveiro como se ela estivesse lá, tomando seu banho, se preparando para mais um dia de mil atividades. Seu uniforme do trabalho dobradinho na borda da banheira: embaixo, a calça azul marinho e em cima a camisa branca, com o bordado azul do nome do escritório, de uma alvura sem igual. Em cima da camisa, combinando, a lingerie, que vestiria primeiro. Tudo esperando ela no amanhecer, ao lado de cremes para as pernas, o corpo e a face. E mil coisas espalhadas sobre o mármore ao redor da pia, na ordem certinha da sequência em que ia se arrumar: desodorante, perfume suave - todo dia um diferente - brincos, correntinha, relógio, bracelete e anéis. Anéis com pedras grandes. Adorava. Um pouco mais para trás, uma tiara e um pote com prendedores de cabelo, caso não lavasse o cabelo e ele se mostrasse rebelde.  No outro lado da pia, escova de dentes já com o creme dental colocado,lápis para os olhos, rímel e batom. Ainda o óculos velho para conferir o final da produção. O óculos novo já estava na bolsa, preparada para levar ao trabalho. Não podia esquecê-lo de jeito nenhum. Tantas e tantas vezes vi esta cena, pois Bere já deixava tudo preparado de noite, antes de ir dormir. Assim de manhã ganharia tempo. Uma dedicação de estima para consigo, um sagrado tempo para si, para depois apresentar o melhor de si primeiro a mim, ao me acordar, às 7:30. Depois ia ao seu trabalho, linda, poderosa. E ao me chamar, aquele doce aroma de pureza no ar, com a mistura de tantas pitadas de cheiros gostosos e de cuidados para se deixar deslumbrante e agradável, deixa pairando até hoje no quarto a impressão de sua presença. 
   Queria tanto ver ela novamente, ao meu acordar, desistindo de toda a roupa que escolhera na véspera, para num rompante, em frente ao grande espelho do quarto, trocar o soutien que apertou ou que não combinou, ou o uniforme, por outro mais leve, para combinar melhor com o clima. Coisa só de mulher, que homem não compreende. E no fim, a troca. Um espetáculo somente para mim, seu único espectador. Ela sorrir e dizer: "Só troquei pra te provocar!" Vinha, me dava um beijo na testa e cochichava: "Vidinha, à noite vai ter o troco!" Estes fetiches, estas nuances do dia a dia que acendiam e ligavam tanto nossa vida. Nuances por demais especiais, que aconteciam. Ninguém protagonizava. Nossa química fazia acontecer. 
   Assim como foi o caso do sábado passado. Eu, fazendo nossas compras normais no supermercado, instintivamente peguei uma penca de bananas caturra e coloquei no carrinho. Mas logo me lembrei que só Bere gostava de banana caturra. E sempre esmagadinha com açúcar. Eu e os meninos só gostamos de banana catarina. Na hora troquei. Mas ao efetuar a troca, me bateu aquela saudade da ausência da nossa telepatia, onde ela não tinha anotado bananas na lista do mercado, e onde eu via as bananas e comprava pensando nela. E ao chegar em casa, ela, ao vê-las comentar: "Nossa, lembrou das bananas! Eu havia esquecido de anotar. Foi transmissão de pensamento." Esses detalhes dão um vazio saudoso que intensifica na medida que o tempo passa. Tudo eu sinto e refaço em nossa vivência. Como com tantos ensinamentos que ela deixou. Tipo: ontem fui abrir um vidro de pepinos em conserva. Claro, a tendência é girar a tampa e abrir na marra. Mas não consegui. Então me lembrei do seu jeitinho de dominar facilmente este processo. Ela dizia: "Calce com uma faca entre a tampa e o vidro e puxe levemente a tampa pra fora. O ar vai entrar e compensar a pressão. Tsssc! Pronto, agora é só girar a tampa." Nossa! Eu havia lutado mais de dez minutos com o vácuo daquela conserva, e foi tão fácil abrir o vidro depois de lembrar do seu ensinamento.
   Eu amo demais ter amado Bere. No todo. Intensamente. Não existem palavras para descrever este sublime relacionamento. Bere era o tipo de pessoa que entra na vida da gente, se instala, não pede licença, mas que depois de instalada, faz bem. Somente engrandece. Eu cresci muito com sua sabedoria, sua paz, seus encantos e seu modo de ser. Cresci aprendendo a deixar fluir meus sentimentos, que antes, talvez, estivessem travados, ou até, soltos demais. Mas agora, minhas lágrimas rolam soltas, não freio. São lágrimas de uma mistura entre muito de tudo e muito de falta. Eu sinto sua falta. Bere está me faltando. E muito, demais! Não sou egoísta, mas ela me faz falta. Muito, muito. Sua integridade me faz falta. E a falta se intensifica mais e mais quando lembro aquele acontecimento lá em Itacaré na Bahia, onde ela se mostrou o ser mais sublime que se possa amar. Lembro e choro muito. Choro ouvindo nitidamente sua voz me dizendo: "Não quero te ver triste. Arruma outra, tô no fim mesmo!" Nunca ouvi dizer que uma pessoa, em sua sã consciência, tentou abrir mão de quem mais amava por amor, para não ver sofrer. E Bere o fêz. Sabe o que é entregar teu tudo para não ver sofrer? Bere o fêz. Melhor, tentou fazer, mas eu não deixei, a chamei de boba. E prometi lutar ao seu lado até o fim. E o fiz. Não consigo esquecer isto. Gente! Seu amor incondicional passou da conta! E mesmo eu chateado por ela ter feito isto, hoje choro ao relembrar. Porque amar é doar. E ela doou completo. Não pensou. Se doou. Parece que amor incondicional não existe. Mas ela provou que sim, que existe, porque quem ama, liberta seu amor, seja para o que for. Mesmo que seja a sua dor maior. Amor incondicional.
   Já me sinto mais sereno após dois meses sem Bere. Muito longe de estar alegre como eu era antes. Mas feliz. A diferença está na ferida que já cicatrizou. Mas é só uma casquinha. A ferida está aberta embaixo, e basta um escorregãozinho pra abrir tudo de novo.
   Se amor tem nome, com certeza é a soma de Bere e nossa vivência. Porque ela era a soma de um amor infinito, carregado com a luz de sua sobriedade. Como eu fui feliz por ter tido a chance e o privilégio de poder amá-la! E principalmente ter sido amado por ela! Isto me gratifica. Porque poder amá-la me fez fazê-la se completar, se realizar e encher seu mundo de vida, alegria e amor. Mesmo que não durasse uma eternidade, foi muito bom enquanto durou. 33 anos. Bere, obrigado por ter acontecido em minha vida!!! Teu amor incondicional estará sempre em meu coração. Sempre!








"FAMÍLIA É TUDO!"


terça-feira, 19 de novembro de 2013

Tarefa Difícil



Tarefa difícil.

   No último sábado mais uma vez tive que passar por esta difícil tarefa de estar presente em um velório, pois sendo o jovem rapaz, que não era gordo, mas de apelido Gordo, 44 anos, um excelente comunicador voluntário de nossa emissora, e sendo eu o presidente da associação, foi inevitável. Tive que ir. Por menos que quisesse. Já outros velórios haviam acontecido, dois amigos meus partiram, mas não fui. Não fui temendo o que meu interior me apresentaria num cenário tão familiar, pois está tudo tão recente, tão nítido em imagens e carga emocional. Achei que eu não teria mais estrutura em participar, ao menos por enquanto, desde a partida de Bere, onde vinte e quatro horas de muita emoção me acompanharam enquanto parentes, amigos, pessoas solidárias me abraçavam em silêncio para passar um pouco de suas vibrações e sua energia a mim, como se estivessem me mantendo, carregando de força minha tão séria e profunda fragilidade do momento.
   E cada momento daquelas vinte e quatro horas velando, onde estive sempre ao lado de Bere, foi único. Desde o meu olhar para ela, não só uma vez mas várias, com um fiozinho de esperança que, talvez visse Bere se mexer e tudo ter sido um grande engano. Mas Bere não se mexeu. Ainda martela meu inconsciente o desespero de tantas amigas e amigos, que ao vê-la, confirmavam o que não estavam acreditando: Bere realmente havia sido tirada de mim. Para sempre. Apesar de nosso grande amor, nossa simbiose, sem dó, sem direito a apelo, sem chance, ela me foi tomada. Mesmo sendo nossa história a de um grande amor, que pudesse durar ainda por muitos anos. Que pudesse desenvolver ainda mais grandes capítulos de ternura, doação e soma. Mas não. Tudo terminou em vinte e quatro horas. Demorei olhando para as mãos dela, que quis o destino não ficassem em forma de oração, mas de colo. Pensei: "Realmente ela dava colo para todos os problemas até achar suas soluções. Então é justo que fiquem assim." Suas mãos que tanto realizaram em vida, produzindo em seu trabalho, sempre com sua letrinha alegre e disposta, ou no teclado do computador, onde escrevendo com seis dedos era muito mais veloz que eu, escrevendo com os dez dedos. Ela se orgulhava disto, afinal, eu fiz curso de digitação e ela aprendeu no decorrer dos anos em seu serviço, na prática e na velocidade que a profissão exigia. Primeiro, na antiga máquina de escrever, depois no computador.
   Fitando seu rosto, via somente a marca da paz. Semblante de luz, mesmo tendo a sua luz interior a deixado. Aliás, este semblante de paz, que ela em vida tantas vezes me transmitiu e me fazia sentir seguro. Uma forma de ponderar tudo antes de tomar uma atitude, para depois fazer da atitude o resultado especial e certo. Assim Bere era: totalmente focada em atitudes sóbrias, de resultados. Fitando a cena ao redor, pessoas caladas e pensativas, cabisbaixas num semblante de muito pesar. Ainda outras pessoas, conversando animadas e por vezes até dando discretas risadas. Outras pessoas me cuidando com o canto dos olhos para expreitar meus movimentos, que caso fosse sentir algo mais forte, pudessem vir correndo me acudir. Mas não! Passei o tempo todo presente serenamente com a certeza de que tudo foi feito em vida. Nada ficou pra trás. Nada ficou meio feito ou meio certo. Não. Tudo ficou perfeito. E isto de certo modo gera serenidade. Serenidade de consciência, serenidade no abstrato. Mas no físico a cada pouco então, como um recipiente enchendo, transbordava em lágrimas solitárias, sentindo uma solidão sem igual. É. Mesmo estando cercado de inúmeras pessoas, eu sentia uma solidão imensurável. Não existe explicação para a solidão que eu senti durante as vinte e quatro horas em que Bere recebeu suas últimas homenagens. Por isso a importância do abraço no velório. Tantos que recebi, me aproximaram mais das pessoas presentes e me fizeram sentir menos só. Difícil de explicar porque é um sentimento que vem e que se instala à revelia. Não queria estar só neste momento. De jeito nenhum! Precisava desesperadamente de companhia. Minha alma gritava por companhia, algo sufocante, porque me sentia só, impotente. E Bere ali do lado, serena, não estava mais me amparando, nem podia, sua vida se fôra. Naquele momento apenas metade do meu coração pulsava. A outra metade jazia ali do meu lado. Se fôra algumas horas atrás e abria esta lacuna da solidão. Imediatamente. Uma lacuna que custa a ser recuperada e ainda hoje tenho a impressão de que minha força está pela metade.
   Tudo isto passou em minha mente como um filme nítido e conhecido, no velório de sábado. A viúva serena, olhando para seu marido ali, semblante sereno também, e certamente se sentindo muito só. Como eu me sentira com Bere no evento há quase dois meses. Quando a abracei choramos juntos, e uma grande emoção tomou conta de mim porque ali estava sendo apenas o começo de dias muito difíceis para ela. Eu falei enquanto a abraçava: "Amiga, força, Deus dá capacidade para superarmos isto. Eu estou superando, tu também vais conseguir." Mas não consegui mais segurar as lágrimas depois do abraço. Tudo o que vivi naquele dia de Setembro estava correndo velozmente em meu ser alimentando minhas lágrimas, apresentando os detalhes em alta definição, e eu imaginando que ela, a viúva, também estava passando exatamente por isto. Imaginei os dias seguintes, onde toda a existência se mostra vil, trucidando nosso ser com ataques de saudade da ausência das coisinhas de cada dia de nossa cara metade. Fiquei mais uma hora lá, e quando ia embora, a viúva, que estava em pé do lado do marido que ali jazia, veio me dar mais um abraço e ela novamente chorou muito, me levando junto ao choro. Choramos em coro, no mesmo ritmo, sem palavras, cada qual com sua solidão. E neste passar de experiências tão pesarosas ela se esforçou e disse entre soluços: "É, se foi teu amigo e se foi meu marido." foi muito tenso. Senti no peso de suas palavras o quanto a solidão a estava tomando. O Gordo era o amigo que qualquer pessoa amaria ter. Então fico imaginando como ele era com a esposa. Então, tomado com toda esta carga emocional, só consegui engrolar: "Vamos superar nossas perdas, acredite!" Saí de lá sem conseguir conter as lágrimas e fui chorando até em casa.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Momentos


 Momentos

   Recentemente li mais um daqueles textos de palavras rebuscadas para amparar algum momento difícil pelo qual a gente esteja passando. Autor famoso, destes que todos lêem só pela sua assinatura. Li atentamente. Medindo suas palavras e a profundidade para onde quisesse chegar com seu discernimento. Até foi um texto bonito, de motivação bacana, para todos aqueles que do lado de fora de um verdadeiro sentimento de amor, assistem sem notar a angústia escondida de quem realmente amou, amou de verdade, calada num peito sufocado. E o sorriso descontraído é o gemido da angústia da saudade desta ausência gigante que este grande amor está causando. Sofro calado. Nos momentos só meus e por isto pareço o mesmo cara alegre de bem com a vida. Só que de mal com a morte que me arrancou sem dó para suas entranhas a soma deste amor que tanto Bere e eu cultivamos. E este texto, para mim, sei lá, de mim brotou algo que puxou minha mão e me empurrou as palavras no papel, sem eu dominar o que estava escrevendo. Algo assim, surreal. Eu simplesmente, depois de ler o meu texto, senti ter extravasado de dentro de mim aquele explodir de tantas coisas que são escritas por pessoas que talvez nunca tenham vivido 'na carne' o que é realmente perder um grande amor, pela sua partida prematura, quando justamente o relacionamento estava plenamente ajustado, tudo certinho, num ponto em que o próximo passo teria sido somente colher os frutos desta construção que fora feita durante todos estes anos, em cada pedacinho de nossas vidas e em cada momento de nossos olhares quando conversávamos sobre o futuro. E o futuro não chegou. Cortou abruptamente nossos olhares, nossos pedacinhos de construção, nosso mundo. Aliás, o mundo nos separou. Bere virou luz, enquanto eu seguro aqui em meus pensamentos toda esta soma de ideias e ações que estavam em nossos ideais.
   Este texto foi só o estopim. Coitado do autor, só tentou escrever motivando pessoas doídas. Pouco doídas, não como eu. Mas como numa revolta minha mão correu solta pelo teclado do computador agitando o bloco de notas, que quase travou, tamanha a velocidade de escrita expondo meu pensamento revoltoso. Porque o que sai de mim é sentir que amor é uma coisa que muitos tentam mascarar com palavras e atitudes que não existem. São só belas palavras.
   ...E comecei a escrever: "O amor é um acontecimento. Ele não pode ser moldado. Ele vem, acontece, vive e molda. Não tem o que mudar no amor. O amor é puro, ele não tem meias palavras, nem palavras bonitas, nem ensaios, nem previsões. Senão não é amor! Simplesmente o amor acontece. Ele é doação. Doação sem limites. Ele é reciprocidade, ele é mundo, vida, pulsação. O amor é soma. Soma de um pensamento que se completa com a reflexão em sintonia da pessoa amada. Você pensa, e quem você ama responde em sintonia, só na vibração. Isto é amor. Bere e eu éramos assim. Amor é amar barriguinha, rugas, seios caídos e roncos. Tudo se aceita no amor. Porque a essência, em vez de despencar, só cresce. E isto que faz não dar bola para aquele físico que já não é mais tão físico. O amor é medir consequências já sabendo o resultado desta medida, porque o amor não é uma aventura. É uma fórmula perfeita com seu resultado já apontado. O amor tem limites, mas é ilimitado. Sim, parece antagônico mas é verdadeiro. Por que? Porque o amor impõe limites a quem é amado mas é ilimitado para quem ama porque quem ama sabe, melhor, tem certeza de que a quem ama não precisa impor limites, pois seu amor sabe se limitar. Acho muito linda esta reflexão porque Bere e eu vivíamos isto e vivemos 31 anos juntos sem ao menos em um momento haver uma cena de ciúmes. Porque nosso amor não era limitado." 
   Sabíamos nossos limites. ...E por isto que me referi revoltoso no início do texto. Eu não consigo captar a magia de grandes amores nas entrelinhas dos textos escritos sobre o amor. Porque o amor não é feito de linhas. As linhas do amor todos conhecem. O amor é feito das entrelinhas. Aqueles espaços miudinhos que ficam escondidos entre o glamour dos espaços preenchidos. Porque amor não tolera glamour. Ele exige só a essência. O que evapora, o amor dispensa. Mas o que sobra no frasco, isto sim é importante para ele e isto é a essência do amor. O amor é a vida acontecendo livre, solta no mundo. Porque amor que prende, já perdeu sua essência. A vida livre tem como subir, alcançar alturas incomensuráveis onde encontrará mais energia e onde a pureza do seu meio e onde a tranquilidade do seu discernimento lhe ditará que tudo é verdadeiramente a beleza de uma soma de amores.  E ele acontece. Lindo, pleno forte e sincero. Isto é o amor. O resto, é o resto. 
   Eu queria muito um dia ler um texto motivacional de alguém que arrancou de dentro de si as palavras certas no momento mais crucial, quando a saudade da ausência, da perda de um grande amor aconteceu. Porque esta sensação, não é possível descrever. Não existem palavras. Só existem sentimentos. E estes sentimentos são muito maiores que as maiores e mais perfeitas palavras. O sentimento de distância compulsória pelo destino não tem descrição. Só tem sentimento. Só. E as palavras de conforto que sobram são unicamente as lágrimas derramadas uma a uma, gota por gota, deste aperto que uma saudade destas dá. Até o peito aliviar e poder seguir com um sorriso no rosto. Enquanto vai se formando dentro deste mesmo peito, aos poucos, no silêncio, um novo momento. Só basta ativar o estopim. E o de hoje foi receber correspondência no nome da Bere. Pronto. Tá feito. Já vou explodir de novo. 

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Bere e Camboriú




   Camboriú

   Está de partida a turma que em todos os anos, nesta época, vai a Balneário Camboriú em Santa Catarina. Muitos destes passageiros são os mesmos, vão todos os anos. Neste ano, uma passageira assídua faltará. A Bere. Durante sete anos seguidos ela viajou com esta turma. Este seria o oitavo ano. Mas não viajará mais. Sua viagem definitiva já aconteceu, e quis o destino que fosse antes. Sem mais ver o mar como ela protagonizou lá em Itacaré na Bahia em Agosto, durante nossa caminhada à beira mar num fim de tarde: "Pena que eu nunca mais verei isto!" - Disse taxativa enquanto admirava o marzão de Meu Deus se desmanchando em marolinhas gostosas aos nossos pés. E não verá mais.
   Ainda estes dias, quando peguei sua agenda para ligar para Itapema, esbarrei em sua penúltima anotação: "Viagem Camboriú. 13/11, quarta feira a 17/11, domingo. (Anotação do custo do pacote). Pedir férias para a Neiva de 14 a 18."
   Vejo a alegria deste apontamento, no jeito como a letrinha dela pula dentro da agenda já mostrando o entusiasmo em realizar esta viagem mais uma vez. Letrinha solta, leve, feliz. Lembro que quando ela anotou isto, logo em seguida ligou para o escritório onde trabalhava, comunicando esta sua intenção. Não deixaria de ir junto, já que é uma turma alegre, positiva, divertida e ela mais uma vez teria 4 dias só para ela. Bere adorava Camboriú. Por diversas vezes afirmou para mim, também para amigos, que se um dia tivesse que abrir mão de morar aqui, em nossa cidade, com certeza escolheria Camboriú. 
   A cidade tem um encanto mágico que a fazia se sentir bem lá. Seus cafés, sua comida, o hotel com vista para o calçadão no centro, perto do mar, tomar chimarrão de tardezinha no hall do hotel vendo as pessoas passando na rua. A praia e sua ilha mágica emoldurando a cena daquele balneário. A viagem de barco até a praia de Laranjeiras e a volta pelo bondinho, olhando Camboriú de cima. E, no dia em que a maioria dos companheiros de viagem ia ao Beto Carrero World, ela ia para as lojas. Inúmeras lojas, lojinhas, todas oferecendo milhares de coisas, e onde ela se inspirava para comprar os presentes de Natal. Sim, Bere era assim: início de Dezembro ela estava com todos os presentes comprados, para alegrar o Natal de tantas pessoas de nossas relações. E ela escolhia com muito cuidado cada presente, se colocando no lugar da pessoa, e o que cada pessoa gostaria de receber. Ela adorava dar presentes.
   Em suas viagens quando ia sozinha, geralmente eu dava algum para ajudar em seus custos e quando ia a Camboriú ajudava nos custos para ela comprar estes presentes. Se vai somar, de presente em presente, se a turma é grande, a conta vai longe. E seus olhos brilhavam ao receber esta minha 'ajuda' e sempre dizia: "Primeiro vou tirar um presente pra ti. Depois, o que sobrar, vou usar para completar os outros presentes." 
   Mas na viagem do primeiro ano em 2006, eu não dei dinheiro para ela. Senti que ela estava tipo, esperando aquele meu gesto. Pois em outras viagens que fazia, eu sempre lhe ajudava nos custos. E eu fingia que não estava lembrando em dar algum para ela levar. Mesmo porque ela me contou que estava levando uma boa quantia, que achava que dava para comprar tudo o que queria. E no seu íntimo, como eu a conhecia bem demais, ela deve ter pensado:    "Ele não vai me dar dinheiro porque eu disse que tenho o suficiente!"
   Mas não: eu botei um envelope com um bilhete e uma soma em dinheio em sua mala sem ela ver, no meio dos biquínis para ter certeza de que ela iria encontrar. E claro, ela encontrou. Nossa, assim que achou o bilhete ligou para mim, dizendo que tinha achado estranho eu não ter lhe ajudado nos custos desta viagem. Mas que agora ela tinha entendido o motivo. Ela estava radiante. Aliás, Bere ligava de manhã, de tarde e de noite, todos os dias. Não deixava de entrar em contato, para pelo menos ouvir a minha voz. Ela sempre iniciava dizendo: "Vidinha, tá cuidando bem dos meninos?" E eu respondia: "Claro, amor! Imagina tu e eu somados. Assim eu cuido deles." Ela ria, e começava a falar sobre seu dia, suas atividades, eu notava uma alegria imensa nela em compartilhar isto comigo. 
   Até numa das viagens a Camboriú, ela me ligou altas horas da noite, tipo meia noite. Eu atendi e só ouvia risada do outro lado. Ria, ria, até que suspirou e disse: "Pio, vem me acudir, estou bêbada!" E ria de novo junto com sua colega de quarto, acho que era a prima Tânia. Eu comecei a rir e disse: "Mas o que você tomou para estar assim?" Ela respondeu: "Duas latinhas de cerveja." Eu ri mais ainda da fraqueza dela por bebida. Então disse: "Vai, abre o chuveiro e toma um banho demorado que passa." E ela rindo continuou e me contou que tinham ido se divertir numa boate. Aliás, toda a turma foi. "Mas não dancei com ninguém!" - Arremedou. 
   No outro dia, de manhã cedo ela me ligou para contar o que tinha acontecido de fato. Em detalhes. Ela era assim: tudo na real, sem rodeios. Então eu disse que podia ter dançado pois eu sabia que aquilo era só diversão e jamais imaginaria que se divertir com uma turma de colegas de viagem numa boate, seria motivo de traição. Jamais. A alegria de viver não deve ser enforcada em recalques de pensamentos que aprisionam.
   Estes dias, precisei colocar sabonete novo no banheiro. Mais ou menos um mês antes de ela falecer, ela tinha comentado comigo que tinha uma caixinha cheia de sabonetes da Natura que já estavam guardados há mais de ano, e que era bom utilizá-los para que não ficassem tão velhos. Me lembrei disto e fui procurar no armário dela, onde ela fazia estoque de cremes e afins, e encontrei a caixa destes sabonetes. Como estavam na prateleira acima de minha linha de visão, peguei na caixa e puxei. Veio junto, caiu no chão, justamente o bilhete que eu havia escrito para ela em 2006, quando coloquei um dinheirinho junto em sua mala de viagem a Camboriú.
   Fiquei muito tocado quando vi este bilhete. Porque ele em si, apesar de pequeno, é uma história inteira que ele guarda. E isto toca, isto trás ela de volta em tantas lembranças, mas desta vez, gostosas. 
   Pois é: até este bilhete ela guardou. Lembro naquele ano quando ela voltou, a sua ânsia em me mostrar o traje de verão que havia comprado com o dinheirinho que eu havia separado do resto, para que ela gastasse com ela. Ela vestiu, veio me mostrar e perguntou: "Fiquei gostosa?"








sábado, 9 de novembro de 2013

Chorinho de Bebê



Chorinho de Bebê

   Bere adorava crianças. De todos os tamanhos. Seus olhos negros fitavam tão angelicalmente estes pimpolhos, que sempre parecia ser ela a mãe. É. Ela dava ares de mãe para qualquer criança que cruzasse seu caminho. E isto era mais um fator que nos ligava intensamente. Eu também adoro crianças. De qualquer idade. Esta nossa ligação já vem de muito tempo, pois sempre demonstramos isto. E criança sente isto muito mais do que um adulto. Crianças que sentem uma ligação intensa com elas, se aconchegam e deixam tudo vibrar para elas. Elas sugam nossa energia em toda a sua intensidade porque sentem que as amamos e que temos uma ligação afetiva concreta com elas.
   Ainda está cheio o pote de balinhas e o outro pote de pirulitos ali no canto da cozinha. Está cheio porque Bere nunca deixou eles esvaziarem. Deus me livre uma criança entrar em nosso mundo sem levar pelo menos uma balinha. E se fosse maior, um pirulito. E Ela ensinava: "As balinhas devem ser macias para as crianças poderem mastigar sem engulir direto e se engasgar. Já os pirulitos, tem que cuidar para que sejam aqueles que tem a haste bem embutida para não soltar enquanto a criança bota o pirulito na boca." Guloseimas para selar a paixão e o carinho para estas luzes de Deus, que tanto bem nos fazem e que tanto encantam nossa existência.
   Teve uma época em que pensamos em adotar uma menina. De qualquer cor, viesse como e de onde viesse, de qualquer jeito, desde que fosse uma menina. O motivo de ser menina? Simples: como temos dois meninos e como eu sou muito amoroso com meninas, adotaríamos uma menina. Bere queria isto. Ela sentia no seu mundo, seu modo de pensar, que ela havia ficado devendo um bem maior em nosso relacionamento. Uma menina, por eu ter tanto carinho por elas. E ela falou sobre isto em nossas tantas conversas que sempre aconteciam, na hora do chimarrão, onde tudo era dito e ponderado. Sempre dizia que se sentia não plena em nossa história de amor, porque eu queria ter uma filha e ela não me tinha dado esta graça. Mas eu sempre retrucava que não era verdade. Que ela não ficou devendo nada! Afinal, com os dois filhos, podíamos um dia ter netas, então o ciclo se completaria. Claro, eu nunca neguei que se tivesse uma filha, me sentiria o pai completo, já que tenho dois filhos maravilhosos. E Bere, por eu ter uma afinidade tão afável por uma pretensa filha, achou que devia me conceder uma filha, nem que fosse adotada. E ela foi atrás. Mas os percalços da vida e a burocracia não lhe deram a chance de concretizar seu desejo. A explicação é simples: porque na época em que tínhamos vigor físico suficiente e queríamos adotar, para criar mais um serzinho em nosso lar, a burocracia para uma atitude tão humana e também, em parte, o fator financeiro impediram ela de realizar este sonho.
   Por outro lado, eu dizia a ela: "Deus me impediu de ter uma filha porque eu iria mimá-la demais." Ela ria do que eu falava. Mas sabia que eu estava sendo sincero. Então retrucava: "Sabe que menina mimada até que não seria tão chata assim? Eu queria! Seria uma companheirinha que mesmo que quebrasse meus batons, se borrasse com minhas maquiagens, tropeçasse em meus saltos altos e eu flagrasse usando meus perfumes, me olharia e diria: "Mamãe, eu só queria ser como você!"" E completava: "Nossa! Podia ter qualquer nome, qualquer idade, qualquer mania. Eu mudaria tudo nela, com paciência e com carinho, dando o amor necessário, para ter uma companheirinha em todos os momentos!" E finalizava: "Se viesse sem nome e eu pudesse escolher, chamaria Kelly." Era nosso sonho ter uma Kelly.
   Mas, foi um projeto em nossa vida que não aconteceu. Pelos motivos que muitos conhecem e que deixam tantos serzinhos adoráveis empilhados nos orfanatos, crescendo amargos porque a burocracia não lhes abriu as portas para um lar que as tornasse filhas e filhos e lhes deixasse crescer com dignidade. Serzinhos que jamais vão experimentar o gosto de ter uma família, um lar, alguém que os ame de verdade e um sonho realizado. Em contrapartida, famílias que lhes dariam a razão para serem felizes. 
   Um dia, de tardezinha, horário de verão, nós dois sentados na calçada na frente de casa, ela com a cuia do chimarrão na mão, olhou para mim. Ficou lendo minha alma com aquele olhar profundo e disse, sem tirar os olhos de mim: "Quer mesmo ter uma filha?" - Eu respondi: "Quem não quer?" - Na época, ela tinha em torno de 35 anos. Continuando a me fitar com seu olhar avassalador, respirou fundo e retrucou: "Então, vamos tentar mais um filho! Se for menina, Kelly será bem vinda. Se for menino, vamos agradecer a Deus a bênção de mais um filho!" Na época a gente não estava bem financeiramente, mas em meu pensamento vi uma menina abraçada a ela e aceitei o desafio. Ela, ainda me encarando disse: "Nosso amor vai nos trazer todos os meios para criarmos mais um serzinho em nosso meio. Quem alimenta e veste dois, também alimenta e veste três!" Mas não aconteceu. Não vingou. Talvez pela ânsia em realizarmos este sonho, talvez porque nosso destino foi o de ficar somente com os dois filhos maravilhosos que geramos.
   Sua paixão por crianças não tinha limite. E mesmo nos últimos tempos, ela em tratamento, fraquinha com as intermináveis quimioterapias, um dia ouviu a Maria Clara, filha da vizinha chorando no meio da tarde, me chamou e cochichou: 
   - Que vontade de ir ali e pegar a Maria Clara e trazer pra casa e dar umas mimadas nela. Escuta só o chorinhoooo! Ai que dó!
   Eu só ri e respondi:
   - A vizinha está criando a filha dela do jeito como nós criamos os nossos: choro de manha, não se encobre. Deixa chorar. 
   Ela riu e concordou.
   Agora, todas as vezem em que ouço as manhinhas da Maria Clara, me lembro da Bere fazendo carinha de dó, doida pra trazer a menina aqui em casa e encher de mimos. Esta é uma lembrança gostosa, que me dá satisfação em sentir, porque volta um filme inteiro de muito amor e carinho que ela sempre teve para com os pimpolhos. 
   Eu continuo mantendo os potes cheios de balinhas e pirulitos. Ela não gostaria que eu deixasse uma criança sair aqui de casa sem uma guloseima.

Com a sobrinha neta Lívia

Uma tarde na piscina com gostoso cachorro quente depois, com Maria Júlia e Natália, filhas de colegas de trabalho.

 Com Bianca, sobrinha neta.

 Com o filho Wagner

 Com o filho Guilherme

Com a sobrinha e afilhada Jéssica, amor de mãe mesmo!

Outra foto com a sobrinha neta Lívia

 Com o sobrinho neto Murilo

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Etapas




 Etapas.

   Em Fevereiro estivemos 10 dias em Itapema, Santa Catarina. Foram férias maravilhosas, muito sol. Praia gostosa, a de Meia Praia. Ainda há algumas das casas que foram construídas nos anos 60 e 70 pelos primeiros veranistas. No mais, a cidade está tomada de prédios, e a cidade em si, está virada num canteiro de obras. Bere havia conseguido o telefone da Rose, uma senhora que agenda aluguel para algumas destas casas. Ano passado, por esta época, liguei para Rose e aluguei uma destas casas para veranear. Como sempre, depois de fazer o negócio em si, Bere tomava o telefone para saber detalhes da casa, o que tinha que levar para termos férias aconchegantes. Nossa, como ela era detalhista: indagava tudo. Queria saber sobre utensílios, mobília, enfim, tudo que ela precisava levar para as férias serem "as melhores dos últimos anos!", como sempre dizia na volta, assim que chegávamos em casa, depois de ter se certificado que a viagem de volta também fora tranquila.
   Gostamos tanto desta casa, é grande, tem pátio com amendoeira enorme na frente, linda sombra, a duas quadras do mar, no centro. Ao voltarmos, decidimos alugar a mesma casa novamente em Fevereiro de 2014. É a última coisa anotada na agenda da Bere: "começo de Novembro: ligar para dona Rose para alugar casa em Itapema."
   Cumpri isto ontem à noite. Agenda da Bere aberta, sua letrinha a minha frente, escrita alegre e desenhada, já me travou. Enguli em seco, pensei: "Tem de ser feito, ela queria tanto isto de novo! Vamos lá!" Peguei o telefone, cada número discado acelerou mais meu coração e quando o número completou ele estava aos pulos. E eu sufocado. Esperei uns segundos. Pareceu uma eternidade. Meu peito estava procurando espaço para pulsar mais. Por sorte, a linha estava ocupada. Respirei fundo, aliviado por não ter podido completar a ligação. Esperei um pouco e para me distrair fui limpar a geladeira da garagem que havia posto a degelar. 
   Enquanto estava nesta função, eu travava uma batalha interna para libertar de mim esta sensação pesada que eu havia construído em cima do simples fato de ligar para Rose para alugar sua casa. Mas o que pesava não era a ligação em si. Mas a realização de mais um sonho da Bere que não vai ser completo. Bere partiu antes. E o seu imenso desejo em realizá-lo novamente é o que justamente pesou para ligar. No fundo, no fundo, eu estava a ponto de ir atrás de um sonho bem mais dela do que meu. E ela vibrava muito com a possibilidade de repetirmos isso.
   Falamos tanto nestas férias durante o tratamento dela, enquanto ficávamos sós na sala de quimioterapia, nas intermináveis seções de 6 horas. A vontade em rever Itapema, 'correr lojinhas', tudo perto, comprar roupa de cama que lá é bem em conta, ir na cafeteria. Ela adorava tomar chimarrão ao entardecer no calçadão de fronte ao mar, vendo as mães com seus filhos fora do sol para protegê-los. Andar abraçados sem rumo na rua central e parar numa sorveteria para um sorvete. Depois, parada bem demorada na livraria revirando livros, comprar e ter leitura para o ano inteiro. E dos comprados este ano, três ela não alcançou ler. Entre eles, Um Otimista Incorrigível de Michael J. Fox. De noite ir na pizzaria, lotada de gente risonha e de línguas misturadas em vários idiomas. Ou jantar no restaurante em frente ao mar, enquanto acompanhávamos cantando o músico que se apresentava ao vivo.
   Tudo isto correu em minha mente, assim como o pano correu as prateleiras da geladeira vazia. Mas tinha de ser feito. E fiz. Terminei a geladeira, religuei, repus as coisas que havia posto na geladeira da cozinha, sentei à mesa. Agenda aberta mais uma vez, sua letrinha pulando naquela folha numa alegre anotação, e eu, com meu conflito pessoal. Disquei ligeiro os números para nem sentir a ligação fechando e já o telefone chamou do outro lado. Quando o coração ia disparar, Rose atendeu. Minha voz estava tremendo. Rose, com calma e simpática conversou comigo, tratamos os valores e ela ficou de confirmar a data. Quando eu ia agradecer, minha voz já embargada, ainda tremendo, ela pediu para falar "com sua esposa para acertar os detalhes da casa." Nossa! Aquilo me atravessou como um risco e se alojou em meu pescoço, me sufocando. Respiração difícil, respondi choroso: "Bere faleceu há quarenta e dois dias."
   Um silêncio demorado imperou entre nós dois. Bastante tempo. Do outro lado da linha ouvia uma respiração nervosa, contrita, incógnita. Eu, tentando me fazer de forte, só senti duas lágrimas correndo do canto de meus olhos, enquanto ninguém se atreveu a falar. Até que eu quebrei o silêncio porque não enxergava mais de tão marejado que estava, e disse que podia acertar os detalhes comigo mesmo. Ela só conseguiu engrolar com uma vozinha sufocada: "Tá tudo como foi neste ano, nada mudou. Pode trazer as mesmas coisas." Eu agradeci. Ainda disse a ela que estava realizando o sonho da Bere, mas que iríamos só eu e os meninos, e talvez alguém mais da família. E ela disse que retornaria ligando para confirmar a data.
   Depois da ligação caí num mar de choro. Nossa, até aí eu estava me sentindo forte, pois eu tinha conseguido ficar dois dias sem chorar, estava começando a me sentir mais seguro. Porém, acabei em uma só vez derramando as lágrimas de três dias.
   A casa está alugada. Não pensei que seria tão difícil cumprir esta etapa, mas cumpri. Bere assim o queria. Eu assim o farei. Tenho certeza que Bere está vibrando com minha atitude. Eu sinto que me seguro no jeito dela agir. E isto nos liga. E até Fevereiro, mais tempo vai ter passado e com certeza vamos ter férias muito alegres, mesmo sem ela.


Chimarrão no fim de tarde no calçadão defronte ao mar



A Casa


A amendoeira e sua sombra



'Correr lojas', fazer comprinhas, presentes para todas as pessoas que Bere queria bem. Escolhia a dedo.


 Praia lotada, descanso, mas deu pra tirar um tempinho e comprar uma bijuteria do indiozinho que passou vendendo. E a conversa com ele, agradando. Preço da pulseira? 4 Reais. Ela deu 10 reais e disse para ele comprar um refrigerante ou um sorvete com o troco. Pouco tempo depoois ele passou lá e mostrou orgulhoso a lata de Coca Cola que ele havia comprado.

 Mar de água limpa e cristalina


Praia de Meia Praia - Itapema



Centro de Meia Praia - Itapema



Calçadão



 Esperando o almoço ficar pronto



Jogando Imagem e Ação na cozinha.



Esperando a pizza na pizzaria.



Preparando o almoço: Bife à milanesa



Cena que não vai se repetir mais



Prontos para saír, andar no centro, depois jantar



O inseparável café...


...e chimarrão


Pausa na leitura, para uma namoradinha e uma foto



Almoço na beira do mar em Meia Praia - Itapema, não tem preço.