segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Rosas para Bere



Rosas para Bere

   Estou antecipando a entrega deste buquê de rosas para Bere já que na próxima quinta-feira, que seria a data do seu aniversário, não estarei aqui para entregar. Já fiz de propósito. Vou sair para não estar aqui, porque não sei o quanto este dia trinta de Janeiro vai me abalar, já que será o primeiro aniversário de Bere e o primeiro aniversário de casamento que passarei sozinho. O Natal já me abalou. Senti profundamente ter que levar seu presente no cemitério. E naquele cenário, somente eu, o buquê e aquela cova fria me ensinou que a ausência é muito mais presente do que parece. A ausência é marcante. A presença muitas vezes não o é. E isto doeu. Sua ausência marcante de tudo o que de tanto bem ela sempre fez a mim e a todos os que a cercavam. Muitas vezes agindo nos bastidores e vibrando com os resultados, sem as pessoas que foram afetadas com sua ajuda marcante o saberem. Mas o sentirem. Chorei muito lá e saí quando as lágrimas começaram a secar. A entrada do Ano Novo foi tão marcante, que guardo até hoje em meu coração o momento em que eu pensei em abraçar Bere espiritualmente mas a sensação que se formou então, foi de um vazio tão grande, de uma ausência tão marcante que jamais vou esquecer. Estas coisas do coração não tem como medir. Sempre pegam fundo. Mesmo que a gente não tenha a intenção. Mas celebrar uma data que não vai mais acontecer, que ficou no tempo somente como um marco de um grande acontecimento, isto nunca passei. E por isto não quero estar aqui, olhar para todos os detalhes que fomos trazendo para dentro de nosso lar nestes trinta e um anos de convivência e sentir a ausência de sua grande protagonista. Mas Bere, no plano em que estiver, sabe que eu não sou medroso, supersticioso ou fracote a ponto de fugir de nosso cenário para não passar esta data aqui. Ela sabe que eu farei isto primeiro pelos nossos filhos que também vão sentir o peso desta data. Depois, para eu ter no meio do descanso, tempo e luz para refletir sobre tantos momentos bons que vivemos juntos, e que esta data justamente comemorava sempre a repetição destas conquistas. Trinta e uma rosas vermelhas, trinta e um anos de feliz vida em comum. Duas rosas amarelas, dois anos de namoro, conhecimento, descobertas e o despertar do maior amor de nossas vidas. E uma rosa cor-de-rosa, em sinal do dia que seria seu aniversário e o aniversário de nosso casamento. Fui premiado por ter este ser maravilhoso em minha vida, a minha Bere. E isto me alivia quando penso nos motivos do porquê de ela ter partido tão cedo.



sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Quatro Meses sem Bere. Viúvo.



Quatro Meses sem Bere, viúvo.

   Volta e meia eu me pego contando o tempo para tentar acelerá-lo e assim distanciar-me do acontecimento mais marcante de minha vida, que foi a partida de Bere para outro plano. Porque este acontecimento me matou também. Morri junto com ela. Só que eu, diferente dela, tive a chance de voltar à vida. Porque meu fio à vida continuou ligado. Ela não. Ela teve sua vida levada, seu mundo subtraído, seus sonhos apagados. Sem perdão. Um acontecimento inimaginável. Inexplicável. Indelével! Algo que palavras não descrevem. Nunca. Já havia perdido pessoas próximas a mim, mãe, pai, sogro, sogra, mas nem se compara à sensação de perder aquela tua parte que foi teu todo. Como ela dizia: "Meu tudo!" - Assim era ela para mim também. Meu tudo, meu todo, minha base! E, sem base, com este acontecimento, todas as coisas em minha vida deixaram de ser importantes. Todas! Tudo virou banalidade, nada mais importou. Meu serviço, minha saúde, minha vida, meus objetivos, minhas metas, o que eu comeria, o que faria ou deixaria de fazer, dinheiro... tudo sem graça, tudo tanto fez. Meu mundo ficou como se fosse um filme de uma história, onde o fim não importaria mais, porque a mocinha havia morrido no meio do filme. E isto fazia tudo o que viria depois não ter mais graça. Na época, as únicas motivações que me levaram a reagir foram nossos dois filhos e ir atrás de continhas que ela tinha em aberto para deixar tudo pago, seu nome limpo. Porque por diversas vezes em vida ela me alertou: "Quando eu faltar, não quero meu nome sujo. Paga tudo o que eu estiver devendo. É só olhar na minha agenda. Anotei tudo!" - Está tudo pago. Peguei a agenda e fui atrás. Seu nome está limpo na praça. Seu desejo foi cumprido. E em todos os lugares onde passei para pagar, as pessoas me falaram do amor e carinho que Bere sempre teve para com atendentes e lojistas. E isto me animou. Bere era assim: um sorriso, um 'muito obrigado!' 
   Agora já se somam quatro meses. Sabe o que é ficar cento e vinte e dois dias sem mais ouvir a voz de Bere? Pode imaginar o vazio que isto me causa? Sabe o que é ficar este tempo todo, quatro meses, sem mais ver seu suspirar de emoção por ouvir de mim um 'Eu te amo'? Sabe o que é ficar vendo estes meses caminharem e eu nunca mais ter ouvido de manhã cedo ela me cutucando na cama e dizendo: "Vidinha, são sete e meia. Vê se não perde a hora! Estou indo pro serviço! Vê se não cochila mais e levanta. Está na hora! E também, o dia está lindo! Vale a pena levantar!" - Ela se abaixar, me dar um beijo suave na testa e num sorriso na face com seu belo e negro olhar cochichar: "O tempo passa, mas meu amor por ti cada vez aumenta mais!" - E eu, depois de algum tempo levantar, abrir a janela do quarto esperando um sol radiante e descobrir uma garoa fina e chata caindo do céu. Eu pensar: "Mas o que tem de lindo este dia?" - E a resposta proposital de Bere estar ali, quando cheguei na cozinha e vi um bilhete embaixo do bule de café dizendo: "Lindo dia! Obrigado Senhor pela garoa." - Pena que não guardei um bilhete destes! 
   A falta de Bere é marcante em cada detalhe. Mesmo deixando tudo dentro de casa como ela havia deixado, falta ela. Sabe o que é abrir a geladeira e ver aquela meia dúzia de potes de geleia, todos mofando por ninguém ter mais usado? E lembrar que só ela gostava de geleia? De banana. Adorava. Tinha até dois pela metade, do mesmo sabor. Ontem fiz uma limpa e botei tudo fora. Oito potes de diversos sabores de frutas. E chorei. Chorei sentado à mesa onde ela sentava, do lado da porta do poço de luz, lembrando daquelas fatias de pão caseiro do supermercado Cruz que ela adorava comer, coberto com uma generosa camada de geleia e por cima, uma generosa camada de nata. Para ela, este era o banquete. E uma xícara de café preto, sem açúcar. Não precisava mais. ...Todas as lembranças, que para muitos são bobagens, mas que para mim são como pistas que levam ao belo mundo que construímos, ao doce lar que se criou com todos estes detalhes. Sabe o que é estar cozinhando e não ver mais a cena se repetir de Bere chegando da sala com um calhamaço de folhas organizadas com clips, juntadas com três atilhos, embaixo livros de escrita fiscal e em cima equilibrando uma calculadora? E ela soltar isto tudo em cima de um banquinho de apoio, sentar no outro, suspirar e dizer: "Nem imagina, contabilidade é difícil! Mas cozinhar é mais difícil e te admiro por isto! ...Terminei Vidinha! E fechou tudo de primeira!" - Como tantas vezes ela repetiu. E tudo isto culminar com um abraço, um beijo e eu dizer feliz: "Esta é minha Vidinha!" - Sabe o que é chegar de tardezinha, eu olhar para o vidro da porta do estúdio e não ver mais Bere me mostrando a cuia do chimarrão, me indicando a calçada na frente de casa onde iria me esperar? A gente ficava duas horas ou mais sentado, conversando e fazendo nossa vida ser capítulos de verdade, onde trocávamos todas as nossas conquistas, dúvidas, angústias e alegrias. A hora do chimarrão do fim de tarde era algo tão importante no nosso relacionamento diário, que por enquanto está suspensa. Não tomo mais chimarrão de tardezinha. Tentei algumas vezes, mas só choro. As lembranças dela se tornam tão vivas, presentes e fortes por demais, eu não me sinto bem. Falta a vez dela de pegar a cuia, tomar um gole e iniciar mais um assunto enquanto me encarava com seu profundo olhar. Talvez um dia volte a tomar chimarrão de tardezinha, mas por enquanto prefiro ficar trabalhando e me concentrando focado no serviço, para não lembrar que aquele momento está passando e que era o nosso momento especial, único. 
   No mais, aos poucos, vou somando pequenos bons momentos diários, até que meu dia novamente esteja completo. Confesso que ainda estou convalescendo. Ainda não somo todos os momentos para um dia pleno. Só que se eu comparar meu mundo do fim de Setembro do ano passado com o dia de hoje, vejo que ele já tem cores novamente. Deixou de ser preto e branco e deixou de ter somente nuvens. Deixou de ser o filme onde a mocinha morreu no meio da história porque o mocinho ainda vive e ele continua no enredo. A contagem do tempo, porém, não é tão fácil de acelerar. Me iludo com isto. Porque quanto mais o tempo passa, mais sinto a falta de toda esta vida que construímos juntos nestes anos todos, dos detalhes que só as mulheres sabem fazer e criar, e dos aromas de tantas coisas dentro de casa. ...Um bolo assando no forno. O Guilherme anda fazendo bolo de vez em quando, quase uma vez por semana. Mas, parece que no ar não tem o mesmo aroma! Talvez seja porque Bere botava o bolo no forno e começava a passar algum produto cheiroso no granito da cozinha para limpar, ou algo na água para passar um pano na garagem. Acho que esta mistura de cheiros dava a química real de aromas inesquecíveis. Procuro assimilar dentro do aroma de um bolo assando no forno o mundo de Bere, mas não consigo. Além destas várias coisas que ela fazia ao mesmo tempo, ainda tinha o próprio perfume dela. Bere sempre se perfumava. E ela caminhando dentro de casa deixava em seu caminho nuvens de bons aromas aos borbotões. Um rastro inconfundível de boas lembranças. Tantos perfumes bons, de várias marcas, que ainda estão dentro do cesto em cima da pia. Alguns pela metade, outros num restinho e outros quase cheios. Até tem dois comprados guardados no armário, intactos, que ela nem chegou a usar. Quando bate fundo a saudade, aperto algum perfume do cesto para espalhar seu aroma no ar. Mas o aroma não é o mesmo porque perfume se soma à pele e é ali que ele cria sua identidade. Está faltando a pele de Bere para completar a magia daqueles aromas inebriantes.
   Olhando para nossa casa, de onde muitos tijolos, cimento, móveis e utensilhos são resultado do fruto do trabalho de Bere, novamente me sinto chateado. E um nó se instala em minha garganta, lembrando do quanto de esforço dela está dentro desta estrutura que é nosso lar. Que todo este empenho e esforço dela ficou para nós, seu marido e filhos. Até a cor da pintura da casa foi ela quem escolheu. Enfim, Bere ainda está presente nisto tudo. Então eu penso: "Realmente tudo valeu a pena. Pois com tudo o que ela fez em vida, deixou sua história linda para eu poder contar."


Seu belo e negro olhar mostrando uma sinceridade indescritível.



De tardezinha, hora do chimarrão, hora para compartilharmos os acontecimentos do nosso dia.

domingo, 19 de janeiro de 2014

A Pia




A Pia

   Vidinha, eu estava ansioso para conversar mais uma vez contigo. Sei que pode parecer estranho, pois é um monólogo, mas sinto como se isto chegasse a ti e eu na imaginação consigo ver tuas respostas somente pelo teu olhar encantador, que tantas vezes me fascinou. Estas duas pérolas negras que sempre me voltam à mente, me encarando docemente, do mesmo jeito como foi aquela noite de Fevereiro de 1980, mais precisamente dia 9, lá em Harmonia, no salão Fink, quando de supetão perguntei: "Quer namorar comigo?" - Este olhar. Exatamente este olhar que fizeste pra mim ao receber esta pergunta. Este olhar, negro olhar, doce, angelical. E tua resposta na sequência, sem titubear: "Aceito!" - Pois imagino teus olhos assim, desse jeito, conversando comigo. Por isto escrevo.
   O motivo que me levou a iniciar este papo contigo Vidinha, foi por tudo que a lembrança de ti, me trouxe de volta a mim, quando fui trocar o pano de louça da pia da garagem. Abri a gaveta, a de cima no lado direito da pia e vi aqueles rolinhos de panos feitos com toda a tua dedicação, ali colocados por ti lado a lado e separados por tipo de tecido. Arrumar aquela pia foi tua última atividade em vida, lembra? Tremo ao escrever. O que acabei de dizer é muito intenso, marcante. Teu último trabalho em vida foi este. E por isto é tão marcante. Ninguém jamais imaginou que seria assim, um arrumar de pia tua última ação, mas foi. Tremo porque ao escrever, estou comprometido em colocar no papel os fatos reais deste acontecimento. Lembra querida, já fazia tempo que queríamos trocar esta pia pois a outra já tinha lá seus vinte anos. Deu vazamento no cano, na parede, tivemos que chamar um encanador. Ele arrumou, mas por causa do vazamento, deixou o móvel comprometido. Então me pediste para comprar outra. Eu queria muito, até insisti, pedi, queria que tu fosses comigo à loja para tu escolheres o modelo, pois teu gosto para as coisas de casa sempre foi muito mais acertado que o meu, mas já estavas muito debilitada para isto. Pediste que eu fosse e escolhesse. Mas lógico, como não poderia ser diferente, afinal tu Bere, com teu discernimento visionário, me deixou recomendado com o tipo de modelo que sonhavas em colocar ali. E encontrei exatamente este modelo numa loja de nossa cidade. Me lembro do teu sorriso de satisfação ao ver o modelo que eu havia escolhido. E ao ver a pia nova instalada, o beijo gostoso de aprovação que me deste pelo modelo que eu havia escolhido. Então pediste para eu colocar uma cadeira em frente ao móvel para tu poderes organizá-la sentada, já que para ficar de pé não tinhas mais as forças necessárias. Certamente naquela função de organizar tudo neste novo móvel não imaginaste que jamais tirarias qualquer coisa de lá. Jamais. Partiste deixando a obra sem voltar a mexer nela. Afinal, porque depois de teres fechado aquelas gavetas organizadas e aquelas portas guardando panelas e utensílhos, nunca mais as abriste porque o destino te levou uma semana e pouco depois. Mas a tua obra ficou lá. Intacta. Deixei tudo como tu organizaste e quando preciso tirar algo dali, sempre devolvo do mesmo jeito, afinal, foi a tua última obra feita com toda a dedicação e carinho, como tudo o que fizeste em vida. Uma obra de detalhes, de lógica e de organização, assim como tu sempre foste. Aliás, teu jeitinho doce de colocar as panelas na sequência, da maior até a menor, eu continuo mantendo também na pia da cozinha. Mas quando resolveste ocupar aquela pia da garagem com o que na velha continha, eu até desaprovei. Sabia da tua condição frágil. Lembro que fiquei apreensivo porque demoraste quase uma tarde inteira para organizar aquele pequeno espaço. Te observei de longe e vi quantas vezes paraste para descansar ou massagear os braços devido às câimbras frequentes. Tua teimosia em fazer, lutando contra tua fragilidade do tratamento. Este era teu jeito Bere de ser. Tua força de vontade se sobrepondo a tua condição física já tão debilitada. Te ouvi cochichar não só uma vez para ti mesma: "Vai dar certo! Vou conseguir organizar esta pia!" - Fui diversas vezes até ali, dizia: "Vidinha, quem sabe, deixa isto, eu arrumo de noite!" - E tu, parecendo estar pressentindo que esta seria tua última obra, teu último trabalho, retrucavas: "Querido! Eu quero deixar do meu jeito. Sabes que eu sei fazer com que fique mais prático." - Então, vendo que tinhas escolhido a primeira gaveta para colocar os panos de louça e a segunda gaveta para os talheres eu questionei: "Amor, não ficaria mais prático colocar os talheres na primeira gaveta e os panos de louça na segunda?" - E tu, com teu jeito sempre acertado de raciocinar com lógica perfeita, respondeste: "É difícil organizar uma gaveta com esta montanha de talheres que tem aqui. Olha só:" - fechou a primeira gaveta e puxou a debaixo. - "mesmo arrumada esta gaveta de talheres parece confusa! ...Então, se um dia alguma visita for querer um talher, vai puxar a primeira gaveta. Vai ver que está organizadinha com os panos de louça. Então, ao puxar a segunda gaveta para pegar o talher, não vai notar tanto a bagunça porque tem na mente a imagem da primeira." - Me encheu agora os olhos de água querida! Tu sempre tinhas uma resposta sábia porque pensavas com lógica. Se agora relembro isto, é porque já fui duas vezes lá, abrir de novo a gaveta de panos de louça e não canso de ver a organização que deixaste. Dá vontade de nem mexer mais ali, sério! Para deixar como tu deixaste, afinal, foi teu último trabalho. Por isto estou sempre repetindo os dois mesmos panos de louça naquela pia, para não mexer em tua organização. Sempre pego o de cima e os debaixo ficam como tu colocaste.
   Quero te dizer também, minha doce e adorada Vidinha, que tudo aqui em casa ficou como deixaste. Até inclusive, coloquei os guardanapos natalinos enfeitando todos os móveis como tu fazias, aliás, a Noeli colocou, e agora que passou este período, os lavei, Andréia passou e devolvi pra mesma sacola onde tu tinhas guardado eles e me mostrado, para usar no próximo Natal. Os enfeites também foram para o móvel da TV da sala, todos ensacadinhos para não pegarem poeira, do jeito como tu vinhas fazendo. E eu pedi para Noeli devolver todos os guardanapos que tu tinhas deixado, exatamente do jeito como ficou. Aliás, algumas pessoas me disseram que eu tinha que mudar tudo aqui dentro de casa para diminuir minhas lembranças de ti. Mas eu não quero. Minha casa é teu santuário. Quero ter tuas lembranças todas presentes o máximo possível enquanto eu me sentir bem assim, já que não é mais possível ter a tua presença física. E me sinto muito bem assim, com tuas imagens no porta-retratos digital, no quarto, tua organização em todos os armários, tuas coisas guardadas com lógica pefeita no quarto de visitas, na despensa, na cozinha, na sala, e tuas coisinhas, roupas e teus cheiros nos armários do quarto. Tudo isto ainda é um pouco do teu pulsar em minha vida e que me ajuda a viver na tua ausência. Melhor, na minha vida e da dos nossos filhos, que não questionam esta minha atitude em preservar teus traços em nossas vidas. Acho que eles também se sentem bem assim. Senão já teriam reclamado. Não quero mexer. Tua presença nestes detalhes me faz bem. Me faz muito bem, me faz sentir um pouco da vida que tínhamos em comum durante estes 31 anos de convívio. E mesmo eu não tendo a tua pessoa física comigo, nestes detalhes eu consigo sentir um pouco do físico que convivemos. Pra que mexer? Eu quero assim, como está, e não sei por quanto tempo ficará assim, pois enquanto estiveres tão presente em meus pensamentos e em meu coração não vou mexer. Nem minha aliança ainda tirei. Me sinto ainda casado contigo, Vidinha. ...Nossa, confesso que imaginei o brilho dos teus lindos olhos negros ao ouvir o que acabei de falar. Mais uma vez, confesso que fiquei emocionado. E como é bom emocionar! Alivia, e isto é o que importa. fica bem em teu plano, meu amor. Não sei sua dimensão, mas com certeza está mais pro lado divino do que eu. Te amo. Beijoooo. Pra sempre, minha Vidinha.


este olhar. Exatamente este olhar. Inconfundível, doce, eterno.


Gaveta a pia que Bere arrumou. Seu último trabalho em vida. Não vou mexer.


quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

De Onde Veio o Apelido Vidinha


Protagonistas da série: Casal 20


Vidinha

   Algumas pessoas me perguntaram de onde tiramos a ideia de eu e Bere nos apelidarmos de Vidinha. Pois esta forma carinhosa de chamar-nos remonta já ao tempo de namoro. Só que nós solidificamos mesmo a forma de nos chamarmos assim no primeiro ano de casados. Na época rodava uma vez por semana um seriado na TV chamado Casal 20. Era protagonizado por Robert Wagner e Stefanie Powers. Ele, no seriado chamava-se Jonathan e ela Jennifer. Era um casal rico que gostava de viver uma aventura. E suas aventuras eram combatendo criminosos pelo mundo inteiro. Mas durante os capítulos do seriado, não faltavam aqueles momentos onde ele ou ela preparavam situações surpreendentes de carinho e amor, demonstrações de amor, fazendo o seriado ser mais doce e gostoso de ver. Muito aprendemos desta série. E muito do relacionamento deste casal nos identificou. Principalmente do quanto pode ser gostosa uma surpresa para mostrar o quanto é intenso o amor que se sente. O seridado escancarava isto de uma forma muito forte. A coisas aconteciam na telinha em ambientes glamurosos e nós imitávamos a ideia em nossa simples e pobrinha casinha de madeira. Pois o que importava não era o luxo que o seriado mostrava, mas as atitudes dos protagonistas. E, apesar de ricos, eles tinham atitudes simples, de amor, diferentes, que aconteciam em cada programa, no fim da aventura. E nós copiávamos. Eram os bilhetes apaixonados deixados sobre o travesseiro, uma flor no vaso solitário da cozinha, um abraço e um beijo enquanto Bere lavava a louça, um beijo roubado e um "Eu te amo" enquanto eu estava concentrado em alguma leitura, um bombom Amor Carioca trazido junto com o pão da padaria, eu ou ela entrar no banheiro depois do banho, pegar a toalha e enxugar o outro, pôr um disco a rodar e do nada tirar Bere para dançar, um dinheirinho alcançado por ela, tirado do seu salário e dizer: "Uma ajudinha para pagar a conta de luz deste mês!" - ...Tantas atitudes que engrandescem um relacionamento! ...Assim como esperar Bere na saída do serviço, na frente do escritório a duas quadras de casa, com um guarda-chuva porque chovia e ela havia esquecido de levar, voltando juntinhos e abraçados para casa em altos papos sobre o dia que havíamos passado. Ou, uma jantinha especial inusitada, com a coisa mais simples do mundo: pão com salsicha. Fazíamos uma maionese caseira porque na época era difícil encontrá-la industrializada, passada no pão e dentro colocadas 2 salsichas. Por cima das salsichas, corações desenhados com mostarda. Ou, esperar Bere voltar do trabalho com o chimarrão feito e a roupa que estava de molho no tanque (na época não tínhamos máquina), torcida, secando no varal. Ou, lá pelas onze da noite, inusitadamente no meio da semana, tirar uma espumante do congelador e fazer uma surpresa para comemorar o amor. Ela fez isto várias vezes comigo. Eu perguntava: "A troco de que, Vidinha?" - E ela respondia: "Vamos comemorar mais um mês sem discussão, mais uma semana de carinho e mais um dia de amor. Pra que deixar esta espumante guardada se temos tantos motivos para comemorar?"- Estas coisas simples, gratuitas, que só fazem bem e que repetimos tantas vezes. Copiamos também outras coisas do seriado. O sobrenome do ator Robert Wagner, virou o nome de nosso filho mais velho, Wagner. Eles tinham também uma cadelinha de estimação que chamava Freeway porque a haviam encontrada abandonada numa autoestrada. E nós arrumamos uma cadelinha também, a qual, lógico, foi batizada Freeway. E nossa Freeway era uma cadelinha meiga, doce, companheira. Raça pequinês, encantava todo mundo. Até que uma noite dessas alguém jogou um pedaço de carne com vidro moído no pátio, ela comeu e morreu. E neste seriado, Jennifer chamava carinhosamente Jonathan de Vida. Bere e eu achávamos tão doce este jeito de chamar. Afinal, Vida, é um termo intenso, ele condensa tudo em sua palavra. Gostamos tanto que assimilamos esta forma de chamar, nos chamando um ao outro também de Vida. Mas, com o passar do tempo, sentimos que chamar de Vida ainda não tinha a profundidade do carinho que sentíamos. Faltava adaptar o termo ao nosso relacionamento, para que soasse mais carinhoso. Então, um dia, Bere sem querer me chamou de "Vidinha". Nossa, lembro daquele momento como se fosse hoje.
   Era um sábado de tarde. Verão, calor, sol de rachar. Na divisa de nosso terreno com o do vizinho tinha uma cerca de estaquetas, que é formada por ripas de madeira. Tinha umas duas ou três quebradas pelo desgaste do tempo e eu resolvi consertar isso para impedir a passagem dos bichos da vizinhança. Estava eu lá, acocorado, suado de alto a baixo, chapéu largo, pregando uma estaqueta quando Bere chegou com um jarro e um copo e me chamou: "VIDINHA, fiz uma limonada para ti." - Encheu o copo com aquela bebida geladinha para mim, com cubinhos de gelo caindo junto no copo. Na hora aquela forma de me chamar me deixou desarmado. Fiquei tão impressionado pelo doce chamar de Bere, que fiquei em dúvida sobre o que mais me tocou: se foi porque ela me chamou de 'Vidinha', se foi a atitude dela em me fazer aquele agrado ou se foi a própria limonada. Acho que foi a soma das três coisas. Mas, aquele 'Vidinha' continuou soando em minha memória como se eu tivesse ouvido a mais bela e completa canção de amor de minha vida. Peguei o copo e enquanto comecei a tomar a trouxe para a sombra embaixo de um ingazeiro que tinha ali perto. Tomei aquela limonada em rápidos goles, estava sedento. Bere serviu o segundo copo e o repartimos. Meu olhar para ela foi de uma paixão tão intensa, que não me contive e disse: "Vidinha, Vidinha!!!!! Que maravilha! Nunca mais vou te chamar diferente. Vais ser minha Vidinha daqui pra frente!" - Ela tomou uns goles daquele copo, me alcançou ele pela metade e eu tomei o resto. Ficou só me olhando com seu jeito pós adolescente de menina-mulher, olhar atrevido e realizado, de quem havia selado naquele momento nosso relacionamento para sempre, só por dizer uma palavra. Ela encheu mais um copo, cubinhos de gelo caíram novamente tinindo junto com o suco, e enquanto ela voltou a tomar a limonada eu disse: "Nunca na vida ouvi um jeito tão doce de ser chamado. 'Vidinha'. De agora em diante vou te chamar assim: minha Vidinha!" - Ela começou a rir e respondeu: "Isto não vale, o apelido é meu. Sou eu quem vai te chamar de Vidinha." - Eu quis retrucar, mas ela falou antes: "Vamos nós nos chamar de Vidinha. Eu deixo. Saiu sem querer, mas eu também gostei muito. Muito mesmo! Soa tão gostoso!" - A partir daquele dia, até a partida dela, a maneira mais corriqueira de nos chamarmos foi Vidinha. Houve outros modos de chamar como 'amor', 'querida', 'paixão', 'tesouro', 'minha linda' 'esposinha' maridinho' e pelos nossos nomes. Mas, daquele dia em diante jamais passou um dia sequer, sem que ao menos eu ou ela nos chamássemos de "Vidinha".


A nossa cadelinha Freeway (1982)

A cerca de estaquetas que separava o terreno de nossa casa do terreno do vizinho (1982)


segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

O Cantinho



   O Cantinho.

   Ontem desfiz o cantinho da sala de jantar onde Bere havia improvisado seu 'escritório remoto'. Ela amava seu trabalho. Mexer com números, dados, balanços, enfim, o lado contábil das empresas fazia seu mundo. E ela assumia a tarefa de cada empresa para quem fazia a contabilidade com tanto empenho que dizia: "As minhas empresas!" - Tudo sempre fechado em centavos. E por tanto amor a sua profissão, durante as duas primeiras semanas após a sessão de quimioterapia ela trabalhava a partir de casa remotamente. Isto porque a imunidade fica quase zerada neste período e é perigoso no contato com outras pessoas contrair alguma doença que poderia até ser fatal. E ela, mesmo meio enjoada por causa do tratamento, se empenhava com tanto afinco, que quando via, era quase meia noite e ela ainda estava lá, alimentando o sistema via internet, com seus dados, para manter as escritas em dia.
   Bere tinha o hábito de trabalhar com a TV ligada. Ela dizia: "Eu raciocínio melhor. Quando me pego na dúvida, olho para a TV e aquilo me inspira. Encontro logo o caminho." - E o trabalho fluía. Numa dessas vezes, ela encontrou uma dúvida séria sobre onde lançar um dado. Era algo inusitado sobre uma situação, que não lembro mais qual, eu pouco entendo de contabilidade, mas que ela em toda sua carreira nunca tinha pego. Então, a novidade a fez pensar em voz alta durante dois dias até encontrar a solução. Eu achava engraçado, pois volta e meia a pegava gesticulando e falando para consigo: "Bom, se a venda foi feita eu tenho que encontrar onde encaixar isto!" - E o tempo caminhou. Até que um dia de tardezinha ouvi aplausos e gritos de:"Yesss, yesss, yesss, isssa!" - Fui até ela e ela toda faceira contou que havia encontrado a solução para o problema. E lá foi ela anotar em sua agenda a solução para, caso fosse novamente encontrar um problema como o que havia pego, saber logo como resolver. Eu, feliz com a conquista dela, pedi que ela ficasse de pé. Queria abraçá-la, beijá-la. Ela puxou sua cadeira para trás, ficou sentada e disse: "Sei o que quer. Mas eu não vou levantar. Quero ver se tu ainda consegues me levantar no colo." - Eu fui, tentei, até a ergui um pouco. Mas não consegui, a devolvendo para a cadeira. Ela, num sorriso maroto, continuou com seus braços em volta de meu pescoço, roçou seu nariz no meu, me fixou com o negro olhar e disse: "Um dia me carregaste no colo para dentro do nosso quarto. Foi a melhor viagem que fiz!" - Eu respondi: "Ai que lindo, Vidinha! Foi a minha melhor viagem também e a trilhamos tão bem em todos estes anos. ...Mas sobre carregar, eram outros tempos. Eu era mais forte, tu eras mirradinha, fácil de carregar."- Ela, em altas gargalhadas retrucou: "Tá me chamando de gorda, é? ...Não gostei!" - E rindo, me beijou. Ela havia emagrecido bastante durante o tratamento. Então falei: "Amor, não quero atrapalhar. Vou te deixar a vontade, para continuar teu trabalho." Já ia me virando para sair da sala, quando ela agarrou meu braço e me puxou de volta, dizendo: "Senta aqui, Vidinha." - Puxei a cadeira ao seu lado, sentei, e fiquei esperando o que ela iria me dizer. Ficamos um  tempo assim, conversando somente com o olhar, ela me estudando até os confins de minha alma e eu com meu olhar indagador. Senti perfeitamente em seu olhar algo como: "nossa, no que virou nossa vida!" enquanto seus olhos enchiam de água. E já me desceu também um nó na garganta, pois sabia que ela teria algo importante para dizer, senão não teria protagonizado esta cena. Bere, olhou para o forro, coçou levemente a cabeça sob o lenço que envolvia sua calvície, respirou fundo e disse: "Pio, estou muito chateada com a vida que ando te dando estes últimos meses. Não saimos mais, não realizamos mais nada, não fazemos mais nada, para tudo dependo de ti. Estou deixando tua vida completamente vazia, sem sentido." - Volta e meia uma lágrima corria do canto de seus olhos. Eu respondi: "Que sentido teria minha vida se eu não fizesse tudo por ti? Tu és meu sentido! Isto é que importa!" - Ela, fixando seu olhar doce, negro na minha alma, lendo minha sinceridade, continuou: "Mesmo que eu seja só obrigação no teu sentido, por estarmos casados? ...Eu não quero isto pra ti. Vê no que transformei tua vida! De brilho virou cinza, escuridão, e só mais sobrou disto tudo meio eu. ...E tu sabes que estou sendo menos do que a metade do que eu era, não preciso nem falar. Basta me olhar." - Tentei falar, mas ela tapou minha boca com sua mão, senti o salgado de sua lágrima que tinha acabado de tirar, e continuou: "Psst, só ouve, deixa eu falar! ...Minha dívida para contigo Pio, tá ficando grande demais. Eu sinto isto no teu olhar, no teu jeito de ser..." - Começou a chorar, "tu não és mais feliz. Eu sinto isto. Em  todas as tuas atitudes. ...Desde o programa na rádio onde tentas mostrar tua alegria, mas eu sinto que é falsa. ...Tu estás ruindo por dentro e queres ser forte. ...Tenho medo que isso vá te fazer mal. E eu não quero carregar mais esta culpa comigo. ...Vai, Pio, desaba! Não guarda isto tudo, vai te fazer mal! ...E se isto me prejudicar, paciência, minha metade inteira vai tentar sobreviver." - Eu estava chateado com o que ela havia falado. Por ser verdade. Claro, meu brilho havia diminuído, afinal, estava com a pessoa mais importante de minha vida doente, condenada. Mas ela, mesmo sendo a metade como disse, era o meu todo e o tudo para mim. Não a via diferente. Jamais pensei nela em 'metade'. Sempre pensei no todo do que dela ainda sobrara. Coisas que ela deixou de fazer por necessidade, limitações ou falta de vontade, fazem parte de uma virada de vida como Bere havia tido. Ela não tinha culpa. A vida adoece as pessoa à revelia, não existem culpados. E eu estava buscando dentro de mim as palavras certas para responder a toda esta situação que ela havia criado. E não sabia o que falar. Porque sempre fomos sinceros, e eu não queria ruir naquele momento com ela tão frágil, tão necessitada. Precisava de mim forte. Então falei: "Vidinha, tu estás muito pra baixo. Levanta este astral! Se dizes que estás só mais metade, nossa, imagina quando novamente estiver inteira. Vou passar trabalho contigo!" - Ela sorriu entre seu olhar marejado e disse: "Bem que se vê que nos merecemos: ambos estamos sendo falsos para parecermos fortes. Então deixa assim, vamos nos somando."
   Comecei desfazendo o cantinho dela tirando o notebook que ela havia comprado especialmente para seu trabalho remoto. Guardei. tirei o teclado externo que ela usava por causa da calculadora, tirei mouse e bloco de anotações. Dentro dele, nada de especial, somente uma que me chamou a atenção: "Pedir Pio comprar talco mentolado." Tudo guardado, a toalha que usara sobre a mesa improvisada onde tinha uma mancha de café foi pra máquina de lavar. Sobrou uma caixinha em cima da mesa. Nunca havia aberto ela. Abri. Tinha caneta, lápis, uma latinha de balas, um apontador, um batom e um pendrive. Embaixo disto tudo 4 dos tantos bilhetes que eu havia escrito acompanhando flores ou presentes e que ela guardava para reler quando tivesse vontade. Coloquei o pendrive no pc para ver o que tinha dentro dele. Quando ele abriu, não consegui segurar a emoção: tinha o curso de inglês que ela queria fazer, para quando fôssemos viajar para o Caribe ela ter a mínima noção para se comunicar. Chorei um monte, lembrando deste sonho que também ficou para trás, como o próprio curso de inglês. Tinha também uma folha do bloco de notas onde ela escreveu: 
   "Viver. Viver sempre. Plenamente, feliz. E não ter a vergonha de ser autêntica. Mesmo que doa. Eu vivo plenamente isto. Obrigado Senhor pela família que tenho, eles são meu mundo e Pio é meu tudo." 


Os quatro bilhetes que estavam dentro da caixa sobre a mesa.



quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Sessão de Quimioterapia


 Sessão.

   Quando marcamos a primeira sessão de quimioterapia em Abril do ano passado, Bere foi submetida antes a uma entrevista. Chegamos no setor, na Unimed de Montenegro, e fomos recebidos pela Carol, secretária e recepcionista da ala. Menina simpática, cativante, que só com seu jeito centrado e elétrico ao mesmo tempo, em nos atender, já amenizou a nossa tensão da espectativa do que viria pela frente. Suas respostas seguras, com propriedade, nos tranquilizou. Uma profissional certa para um setor marcante que é o de quimioterapia. Depois, entrevista com Janete, a enfermeira chefe do setor. Nos levou a um dos quartos de sessões. Quando ela começou a nos contar como seria feito, a duração das sessões, os diferentes medicamentos aplicados, riscos, consequências, efeitos colaterais, Bere começou a chorar. Janete levantou de onde  estava sentada, colocou os folders que segurava sobre a cama, do lado onde Bere sentava, e a abraçou longamente. Durante o abraço, Bere disse: "Tenho medo de morrer durante uma sessão de quimioterapia." - Janete continuou no abraço até que Bere esteve mais calma. Eu, sentado ali na frente das duas, tremia de angústia. Queria ajudar. Queria muito me meter e ajudar. Me fazia mal ver a Bere daquele jeito e eu, impotente, não saber o que fazer. Queria falar, mas não tinha o que dizer. Também não sabia o que podia acontecer numa sessão de quimioterapia de 6 horas. Queria muito me envolver também naquele abraço, chorar com ela, mas não conhecia a enfermeira. Era nosso primeiro contato. Então, depois que desfizeram o abraço e Janete novamente sentou na frente dela, eu fui e sentei do lado dela na cama, a envolvi e mantive assim, enquanto lhe enxugava uma lágrima. E, a resposta para a pergunta de Bere foi de que era muito raro acontecer alguma reação durante a aplicação do medicamento e muito difícil vir a óbito. 
   Chegou o primeiro dia da quimioterapia. Dia 3 de Abril de 2013. Quarta-feira. Na véspera, Bere me pediu para comprar uma cuca grande no supermercado Cruz, do lado de casa. Fui com a recomendação de que era para perguntar antes de comprar, se no dia seguinte não teriam já cucas às 8 horas, para levar uma bem fresquinha. Com não teriam, comprei a da véspera mesmo para levar junto e dar para as meninas no setor do hospital. Comprei uma cuca de leite condensado. Chegamos cedo, 8:20. Já estávamos sendo aguardados pela Carol que num largo sorriso já falou alto quando chegávamos na ala: "Está aí a moça que vai ficar conosco toda a manhã!" - E Bere num largo sorriso também, deu "Bom Dia", a beijou e disse: "Isto é para adoçar a merenda de vocês!" - E entregou a cuca. Nossa, a alegria da Carol foi visível. Nisto já chegaram também a Janete e a Jovana, que também é enfermeira da ala e prepara os pacientes para a sessão. Outra menina doce, de um olhar terno, conversa agradável, especial. Assim como a Janete, já um pouco mais séria, mas muito focada no seu trabalho. E Carol já chamou todas para verem o presente que haviam ganho. Foi uma festa. Também chegou a farmacêutica Ane, que prepara o coquetel de produtos para a quimioterapia, se apresentou a nós e já comemorou com as outras este pequeno gesto de Bere, que fez a diferença. Uma simples cuca de 7 Reais. Bere era sempre assim. Detalhes pequenos, muito bem pensados, para fazerem a grande diferença. Mimos de pouco custo, mas valorizados por quem recebia. A sessão iniciou lá pelas 9 horas e se extendeu até às 15 horas. Fiquei junto com ela o tempo inteiro. Conversando, a mantendo animada, dando comidinha na hora do meio dia, e nos intervalos café, suco, água. Ela dizia: "Nossa, isso está parecendo um hotel 5 estrelas. Todo mundo me servindo, paparicando, me entupindo de comidinhas e bebidinhas e eu só neste conforto deste poltronão!" Ficou com frio nos pés. Eu pedi e prontamente Janete trouxe um cobertor. Então, depois da primeira experiência, enfrentar as outras 5 sessões a que se submeteu foi menos apreensivo.
   E as sessões foram se sucedendo. Sempre com cuca de sabor diferente e a alegria das meninas em nos ter por uma manhã inteira com elas. Bere encantava. Nós já éramos íntimos da ala. Muitas vezes Bere sentia desconforto com a entrada que certos produtos do tratamento quimioterápico provocam no organismo, como ardência, formigamento, enjôo, tontura. Ela comentava comigo e eu prontamente queria chamar a Jovana ou a Janete, mas ela dizia: "Não, não chama! Elas devem estar com gente mais complicada que eu pra atender. Eu aguento!" - E mesmo eu insistindo, ela me persuadia a não chamá-las. E quanto mais o tratamento foi repetido, tanto mais difícil ficou encontrar veias que permitissem a aplicação do medicamento. A quimioterapia 'seca' a veia onde é aplicada, segundo as enfermeiras. Então, vez por outra, precisavam chamar a mão-de-fada do hospital, a Fernanda, para encontrar veia. Fernanda acocorava na frente de Bere, pegava um braço, passava o dedo seguindo a linha da veia, passava para o outro braço, examinava com cuidado, e, pronto. O ponto certo de enfiar a agulha. Ela sempre encontrava uma veia. 
   A quimioterapia além da quimio, foi uma verdadeira terapia para mim e Bere. Revemos muitos conceitos de nossas vidas em nossas conversas, falamos sobre tantas coisas que daria para escrever uma enciclopédia. Nosso passado, rebuscando lembranças doces e rindo sobre situações que atravessamos juntos. Falamos muito do presente, do tanto que tudo isto estava afetando nossas vidas e no tanto que tivemos que nos adaptar a tudo isto. E algo do futuro incerto também, onde Bere sempre iniciava dizendo: "Quando eu faltar..." - Eu xingava ela e dizia: "Este tipo de assunto não me interessa." E ela retrucava: "Repito: quando eu faltar, quero que valorizes tudo o que de pequeno pode ser grande. Aquele sorriso, sabe? ...Valoriza ele. E muito! Porque portas se abrem com este sorriso." - "Que assunto esse, Vidinha? Vamos falar de outras coisas." - E ela insistia em continuar: "Quando eu faltar, não desampara nossos filhos. Continue sendo o que eras com eles e um pouco do que eu seria." - Seus olhos se encheram de água. E ela arremedou com o queixo tremendo: "Do que eu... seria..." - Fez uma pausa. Eu já tava a ponto de chorar também, apreensivo, sentado na sua frente, enquanto ela me olhava profundamente, cativante, incisiva. Ela continuou: "Eu seria a melhor vó do mundo, Vidinha! A melhor! A mais vovó que um netinho poderia sonhar, Vidinha! A mais, mais! ...Mas acho que não vou conhecer meus netos." - Fez uma pausa, assoou o nariz, voltou a me olhar, seus olhos negros brilhando e continuou: "...Então, seja o melhor vovô em dobro, Pio! Em dobro. Por mim!" - Chorou largado, dizendo: "Eu queria tanto conhecer meus netos, Pio, e acho que não vou alcançá-los." - Eu peguei um papel toalha, fui, enxuguei seu nariz, suas lágrimas, a afaguei e disse: "O futuro a Deus pertence, Vidinha. Tudo é possível. Podes sim, ainda alcançar nossos netos. Também não sei se a esta altura te serve de consolo, mas quem diz que eu vou alcançar nossos netos?" - Ela, olhou para mim, e afagando minha bochecha de leve com seu indicador disse: "Querido! Sempre te repartindo comigo!" - Isto tudo aconteceu na hora do meio dia, quando a gente ficava a sós, com a sala fechada, e só nossa, enquanto Jovana ficava na recepção. 
   Em uma das últimas sessões de quimioterapia, Bere teve mais uma de suas demonstrações de atitude que só ela tinha. Comentou comigo: "Sabes, acho que Deus está me fazendo passar por tudo isto para que eu tivesse a oportunidade de conhecer estes 'seres anjos' que são os médicos, técnicos, enfermeiros, faxineiras, enfim, todos que trabalham neste hospital? Eu não os teria conhecido de outra forma. E tenho todos como sendo de minha família. Quando fico longe, já sinto saudades da vozinha animada da Carol, do doce carinho da Jovana e da firmeza da Janete." - Eu respondi: "Mas nada impedia que pudesse tê-las conhecido de outro jeito, em outras condições." - E ela: "É, mas foi deste jeito que aconteceu e tenho todos no meu coração. Rezo e torço por eles, para que sempre acertem em seu trabalho." - Era Bere tentando encontrar o lado bom dentro das  piores adversidades. 
   Além disto também, entre tantos exames de sangue a que Bere teve que se submeter, sempre teve o carinho do atendimento aqui em nossa cidade da Aline que se empenhava para conseguir os resultados dentro do prazo previsto. Se virava para dar certo e os exames estivessem na mão da dra. Maria Helena na hora da consulta.  E Bere comentava isto comigo. Dizia: "Nossa, mal conheço esta menina e ela já se puxa para que tudo saia bem pra mim. Vou ter que dar um presente para ela." Até hoje estive pensando a respeito e este presente ficou faltando. Mas ela vai receber, com certeza! Porque Bere cumpria todas as suas intenções. E eu vou fazer isto por ela.





segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Mais um Dia nas minhas Andanças

Rosa padre-reus. Fica aberta uma semana sem desfolhar

 O Dia.

   Hoje instintivamente na hora de por a mesa, coloquei para quatro pessoas. Nossa, quando me dei por conta de que o prato de Bere não precisava mais ir para aquele lugarzinho onde ela sentava, travei. Uma história inteira de Domingos se atravessou em minha mente e eu terminei de arrumar a mesa e de fazer o almoço com um nó na  garganta. Afinal, é o primeiro Domingo do ano sem ela, sem sua viva energia a contagiar a família, sem seus pitacos nos erros do meu programa de rádio, sem tantas outras coisas. Máquina de lavar calada, esperando eu tomar a atitude, se quando eu chegava em casa a máquina já estava encerrando o processo, pois ela havia feito funcionar. Um Domingo vazio, de encanto quebrado, onde somente mais ficou o que tem por fazer, e não o amor por fazê-lo. Faltam tantas coisas. Falta o rádio ligado tocando a continuidade da programação da RCC. Falta o pátio varrido, que agora está cheio de folhas. Falta o cesto de frutas no centro da mesa. Falta a pia com a louça lavada, seca e guardada. Falta o fogão tinindo de limpo. Falta tudo.  Falta encontrar em cima do microondas o início da lista das coisas que vamos levar para a praia. Então eu penso: o que ela anotaria? E enquanto os bifes vão pegando ponto vou anotando ítens que se usa todos os dias e que fariam falta nas férias. Ao mesmo tempo, revejo este começo de ano.
   Difícil. Muito difícil acordar no primeiro dia do ano, depois de 31 anos, sem Bere do meu lado, dormindo doce e encantadora em seu sono de umas espumantes a mais, esparramada na cama, invadindo meu espaço com seu doce braço, num sono angelical. Difícil ver seu travesseiro vazio, alinhado ao meu e seu lado na cama com o lençol lisinho, sem ter sido usado. Difícil ver que entrei no novo ano sem lista de sonhos tantas vezes feita por ela em tantos anos, onde anotávamos as prioridades para o próximo ano. Aliás, nem preciso escrever porque minha lista de sonhos para este ano só tem duas palavras: saúde, foco. Com este sonho de apenas duas palavras pretendo recomeçar. Difícil ver que no cesto de roupas não está para lavar o seu vestido branco da virada com uma mancha rosa da cereja que caíra da taça de espumante como fôra no ano passado. Assim como suas sandálias brancas com detalhes dourados que não estão do lado da pia e nem seu cinto dourado está pendurado no suporte ao lado da toalha de rosto. Nem seus brincos com pérolas estão sobre a pia, junto com o anel e a pulseira de pérolas. "Contas de brilho para dar sorte!" - Dizia ela. Sinto falta de tudo isso. Muita falta. Olho para a banheira e não vejo sua roupa dobradinha esperando o banho do primeiro dia do ano. Parece até que não é meu quarto, minha banheira. Porque toda virada de ano, tinha ali de manhã uma toalha de banho cor de rosa, e uma roupa leve para vestir após o banho. Faltam também dentro dela as revistas de novelas, os livros, a retrospectiva do jornal e o encarte de Arte & Agenda que ela sempre lia. Mas o vasinho de violetas multicores fiz questão de manter sobre o balcão da pia, renovando quando estas ficam passadas. Uma singela forma de dar continuidade à vida, com este pequeno detalhe. E Bere nunca o deixou faltar.
   Está faltando no ar o cheiro do preparo de toda esta química: seus cremes, seu perfume, seu desodorante. Parece que o ar do meu quarto não tem a mesma graça, que está sem química. Difícil ver que a tv do quarto não foi ligada na véspera para Bere dar uma conferida no réveillon. Aliás, faz três meses que não é ligada. Penso em ligá-la para ver se ainda funciona, mas, perco a vontade. Nunca usei aquele controle remoto, estou sem óculos, nem sei onde aperta para ligar. Tem três botões vermelhos. Deixo para outro dia. Aliás, como deixo para outro dia tantas coisas que deixaram de me apetecer desde que Bere partiu. O livro que eu estava lendo ainda está marcado na mesma página, minha leitura não caminhou mais. Assim como outras coisas que não fiz mais. Simplesmente não apetecem porque não tenho o estímulo dela me empurrando para fazê-lo. Sem vontade de cortar a grama e refazer as folhagens do jardim, ando pagando o Rogênio para fazê-lo. Até é bom para ele: trabalhador, esforçado e caprichoso, vive disso. Bere gostava dele. Quando tinha algo a fazer aqui em casa sempre pedia para chamá-lo. Um simples faz-tudo, que nos conquistou. Também não me apetece mais fazer comidinhas elaboradas, cheias de cuidados, em panela de ferro, tempero apurado, pois quem as provava com o gosto da alma não está mais aqui para provar. Nem aquele monte de curtidos não me apetece fazer. Agora acho trabalhoso fazer. Antes tinha prazer em fazer porque Bere não via a hora de tirar a primeira cebolinha, ou o primeiro pepino curtido do pote de conservas. Porém, estou pensando seriamente em mudar isto, porque comida boa é a essência de um equilíbrio saudável. E pratos ricos em misturas fazem nosso organismo absorver mais nutrientes. 
   Mas a rosinha padre-reus no vasinho em cima do granito da cozinha eu mantenho. Sinal de vida. E olhando para aquela flor, sinto que a vida também me olha. E que eu devo a ela uma lenta e gradual recompostura. É como aquele botão que está do lado da rosa, lutando para abrir. Mas tem o tempo de isto acontecer. Não tem como forçar, ele vai abrir no tempo certo. Este botão de rosa só irá desabrochar quando as pétalas lá dentro estiverem firmes para se segurarem ao vento. Para que não se desfolhem ao primeiro vento. Eu ando me desfolhando ainda até com uma brisa. Nem precisa ser vento. Mas estou ficando mais forte na base. E sei que com meus dias também será assim, desfazendo aos poucos todo este episódio que ainda me envolve para que quando voltar a ser pleno, este mesmo invólucro será minha base de sustentação. De onde sairei com novo semblante e pronto para a vida.




Bere e seu negro olhar. Não canso de admirar. Seu olhar era único, doce e severo, mas aconchegante. Jamais esquecerei seus olhos lindos, negros, profundos e cativantes.