Tudo Por Um Microfone
Outubro. Naquele fim-de-semana os sinos da torre da igreja de Harmonia dos anos sessenta ecoaram festivos pelo vale, anunciando a grande festa que ocorreria naquele domingo. Era a festa da igreja.
Mas todos os preparativos já iniciavam bem antes para a logística do dia ser perfeita. Eu era criança e adorava acompanhar todo aquele movimento frenético entre tantos que se empenhavam para a realização da festa. Meu pai era o sonoplasta. Mas também responsável por fazer toda a instalação de cornetas pelo galpão que ficava entre a igreja velha e a nova, na igreja velha e também na torre da igreja nova, para a música e os anúncios ecoarem triunfantes pelo vale, atraindo toda a população à festa.
Meus irmãos e eu, no frênesi de acompanhar tudo de perto, ajudávamos o pai a puxar os cabos, instalar as cornetas, montar o equipamento, testar tudo para no dia ter sonoridade e vida naquela festa. Depois de tudo montado, nos apinhávamos na frente do microfone de cápsula a cristal, para passar o som. Cada um queria ao menos falar alguma coisa nele para o pai ouvir e dosar melhor os graves e agudos daquele velho amplificador RCA dos anos cinquenta, à válvulas, de sessenta watts que animava toda a festa.
No sábado de tardezinha, véspera do grande dia, chegavam as barras de gelo para serem colocadas em cima da serragem e cobertas pela serragem também, para no domingo de manhã cedo quebrarem aquelas barras enormes sobre as garrafas de cerveja e refrigerante. E tudo era novamente coberto de serragem para o gelo se manter.
Domingo cedo esta atividade acontecia. O pai e nós, os irmãos, é claro, já estávamos circulando pelo ambiente enquanto a missa festiva corria na igreja. E a gente pegava pedacinhos de gelo para chupar com gosto de serragem, já que em casa não tinha geladeira e isto era novidade. Este gosto foi tão marcante que consigo sentir até hoje.
A festa começava na saída dos participantes da missa. E o galpão, de um lugar com meia dúzia de pessoas logo ficava apinhado de gente falando alto, vindo para almoçar. A churrasqueira montada fora do galpão tinha uns dez metros de comprimento, com os churrasqueiros correndo no meio da fumaça virando aquele monte de espetos de taquara para deixar a carne no ponto
O pai, no palco no meio do galpão, tocando discos de 78 rotações fazia a festa andar. Alguns anúncios de vez em quando também eram feitos na voz dele. E claro, nós os filhos, ao redor dele, escolhendo as músicas, limpando os discos, pegando bilhetes de mensagens, acessorando.
O almoço acontecia, com dezenas de mesas enormes apinhadas de gente comendo, bebendo, falando e rindo alto. Era churrasco com salada de alface, cebola e tomate e cacetinhos cortados ao meio. Delícia.
Antes de irmos para a festa, o pai dava a cada um de nós dois cruzeiros, o que dava duas pepsi ou duas grapete. Ou um sorvete da sorveteria da rodoviária. E nós saíamos da festa para ir no meio da vila comprar um sorvete com duas bolas, uma de morango e a outra de creme, feitas pelo Carlos Hilgert. Afinal, sorvete não existia e o Carlos fazia um sorvete divino. A grapete que esperasse.
De volta, a festa corria animada, com meninas mandando 'prender' rapazes na cadeia improvisada com taquaras, onde eles tinham que comprar a liberdade, ou rapazes mandando prender meninas, onde eles mesmo compravam de volta a liberdade delas para serem notados. E tinha aqueles coitados e coitadas que não tinham a mesma sorte e as vezes ficavam presos a tarde inteira por falta de pagar a liberdade ou ter alguém que pagasse.
Nas mesas, animação, histórias etílicas recontadas com detalhes do passado, pessoas rindo alto, crianças penduradas nos seios da mãe mamando, namorados beijando as mãos do outro já que em público avançar mais era pecaminoso, e a brincadeira estranha entre os adultos: Fazer caber todo o conteúdo de uma garrafa de cerveja dentro do bico de uma mamadeira. E disputavam isso com uma vontade doentia. Quando não dava certo e o bico escapava do gargalo, era um banho de cerveja. Mas quando dava certo, era motivo de muita comemoração.
Uma certa altura, depois do almoço, o pai botou a tocar a música "Itsy bitsy teenie weenie", aquela que teve a versão para o português com o nome de Biquini de bolinha Amarelinha. Em rápidos passos chegou perto do palco o padre vigário Oscar Mallmann e disse para tirar esta música da festa dele porque era imoral. O pai prontamente aceitou, obedecendo, e entregando o disco ao padre, o qual pegou uma tampa de garrafa e riscou aquele lado do disco de forma que era impossível novamente tocar aquela música. Era imoral só porque falava em biquíni.
Havia também a rifa da festa que angariava bons fundos e era formada por cinco prêmios. Pois, naquela festa eu pedi para o pai deixar eu ler os números do resultado da rifa. Então ele me disse que no bloquinho de rifas dele ainda faltavam vender 6 números de dez. Se eu conseguisse vendê-los até a hora de girar a roda do sorteio, ele me deixaria ler os números no microfone. Eu tinha sete anos de idade.
Saí caminhando no meio do povo oferecendo aqueles números, mas vi que a missão era praticamente impossível porque a maioria das pessoas ali presentes já havia adquirido um ou mais números. Mas eu precisava vender, eu tinha ganho a chance e queria falar naquele microfone para todo aquele povo presente. E quanto mais 'nãos' recebia, mais minha carinha de tristeza se manifestava, até que uma lágrima rolou do cantinho dos olhos. E foi com esta carinha que ofereci para um casal, onde o homem na hora disse que já tinha comprado, ao que sua esposa disse para ele comprar ao menos um número para ajudar. O homem me fitou e perguntou:
- Quantos números você ainda tem para vender?
- Seis! - Respondi desolado. - Eu preciso vender todos estes números!
O homem então mandou eu sentar do lado dele, a mulher alisou meus cabelos, então eu já um pouco mais acalmado, repeti que precisava vender aqueles números. O homem, curioso pela minha insistência, perguntou:
- Mas por que precisas vender estes números? Se não vender não tem problema!
Então eu disse chorando:
- Preciso vender estes números para meu pai me deixar anunciar o resultado do sorteio no microfone.
A esposa do homem abriu sua bolsa e na hora comprou os seis números de pena de mim e disse para eu caprichar já que eu queria tanto fazer isso. Dei os bilhetes para ela, peguei o dinheiro e saí correndo no meio da multidão até o palco para mostrar meu feito para o pai. Ele sorrindo disse que conforme me prometera eu iria anunciar a rifa daquela festa.
Chegou o momento do sorteio. O sorteador era uma roda enorme com um monte de números, não me lembro mais se ia até 99, separados por pregos. O sorteio aconteceu. Trouxeram os números, o pai me deu, perguntou se conseguia ler a letra, eu disse que sim, tremendo de alto a baixo. Para alcançar o microfone ele teve que colocar emborcada uma caixa de cerveja, na época, de madeira. Eu subi nela e ouvi minha voz de criança anunciando os cinco números sorteados, onde um dos prêmios foi para aquela mulher que comprou a chance de eu falar a primeira vez num microfone para um monte de pessoas.
Quando havia terminado de ler os números, desci da caixa de cerveja, o pai orgulhoso, emocionado comigo, me abraçou longamente e disse:
- Sobe aí, anuncia de novo! Alguém pode não ter ouvido.