terça-feira, 19 de outubro de 2010

Conto - Problemas em Família


                              Problemas em Família



Quando Maria Ojeh Kasir me falou de seus primeiros e desesperados encontros com o avô de sua cunhada, Arnus Sandfisch, simplesmente supus que ela estivesse blefando. Nunca houveram acertos entre os Ojeh Kasir e os Sandfisch. Dizem que estes desacertos vêm da diferença entre as duas raças: a de Maria Ojeh, árabe e a de Arnus sandfisch, germânica. Todos os membros de ambas as famílias evitavam-se no máximo  de suas condições e possibilidades, e isto já vinha lá de longe, de uma data a perder de vista, desde os primeiros contatos com seus antepassados imigrantes. Como ambas as famílias se declaravam pessoas de bem, fiéis, crentes e religiosas, usavam como armas a boca e a inteligência. Armas brancas ou fatais não cabiam no uso de suas picuinhas nem em suas mentes banhadas pelos gens de descendentes de famílias dotadas de inteligência peculiar e refinada. Além disto, ninguém sabia a maneira de como o irmão de Maria Ojeh, Célio, conseguira se casar com a filha de Marcus, Lourdes, boa moça e principalmente, moça boa, esbelta, com feições indiscutivelmente germânicas.
Ninguém chegou a saber como aconteceu a trégua para este evento, já que seus pais, os dele e os dela, suportavam-se menos do que os homens e os mosquitos. Mas, o fato é que o casamento realmente ocorreu. Todos os que participaram da festa propriamente dita forma Célio, Lourdes, algumas moscas, Maria Ojeh e os comes e bebes. Ninguém almenjava a realização deste casamento, é lógico, por isso foi efetuado secretamente sob o manto noturno de uma sexta-feira sinistra, com cerração acompanhada de fina garoa, nos arredores da Igreja. Para ser mais detalhado, na sacristia. Em meio ao odor de vinho, um vinho de primeira qualidade, o padre, num esboçar de plena satisfação, realizou a cerimônia com desvelo e dedicação.
É interessante notar que a particularidade do evento foi mais uma das várias incógnitas do destino: ele usa meios e métodos próprios para discernir casos sem solução. Pois, mesmo as duas famílias não se aceitando, nem acolhendo este casamento, passaram a se injuriar menos.
Maria Ojeh não vacilou em aproveitar um pouco desse sol, e bronzear e aquecer a frieza de sua própria participação no caso. Ela, desde seu nascimento, se prestava muito para curinga. Um detalhe importante porém, é o de ela se auto intitular com estes propósitos: ser a chave para todas as fechaduras e pau para toda a obra. Em nosso encontro, seu maior desejo era o  de eu ajudá-la em seus propósitos altruísticos. Me dizia ser impossível, com tanto ódio no mundo, justo sua família estar amolando línguas com a outra família, da qual seu próprio irmão escolhera sua cara-metade... Seu irmão que, martirizado pela apatia dos seus e dos de Lourdes, acabaria dando suas medidas ao coveiro bem antes do tempo, vestindo um pijama-de-pau ainda na mocidade... Maria Ojeh, com seu olhar inquieto, ainda completava dizendo ter certeza que seu irmão acabaria definhando e perecendo de qualquer maneira, menos da natural. Seus olhos se tornavam grandes, redondos e envolventes ao me dizer isto. Já do meu lado, pensava de outra maneira: “Trintona gostosa que parece mais uma tempestade de areia no deserto escaldante a varrer de mim todas as vibrações negativas: eu faço isto para ficar um pouco mais perto de você!” Ela era em seu todo um desejo. Melhor, era um vulcão! Aquele cabelo negro, brilhante como as estrelas nas Mil e Uma Noites, completados com o negror daqueles olhinhos, os quais, antes meio apagados, agora se tornavam flamantes e misteriosos. Para completar, seus dentes incisivos eram enormes; sempre apareciam levemente atrás da boca semi-aberta, dando na gente a impressão de estar sendo fitado com a gana de um relacionamento mais aprofundado. E eu completava em minha mente: “Ajudar? Eu? Há, há, há... Um caso, do qual meu espírito aventureiro sente e respira os ares mal-cheirosos do necrotério, hão haveria de me atrair. Não me envolveria, nem sequer hipnotizado!”
Mesmo eu pensando assim, ela possuia um toque especial, cativante e audacioso, o qual me fazia perder as rédeas lentamente. E isto não era novidade para ela; já me conhecia e não pouco. Em outras oportunidades, já caíra comprometido em auxiliá-la por culpa de seus encantos. E suas palavras mais uma vez me aclaravam meu novo compromisso assumido: ajudá-la em suas tentativas para acabar com as rixas e os desacertos entre as famílias. Quando caí em mim, vi que havia concordado, porém não encontrei os motivos  que me acanalharam com tão intragável tarefa e que haveriam de me causar inúmeras aporrinhações. Contudo, uma vez concordado, o mais importante era entrar em ação. O caso poderia levar meses, até anos para ser concluído e superado. Maria Ojeh, com todos os seus palpites e diretrizes amplas deixava-me atucanado.
Sentia-me como uma gota de álcool com o dever de conseguir embriagar um alcoólatra. Por outro lado, meu serviço tomava praticamente toda a semana, não restando muito tempo vago para desempenhar atividades paralelas.



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A primeira tentativa para aproximar as famílias partiu de Maria Ojeh, tendo a mim como ator. Simplesmente a esta altura, ainda não havia me dado conta como fora idiota aceitando auxiliá-la. Também não havia encontrado perfeitamente meu futuro comportamento: agir como personagem real ou fictício. Atordoava-me o fato em ver-me completamente envolvido com uma questão entre duas famílias das quais em nenhuma delas se incluía a minha pessoa. Notava-se muitas coisas mal explicadas, não aclaradas, entre todos os membros de ambos os lados. Emfim, certamente o que faltava era diálogo.



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Apesar de eu saber, Maria me contou da gravidez de Lourdes e que não faltava muito para ela gerar a barreira entre os dois fogos. Usaríamos o nascimento da criança como recurso de aproximação. Pensamos ser esta tentativa passível de grande sucesso para acabar com as rinhas entre as duas famílias tão estimadas e cultas.
Ao término de três semanas, enquanto aguardávamos calmamente e ao mesmo tempo entusiasmados, nasceu a primeira filha de Célio e Lourdes. A criança, uma verdadeira obra-prima do casal, merecidamente teve o nome exótico e pomposo de Aragelda, uma pincelada de árabe e germânica em seu conteúdo. A criança possuía características genéticas provindas das duas raças, definidas pelas cores, tez e traços. Mas como só poderia ter acontecido, cada família discutia em mantê-la enquadrada em sua prole, sendo isto um grande motivo para novos atritos. Maria Ojeh e eu havíamos presumido que isto poderia ocorrer, sendo por este lado nossa primeira incursão na tentativa em reaproximar as famílias.
Como detalhe do plano, tornei-me namorado de Maria Ojeh Kasir. E esta idéia só poderia ter vindo de minha mente, sempre predisposta às vantagens isentas de sacrifícios. Para iniciar, iríamos à casa dela jantar: ela me apresentaria aos seus como o seu pretendente, e tentaríamos após alguns encontros, dirimir a ira que pairava contra a outra família. Mas aquele dia, quando meus olhos cruzaram pela primeira vez com os do pai dela, Abdala Kasir, de imediato perdi todas as esperanças de efetuar as devidas negociações e executarmos nosso plano: Abdala, homem magro, quase careca, aparentando ser um nobre – embora não o fosse – possuia um desenrolar de conversação áspero e fluente, não deixando grande margem às argumentações. Em rápídos traços, suas palavras e seus olhos, como sua feição, eram tão ásperas e curtidas como o deserto de onde sua ascendência viera. Ele demonstrava simpatia, porém notava-se perfeitamente que ela era superficial. Até Maria Ojeh, sua própria filha, alterava completamente a sua maneira de ser em sua presença, demonstrando medo e submissão ao pai, apesar de ela estar girando os trinta anos. “Possibilidades mínimas!” – era a única frase que circulava em meus pensamentos a respeito do caso. Sentia-me mal-vindo naquela casa. Toda a atmosfera dava a impressão de temporais inimagináveis.
Após várias visitas aos Ojeh Kasir, sempre acompanhado da afável miragem no deserto escaldante, a bela Maria, comecei a tornar-me menos distanciado por todos os Kasir. Aliás, Célio e eu firmamos mais ainda a nossa amizade, a qual já vinha de há muito tempo. E na casa dos Kasir apareceu aquele momento mágico para iniciarmos o diálogo sobre os rivais. A inquietude de Maria perante seu pai deixava-me irrequieto também. A um certo momento não me contive e dei-lhe um beliscão na coxa, a qual a deixou com um hematoma duas semanas. Mas valeu a pena. Ela entendeu, respirou fundo e começou a apresentar os nossos pontos-de-vista. Encontrávamo-nos reunidos na sala, juntamente com Abdala e Ilena, sua esposa. Depois da sobremesa, após algum silêncio, Maria Ojeh arriscou:
- Pai, precisamos conversar...
- Pois não! É exatamento o que estamos fazendo, filha! – Disse ele firme e certo, alisando sua barbichinha aparada com cuidado.
- Acontece que estou procurando palavras, e...
- Palavras... Pois, encontre-as! Elas sempre se encontrarão presentes no momento certo, no momento em que as precisar.
- Mas as minhas palavras estão soando amargas embora o momento exija a necessidade de palavras doces e suaves!
- Pois eleve seu espírito à paz! Sua amargura desaparecerá.
- Talvez... Mas minha amargura está tão perto de mim, que fica difícil conseguir dissipá-la só com a elevação do espírito.
- Pois tente! Nunca se tem o resultado sem experimentá-lo, sem palpá-lo.
- Esta amargura tem a ver com os problemas, ...sabe,
- Sei??? ...que problemas?
- Ora, pai! Isto vai longe...
- Está querendo opinar sobre o quê? ...Será que... eu posso adivinhar?
O clima da conversa estava se encaminhando em outra direção. Senti o tamanho do domínio e da prepotência de Abdala. Maria Ojeh ainda tentou:
- Eu queria dizer, pai, sobre... o que acha das injustiças no mundo?
- Não formulo opinião a respeito. Injustiças sempre houveram e haverão. Vocês bem o sabem, que se fizerem tudo o mais certo, que lhes julgue certo e conveniente, alguém terá encontrado defeito. É a lei da vida, minha filha, e por isto o mundo progride.
Estaca zero. Via-se perfeitamente que ele lera nossos pensamentos e não se propunha a contribuir. Muito pelo contrário, ficara rodeando o assunto para não se aprofundar. Maria Ojeh, que estava sentada ao meu lado segurando minha mão, a apertou e fitou-me acabrunhada. Deixou brotar um sorriso desanimado e eu pude ver através de seu olhar a amargura que ela sentia por esta situação. Por fim, fitou Abdala, resolvendo continuar a conversa:
- Mas, pai? Você não acha que alguém deveria fazer algo? Digo: lutar, desenvolver o bem ao seu redor, disseminar boa-vontade e entusiasmo e, com esta influência, contagiar a todos a fim de melhorar a vida?
- Se alguém fizer algo, dirão tratar-se de auto-promoção. Sempre haverá aqueles que ficam à espreita, a fim de contaminar seus semelhantes com pensamentos e atos aproveitadores. O jeito é, e acredito que vocês concordam comigo, levar a vida com nossos esforços, procurando mantê-los em prosperidade e correção o tempo que for possível, e...
- Discordo! – entrei de supetão no diálogo. – Nunca é demais ajudarmos a melhorar pelo menos aos que nos cercam e nos são caros. Acho certo fazermos o possível para que em nosso meio, em nossa comunidade, todos se sintam bem. Para tanto, há sempre a necessidade do apoio de todos, inclusive o seu, colaborando na harmonia e no engrandecimento de todos os cidadãos, começando a entender os motivos das divergências, enfim, dirimindo todos os mal-entendidos que possam estar inquietando sua família.
- O que estão insinuando?! – E Abdala, gesticando com o indicador num ar colérico: - ...Ah, já entendi! Vocês estão falando do relacionamento rompido entre nós e os Sandfisch. Nunca! – Elevando a voz – Nunca!!! Nem morto haverei de tentar uma reconciliação!
Rapidamente pensei em algo para dizer, a fim de abrandar a cólera de Abdala. Olhei fixamente para ele e mudei de idéia: pensei ser melhor continuar insistindo no assunto, já que o meu envolvimento começara a tomar forma:
- Senhor Abdala, devo crer que esta sua resposta tão repentina e amarga não é coerente com sua personalidade. Esta saída já pronta em seu pensamento, deixa-me perceber uma vontade secreta no senhor, em reatar com os Sandfisch.
- Édson, não consigo crer que você, um rapaz dinâmico e bem quisto em toda a comunidade, esteja tentando se envolver nas rixas entre nossas famílias. A princípio, não está inteirado sobre todos os motivos existentes e, além do mais, deveria, antes de opinar, conhecer todos os meandros que engendraram esta nossa rispidez com aquela família.
- Mas nós só temos um objetivo: é...
- Silêncio! – Proferiu Abdala sério e autoritário. – Você não tem direito a opinar sobre nada, afinal, nem a nenhuma das duas famílias pertence!
Maria Ojeh encorajou-se e entrou na discussão:
- Não se esqueça meu pai, que eu sou sua filha e que Édson é meu namorado e que estamos com sérias intenções de levarmos nosso relacionamento adiante e que...
Abdala fez sinal para ela calar, enquanto balançava a cabeça em sinal de negação. Etristecido falou:
- Maria! ...ó Maria, minha bela Kasir! Seu pobre velho pai está cansado de enfrentar todos os ventos secos e arenosos que uivam ao nosso redor. Não posso admitir que você, minha própria filha, sangue puro, quente, com o olhar tão perspicaz quanto o de sua avó e a inteligência marcante de sua mãe, venha a me contrariar...
Eu fiquei observando aquele desenrolar, meio perdido pois não conhecia seus costumes, mas ao mesmo tempo louco para dizer umas verdades para aquele velho teimoso.
Nisto, Ilena que ficara o tempo todo cabisbaixa acompanhando nosso debate, levantou-se e fez-se ouvir:
- Édson, para você deve ser difícil de entender como isto tudo pôde acontecer, mas quero que saiba que aqui, nesta casa, quem ainda usa a calça é o meu marido Abdala Kasir. Não estamos interessados em lavar os pés de ninguém! Se eles desejarem que nossos desentendimentos acabem, que venham falar conosco. Não nos dobraremos a eles. ...E vou lhe dizer mais uma coisa: não é porque nasceu uma perfeita Kasir do ventre de uma alemoa, que vamos dobrar-nos e curvar-nos diante deles. Eles se esquecem de que foi necessário o pai, um árabe, puro sangue, um Kasir, para que Aragelda nascesse! Todavia, é como Abdala e eu queremos: se pensam em terminar estas desavenças históricas entre nossas famílias, que venham até nós!
- Mãe, não fale assim! A alemoa tem nome: Lourdes!
- Não interessa! Por ter nome não deixará de ser alemoa, e, principalmente, não deixará de ser filha dos Sandfisch.
- Por favor, mãe! – Falou Maria com ternura. – Acho completamente desapropriado o modo como trata sua nora.
- Ainda não a conheço, Maria! Como vou ser gentil ao me referir ao seu respeito?
Maria, respirando fundo  e mais confiante respondeu:
- Mãe, um pouco de culpa vocês têm por não terem dado a ela a oportunidade de conhecê-los, proibindo-a de vir aqui.
- Sim, sim, minha filha! ...é assim que você pensa: meus pais são os culpados de tudo...
Entrei na conversa ajudando Maria:
- Os culpados são a sua teimosia e a falta de vontade de ambas as partes em resolverem este desentendimento.
Ilena baixou a cabeça engrolando quaisquer palavras em árabe, em tom de amargura ou como se estivesse rezando. Em seguida dirigiu seu olhar ao marido e disse:
- Abdala, vamos dar uma caminhada. Aqui não há ambiente para o seu coração doentio.
Abdala levantou com dificuldade; Ilena o ajudou apoiando suas mãos sob suas axilas. Maria Ojeh e eu nos fitamos e ela, com um olhar patético e um jeito derrotado transpirava por todos os seus poros a amargura por não ter dado certo nossa investida. A única conclusão que chegamos, foi a de que havia uma certa vontade em se reconciliarem, já que Ilena dissera que eles deveriam tomar a iniciativa.
Neste encontro porém, foi uma das frases ditas por Maria ao seu pai que estava começando a me atordoar: desde quando nosso namoro de mentirinha estava criando laços mais sérios e profundos? Com que direito ela pôde chegar ao pai e dizer que estávamos por firmar nossos laços com maior intensidade?
Aquilo me fez pensar...



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Houve a segunda tentativa de aproximar as duas famílias. Ela nunca teria acontecido, porém um detalhe fez-me levar o caso adiante: esse namorinho, namoro-de-brincadeira entre Maria Ojeh e eu, estava tomando formas e pude pressentir que a vontade de lutar ao lado dela possuía valores mais desenvolvidos, muito além do nosso simples altruísmo inicial. Era incrível a maneira sensacional como ela agia. Seus graciosos movimentos, misturados com trejeitos rápidos insinuavam um efervescer de uma deusa das mil e uma noites. Eu sonhava com ela a me provocar vestida de alto a baixo com seda branca semi-transparente, deixando a vista um piercing malicioso no umbigo. Aquele do tipo que dá vontade de mordiscar. E, no meio da seda branca, divisava ancas bem delineadas de uma profissional da dança do ventre. Nos sonhos, um véu cobria seu rosto, mas deixava a mostra o olhar negro e cativante e a boca sensual, semi-aberta, com os incisivos sensualmente e desejosamente à mostra. E o que dizer do seu perfume? ...áh, aquilo era uma mistura de Maderas do Oriente com Almíscar Selvagem e Jasmim! Seus meneios deixavam rastros daquela sutil mistura aos borbotões. O espetacular de tudo isso era que o perfume fazia a gente se sentir inebriado. Quantas vezes meu rosto seguiu seu caminhar, comandado pelo nariz terrivelmente possuído pelo teor aromático na medida certa daquela inquietante e provocante trintona! Quantas vezes, ao deitar, a lembrança desse perfume me atrasou o sono, trazendo-me à visão aquele semblante irrequieto e maduro, dançando ao som de música árabe, balançando as ancas como quem diz: “Estoy aqui, queriendote” – assim como a Shakira na mais arábica paixão. ...Quantas vezes o sono nem chegou, pois, o perfume tomara conta de meu ser e o meu desejo era de estar ao lado de Maria Ojeh, sentindo de perto este perfume em seu todo, me envolvendo com o seu poder afrodisíaco. Mas, dentre isto tudo, o que realmente me seduzia era o meu sentimento por ela. Decidi empenhar-me ao máximo em sua luta, e posso garantir que essa participação vinha de nossos encontros, nossos desejos contrários, os quais se decidiam por si próprios, sem muita discussão nem esforço da parte de nenhum dos dois; vinha seguramente, do nosso imensurável desejo em ficarmos juntos.
Meus pais, já amadurecidos pelo correr do tempo, não puderam compreender o meu envolvimento com um caso, o qual não me dizia respeito. Achavam muito melhor eu me preocupar mais com a loja de calçados que ainda não havia instalado há muito tempo e que aos poucos ia criando sua freguesia. Mas, no fundo eles sentiam perfeitamente tudo o que passava em meu ser, para meu procedimento ser dessa maneira. Eu sei, porque meu pai um dia falou, quando Maria Ojeh e eu nos preparávamos para a primeira tentativa, sendo que ainda nada sentia por ela:
- Meu filho, o destino usa armadilhas infalíveis para formar o quebra-cabeça de nossas vidas. Veja, por exemplo, que você está fazendo uma coisa sem objetivos aparentes, mas o que o eu o interior pensa e realiza, deve-se deixar fazê-lo: pode ser que aí está a chave de uma nova porta no labirinto do amor. Você ama, mas só saberá no dia em que abrir esta porta. Vá com Deus!
Fiquei remoendo estas frases durante vários dias, mas sua compreensão tornava-se impossível: era além das experiências e sentimentos de uma vida pouco madura como a minha. Agora, com o correr do tempo, tudo foi esclarecido. “Nada como o tempo para ensinar a viver corretamente e sem mancadas”, Pensei feliz. “Enquanto não houver raciocínio não haverá compreensão”.
Isso já aprendi desde cedo e acredito que este seja o motivo mais forte a fazer as pessoas repensarem diversas vezes as atitudes a serem seguidas.



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Maria Ojeh e eu marcáramos encontro em minha casa, pois lá poderíamos estudar nossa segunda tentativa com mais afinco. Quando ela chegou, eu já havia estudado o que combináramos em todos os detalhes: seria Lourdes, a esposa de seu irmão, que entraria em cena. Não era muito fácil de se imaginar o que ela poderia fazer para desempedrar os Sandfisch. Usaríamos como pretexto a ofensiva dos Kasir, ou seja, de que eles resolveriam acabar com as suas insinuações e seus preconceitos, caso os Sandfisch tomassem a iniciativa, dando a entender que é muito mais fácil e feliz uma vida, uma atmosfera de paz total, com amizade. Esta dedução só no pensamento e entre nossas conversas seria de resultados indubitavelmente positivos. Críamos nesta idéia, sobrando uma única possibilidade: daria certo! Como era o gênio e o caráter dos Sandfisch? Isso me atordoava e o confessei para Maria Ojeh:
- Do nosso ponto-de-vista, do jeito como bolamos tudo, esta reconciliação já deu certo, Maria. Mas, diga-me uma coisa: você sabe como é o temperamento dos familiares de Lourdes?
- Querido, honestamente não faço idéia!
- Mas, não tem nenhuma pista?
- Bem, isto talvez tenha... deixa eu pensar...
- Tenta pensar algo...
- Bom, Édson, se tomarmos pelo jeito e pelo comportamento de Lourdes, da maneira como ela me recebe e trata, mesmo eu sendo filha do Abdala, só posso concluir que é gente muito boa! E, sendo ela assim receptiva, devo concluir que seus pais também sejam assim.
- É, Maria, bela conclusão!
- O problema é meu pai: não tem jeito de  mudar por conta porque em seu sangue circula o calor do deserto. Ele está no clima errado: aqui, quando faz frio, ele precisa arranjar outros meios para se aquecer. Os Sandfisch são um bom motivo para isto.
Rimos da conclusão dela, nos abraçamos, despedimo-nos de meus pais e fomos à casa de Célio e Lourdes. No caminho, Maria perguntou-me umas três ou quatro vezes o motivo de minha quietude total. Não respondi, mas vinha pensando numa conversa infalível, que levasse a esposa de Célio a crer que era extremamente necessário um diálogo com seus pais, para instigá-los a se apaziguarem com os familiares de Célio. Um dos melhores motivos que encontrei foi a filha deles; seria bastante ilógico os Sandfisch não aceitarem Aragelda como parte de sua família. Afinal, pensei que considerariam ao menos o fato de ela ser sangue de seu próprio sangue.
Era injusto que aquele serzinho, aquele anjo crescesse no meio de discórdia entre seus avós.



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Estava escuro, um perfeito breu aquela noite. Algumas corujas se manifestavam com suas xingas em árvores ali próximas e sua ladainha era completada com o sibilar agudo dos morcegos em revoado sobre nossas cabeças. Maria Ojeh, caminhava grudadinha em mim, com seu braço enganchado em meu, mostrando certo temor da noite. Mas, minha companhia deixava ela tranquila.
Diante da casa de Célio brilhava uma lâmpada incandescente, a qual cintilava ofuscando nossos olhos, já acostumados com aquele negror fechado, sinistro, envolvente.
Nós dois, com as pupilas dilatadas da escuridão, custamos a fitar diretamente aquela luz que parecia um sol perdido na noite.
Faltando uns vinte metros para chegarmos até a entrada da casa do irmão de Maria, ela me fez parar. Me abraçou ternamente, e enquanto eu sentia seu doce envolver e seu perfume inebriante, ela falou:
- Édson, quero que saiba que ninguém nunca fez tanto por mim. Estou encantada com você.
- Ora, Maria, amigos são para estas coisas...
- Amigos? – Atalhou ela.
- Sim, amigos! Ou, algo mais?
- Amigos? – Tornou ela a dizer, olhando agora em meus olhos. Eu, já havia decidido aprofundar meus laços com ela, afinal, Maria me prendia, me cativava, me deixava fora do ar. Com o olhar fitando o dela, disse:
- Maria, vamos falar sério. Até agora, não decidimos sobre este nosso namoro-de-brincadeira se ele é verdadeiro ou não. Quero por um fim nesta situação. Então, decidi que...
Seus olhos se enxeram de água neste instante denotando ela temer levar o fora. Abracei-a com mais intensidade e disse:
- Quer namorar comigo, de verdade?
- Se quero? ...Ora, Édson, como eu quero!!!
Em seguida nos beijamos com toda a intensidade, beijo este que demorou a findar. Beijo de língua, cúmplice, comprometeder. Finalmente, abraçados, entramos no pátio da casa de Célio. A escada de madeira, bastante forte, que dava acesso à porta de entrada da casa, denotava alguns reparos provisórios, feito com ligeireza e falta de aptidão: a maioria dos pregos estava desalinhada, com as cabeças tortas. O nível, porém, com muita precisão havia sido calculado e medido. Experimentei o primeiro degrau para averiguar sua segurança... seguiu-se um ranger assustador na calmaria da escuridão. Maria Ojeh soltou qualquer interjeição de espanto e eu recuei por alguns instantes. Em seguida prendi a respiração e pisei firme. O mesmo ruído aconteceu, mas escalei firmemente a escada. Bati. Ouviu-se em consequência um ruído de passos arrastando os chinelos. Maria Ojeh, no pé da escada, me disse baixinho, quase sussurrando:
- É Célio!
- Como tem certeza? – Indaguei no mesmo tom de voz.
- Ele caminha assim desde que o conheço. – Completou ela. ...Mas ele não é preguiçoso como o seu caminhar.
Em seguida, abriram a porta. Apareceu-nos o semblante feliz e sorridente de Célio:
- Ora, ora, que surpresa agradável! Entrem! Está meio fresquinho aí fora e, ...Maria, cuidado com a escada! Está meio bamba, e,
...Craaac! 

O ruído deu-nos o sinal de que a escada quebrara. Maria caiu para trás ao se desequilibrar e eu, mesmo esticando a mão, não consegui segurá-la. No pequeno incidente, pude ver sua calcinha cor de mármore, reluzente aos reflexos da luz à frente da casa, pois sua saia levantou-se até a cintura. No instante, ao ver aquela cena, pensei no artista que tivesse desenhado com tanta habilidade aquela peça, a qual se assentava como se fizesse parte de si mesma: bem delineada, um topinho da mesma cor abaixo do umbigo e rendinhas perolizadas nas ancas. Cena inesquecível!
Voltando à realidade, ajudei-a a levantar-se. Ela bateu a poeira de seu pretinho básico e averiguou o  tamanho do estrago que o tombo lhe causara: o saldo ficou num arranhão superficial no joelho esquerdo e o dano moral de eu tê-la visto assim. Célio acudiu também, não sabendo o que fazer para reparar o acontecido. Porém, nós adotamos o fato como algo corriqueiro e não nos aprofundamos mais no assunto. Em minha mente só mais girava aquela visão marmorizada da anatomia de seus traços mais íntimos visivelmente detalhados. Contudo, este pensamento foi cortado com um sussurro indiscreto de Maria, no cantinho de meu ouvido:
- Não precisa ficar todo cheio de grau por ter visto o que uso embaixo do vestido!
- Não estou, Maria!
- Não? ...há, há, há, homens! Cai na real, Édson! Eu vi seu olhar!
- Ééé?
- É! E para nossa noite de núpcias tenho uma lingerie cor de vinho, a qual te deixará bem menos à vontade!
     - Ah, é? – Sussurrei de volta, tentando desconversar. – Mas eu gosto muito mais de branco... é irresistível!
    - O branco deixo para as garotinhas ingênuas, virgens, as quais estão saindo da puberdade. Nós precisamos de algo mais quente, mais maduro, mais atrevido e agressivo... – E, elevando a voz: - Me aguarde! ...Espere e verá! Vou surpreendê-lo... – e, sussurrando: - deixá-lo nocauteado!
    Esta sua conversa me deixou excitado. Para despistar, falei:
    - Como disse? ...quente?
    - Quente! Muito quente!
    - Mal posso esperar, Maria!
    - É, espero mesmo que não demore para merecer meus dotes e ... minha...
    - Ora, Maria, comporte-se! – Atalhei.
Célio se encontrava a dois metros atrás de nós revisando a escada. Enfim, fitou-nos durante o último cochicho, dizendo em seguida:
    - Cuidado com esta troca de intimidades... Dá para perceber que vocês dois estão começando a namorar de verdade... é sério?
    Maria só conseguiu engrolar:
     - Ahá!
    - Sério mesmo? – perguntou de novo Célio. Eu, como amigo dele, disse feliz:
    - Sim, Célio, pedi Maria em namoro na entrada de tua casa.
    - Que lindo! Eu aprovo de verdade, Édson. Sabe disto, afinal somos amigos há anos e para mim, ver Maria do lado de uma pessoa como você só pode me tornar feliz.
    - Eu também estou muito feliz. Nunca imaginei namorar um rapaz seis anos mais jovem que eu. Mas estou realizada, acredite!
- Então, que estamos fazendo aqui, fora de casa? Entremos! Vamos comemorar este acontecimento!
Aceitamos o convite, entrando na casa simples do casal. Lourdes nos acolheu calorosamente, com Aragelda em seus braços. Destrinchou uma enormidade de interjeições de sentimentos pelo ocorrido com Maria, porém dissemos estar já tudo em ordem. Célio se apressou em contar as novidades:
- Lourdes, sabia que Édson e Maria estão namorando de verdade?
- Não acredito! Que notícia boa, Célio! – Disse Lourdes esboçando um sorriso de contentamento.
- É! – disse eu. – Ela  me pegou na brincadeira e eu resolvi tornar isto um jogo sério.
- Bobo! – disse Maria Ojeh. – Sempre esteve afim de mim, só nunca o declarou, Édson.
Célio interveio:
- Maria, não seja tão senhora da situação porque Édson está repleto de fãs em nossa cidade. Ele resolveu namorar você porque realmente está afim de você.
- Menos, Célio, menos! – Disse Maria acabrunhada.
Todos riram. Até Aragelda que se encontrava nos braços de Lourdes riu sem saber o motivo. A doce garotinha estava linda; sorria para qualquer gesto ou expressão que se fazia. Fomos convidados para jantar, mas recusamos: já o havíamos feito em minha casa. Como é praxe, insistiram tanto, que acabamos aceitando um pedaço de bolo e uma xícara de café. Enquanto jantávamos, a conversa desenrolou-se normalmente, sem apartes especiais. Só eu ficava a rever a cena mármore do tombo de Maria na escada, e sua lingerie cor de vinho. Maria Ojeh mostrava-se novamente insegura, irrequieta. Pensei que ela estava querendo entrar logo no assunto pelo qual nos propomos a visitá-los, mas achei mais propício deixar para depois do jantar.
Após a refeição, Maria Ojeh e Lourdes foram lavar a louça e Célio e eu nos sentamos na sala, por sinal, deliciosamente decorada com coisas simples: algumas cadeiras, quadros, arranjos, vários livros – dentre os quais alguns com orelhas, denotando acentuado manuseio – e uma mesinha-de-centro de jacarandá, entalhada com figuras surreais. Tudo estava impecavelmente limpo, reluzente. Elogiei-os pela organização e o bom gosto dos enfeites e decidi entrar no assunto, já que Célio estava feliz com minhas detalhadas observações:
- Acredito que vocês estejam com bastante esperanças de solucionarmos os desentendimentos entre seus pais e os de Lourdes.
- É verdade! Você já imaginou o que será de Aragelda quando crescer? Para nós já é lastimável termos que visitar nosssos parentes em separado.
- Isto é muito chato!
- Claro! E não é nada justo. Acho que você concorda comigo: raça é raça, cor é cor, sangue é sangue, religião é religião, enfim, somos todos exatamente iguais, com exceção de pequeníssimos temperos.
- Perfeitamente! E penso que a melhor prova disso tudo é o seu casamento...
- Claro! – Respondeu Célio pensativo. – É lógico, muito lógico! Não há nada demais nem entre os meus, nem entre os de Lourdes; é puro orgulho! Nunca se conversaram de verdade. ...Maldito orgulho!
Célio levantou os olhos fitando-me com um brilho avassalador – Édson, é aí que nós precisamos entrar em combate: o orgulho! Isto mesmo, o orgulho! ...Afinal, ele não passa de excesso de amor próprio. Temos que fazer algo para abrir-lhes os olhos!
- É por isto que viemos aqui hoje, Célio! Precisamos da ajuda de Lourdes e,
- Lourdes? ...E eu? Não precisam de mim? ...Entenda Édson, eu também quero ajudar!
- Claro, entendo, e,
- Mas, eu vou ajudar vocês neste plano!
- Você irá ajudar também, Célio. Só que para o nosso próximo plano vamos precisar somente de Lourdes.
- E que plano será este?
- Olha, eu preferiria deixar o assunto para quando estivermos junto com nossas companheiras. O que acha? Assim, elas ajudarão a analisar o assunto e veremos como ficará melhor.
- Muito bem! Só que eu não consigo entender como eu não entro neste plano...
- É fácil! Vou lhe adiantar um pouco: tentaremos um afrouxamento por parte da família de Lourdes; como você não tem acesso lá, não tem como participar do plano.
- Já estou começando a decifrar o plano de vocês... mas, conte-me, por que não deu certo a investida na casa dos meus familiares?!?
- Ora, é simples. Há três motivos: primeiro, porque o seu pai é intransigente, um descendente árabe teimoso; segundo, porque você lhe causou um desgosto tão grande ao casar com Lourdes, que, mesmo tendo transcorrido mais de dois anos, ainda estão com a ferida aberta; terceiro, e este é o motivo mais forte, porque mexe direto com o brio deles: a tentativa de aproximá-los partiu de um estranho às famílias, no caso, eu. Seu pai jamais admitiria que um reencontro não partisse dele ou de seus adversários. Entendeu? E neste caso eles fazem questão de que a iniciativa parta dos adversários.
- Claro, Édson, você tem razão! Infelizmente meu pai sabe ser hostil como o deserto e determinado como um cavalo árabe.
- Bom, você deve conhecer melhor este lado do seu pai. Em contrapartida, sua mãe é muito mais compreensível e acredito que seja bem mais fácil trazê-la ao nosso lado.
- É, minha mãe é um pouco teimosa, mas quando ela percebe que a razão não é sua, ela se deixa levar. Já meu pai, se disser que a lua é verde, ele morre sem mudar de idéia.
- É, eu senti que sua mãe é mais maleável.
- Bom, o que posso dizer, Célio, é que tenho certeza que em breve teremos boas novidades em relação a este desentendimento sem sentido entre suas famílias.
- Que bom, Édson! Levo fé nisto também.
Nisso entraram as duas damas na sala e sentaram aos nossos lados. Lourdes já havia feito Aragelda dormir. Entrei logo no assunto do motivo de nossa visita:
- Lourdes, não sei se Maria já lhe adiantou algo. – Ela assentiu com a cabeça. – Mas, eu já conversei com Célio a respeito de um plano que temos em mente e achamos ser infalível para terminar com este problema entre as famílias de vocês. Precisamos unicamente da sua colaboração.
Ela não hesitou em dizer:
- Pode contar comigo! Estou disposta a fezer tudo o que for necessário para o bem de todos, principalmente de Aragelda. O que é necessário ser feito? Estou pronta!
Maria Ojeh animou-se com a determinação enfática da cunhada e entrou na conversa:
- Olha, é bem simples: nós pensamos que..., hã, nós queremos que... – Olhando para mim – Ora, Édson, fala você! Saberá explicar melhor!
E Célio:
- Hum, que suspense! Parece que estamos tentando uma sabotagem fantástica! ...Édson, acabe logo com estes suspense. Parece que estamos vendo um filme de terror!
- Bem, explico: Lourdes, nós bolamos um plano que envolverá você e seus familiares; é bem simples, mas você terá que representar o melhor que puder, senão voltaremos à estaca zero e ficará difícil efetuarmos mais uma investida.
- Bem, não sou atriz, mas se for o caso, darei o máximo de mim para ajudá-los a quebrar o gelo desses cabeça-duras.
Senti a empolgação de Lourdes em participar deste projeto e nitidamente deu para perceber que ela se empenharia ao máximo em fazer nossa idéia dar resultado. Falei:
- É bem simples. Prestem atenção: Lourdes, você irá este fim-de-semana com Aragelda visitar os seus familiares e dirá que Célio está com o firme propósito de visitá-los também. Dirá ainda, que vocês tão muito desgastados com os acontecimentos, com os desentendimentos entre as duas famílias e que, por causa disto, seu marido já sofreu e sofre muito. Mas, é importantíssimo você se mostrar tristonha, angustiada, sofrendo de fato! Deverá também, demonstrar o quanto vocês se amam; o quanto Célio faz por você e o que sua família significa para vocês, na harmonia do relacionamento e no engrandecimento de ambos. – Lembrei-me da incitação feita por Abdala Kasir durante nossa discussão na primeira tentativa e completei: - Você ainda poderá dizer que Abdala que encontrar-se com seus pais, mas que necessariamente, terá que ser na residência da família árabe. Nisto sinto um tanto de supremacia por parte dos Kasir. Mas já que eles assim o querem, tentemos assim fazê-lo.
Lourdes sorriu e falou radiante:
- Isto para mim não será representação; é a vida real que estarei demonstrando, só que nunca toquei neste assunto com meus pais, ou quando eu queria me referir a respeito, eles sempre diziam que eu tentasse ser feliz por meus próprios meios que que minha felicidade era a felicidade deles. Depois que casamos, nunca mais tocamos no assunto. O tempo passou e a gente acabou se acomodando neste esquema sem ninguém tomar a iniciativa. Eles só me perguntam e perguntavam se eu me sentia feliz com minha nova vida e eu dizia a verdade: “Sim, sou muito feliz com meu casamento. O Célio me faz muito bem!” E, para eles sempre bastou qe eu me sentisse bem. Mas, Édson, sua idéia é fantástica! Aliás, desculpe, Maria, eu quis dizer que a idéia de vocês dois é muito boa e vai dar certo. Minha mãe é incrível e não se oporá em receber Célio para uma visita. Até agora só faltou alguém tomar a iniciativa e isto vai acontecer. Além do mais os atritos nos últimos tempos andam bem mais amenos do que foram em outras épocas.
Admirei o desembaraço de Lourdes. Maria estava a me olhar com aqueles olhos grandes, negros, sensibilizada com tudo o que estávamos conversando. Olhei para ela e me levantei:
- Bem, era isto que esperávamos. Segunda-feira de noite passaremos aqui para ver no que deu esta tentativa.
Não fiquei muito tempo em pé, porque Célio não permitiu que saíssemos sem ao menos falarmos um pouco sobre os negócios. Ele possuía uma esplêndida criação de frangos e uma boa área de terra em cultivo. Mesmo eu sendo amigo dele há muito tempo, nunca havíamos parado para falarmos a fundo de nosso trabalho e nossas profissões. As mulheres entreteram-se em conversar sobre os afazeres domésticos, roupas e debulharam uns bons minutos conversando sobre tricô e crochê. O chá rodou pela sala várias vezes, com seu aroma sutil invadindo nossas narinas.
    Pensado que havíamos conversado o bastante – passava das vinte e três horas – mais uma vez levantei e mais uma vez minhas tentativas, meus apelos e justificativas não conseguiram combater a hospitalidade do casal. É certo que a conversa seduzia a ponto de passarmos a noite em claro. Porém, eu só pensava que amanheceria um sábado e este sempre era um dia de muito movimento em minha loja de sapatos. Tinha que estar em forma. Para Célio era fácil, pois não tinha hora para levantar. Mas, no meu caso, os fregueses me obrigavam a estar a postos as sete e meia da manhã. E na casa tão hospitaleira, onde o tempo passava voando, todos pareciam não estar percebendo a minha relutância em continuar dialogando. Meu interior me castigava exigindo com que não lhe roubasse as poucas horas de sono que o separavam de mais um dia laborioso; em contra-ataque, minha boa vontade, o querer satisfazer e a sede de aprender um pouco mais sobre o dia-a-dia de um criador de frangos e suas rotinas, e o simples fato de estar agradando, fizeram meu interior se calar. Lourdes foi mais uma vez à cozinha, a fim de trazer mais um bule de chá. Maria acompanhou-a com a grata satisfação em poder ajudá-la a nos servir. Célio não esperou em fazer uma observação a respeito:
    - Veja, Édson, como as duas se dão bem! Se não conseguirmos realizar nossos objetivos, estou crente que nas gerações futuras dos “poderosos” Kasir e dos “pavios-curtos” Sandfisch, a paz pouco a pouco será alcançada, através das misturas entre as duas raças.
    - Não podemos esquecer, Célio, de que você é o pioneiro nesta história. Podemos notar que o resultado destas uniões está perfeitamente delineado nos traços de Aragelda, que é uma florzinha especial: o princípio da reconciliação! Você foi cem por cento notável casando com Lourdes, Célio.
    - E eu as adoro. Mas você também foi cem por cento notável começando a namorar minha irmã. A Maria sempre teve uma queda especial por você e,...
    - E eu sempre tive uma queda especial por ela. Eu temia que ela não me aceitaria em namoro porque ela é oito anos mais velha do que eu. Mas, que bom, isto não foi problema e eu estou realmente encantado com ela. A Maria é tudo de bom!
    - A Maria é como um ninho de passarinho: parece rude, mas aconchega a todos e quer a todos bem.
    - Vou confessar uma coisa a você Célio. Mas espero que fique entre nós.
    - Pode confiar!
    - Quando eu era ainda criança, tinha uns nove ou dez anos e ela já era adolescente, ela me deslumbrava com aquele cabelo negro, espesso... Eu também me encantava com aquela pele escura, bronzeada, ...aquele rosto divino, irriquieto e descansado... aquele olhar... É, o olhar de Maria é fulminante! Ela enxerga a alma da gente!
    - Poxa, Édson, você está apaixonado mesmo!
    - Claro que estou. É um amor que nasceu na minha infância.



                **************



    Na cozinha desenrolava-se uma conversa idêntica:
    - Lourdes, você não acha que é completamente injusto e errado nossos pais se odiarem desta maneira?
    - Ora, é óbvio, Maria, que é completamente injusto! Eu não apóio nem um pouquinho; melhor, não apóio nada!
    - Pois é, cunhada! Eu nunca consegui me dar mal com ninguém... Mas, garanto que uma grande vantagem este rolo todo está me trazendo...
    - Édson?
    - É claro! Graças a nossa luta para acabarmos com este mal-entendido entre nossas famílias, finalmente consegui que ele se aproximasse de mim. Acho que ele sentia um pouco de ressentimento pela nossa diferença de idades, mas, o que é esta diferença quando estivermos na meia-idade? ...nada! Ele tem vinte e quatro anos, cabeça de trinta e eu, tenho trinta e dois anos e cabeça de vinte. Só pode dar certo, há há.
    - Vai dar.
    - É! E agora que o agarrei com unhas e dentes, não vai ser tão fácil alguém tirá-lo de mim.
    - Sabe, Maria, eu já havia notado há mais tempo que você tinha uma quedinha pelo Édson.
    - Quedinha?
    - Não! Uma queda significativa! Só ele não notava...
    - Mas agora eu fiz ele notar e ele não vai esquecer. ...E por falar em queda, estou com um ódio sem tamanho da cena que passei hoje na entrada de sua casa. ...Ai que chato, ele viu minha calcinha, mostrei tudo, caí de pernas abertas.
    - Isso acontece.
    - Mas ele olhou para ver mesmo! ...Como os homens são tarados! Qualquer chance que tem, já aproveitam e metem a cara para ver tudo, nos mínimos detalhes.
    - Não dê bola para isto, Maria!
    - Fiquei toda sem jeito, tentei remendar com frases provocantes e a emenda saiu pior.
    - Maria, o Célio me viu pelada tomando banho no arroio, quando nos conhecemos. E o danado ficou bem taradinho... Nunca havia visto uma mulher tão branca como eu, hehe.
    - Éééé? Eu não sabia! Mas, me conta, como isto aconteceu?
    - Ora, você sabe que tem aquele arroio nos fundos da casa dos meus pais, e no outro lado do arroio os rapazes geralmente vão caçar. Então, um dia, eu fui tomar banho no arroio, estava muito quente, e ele estava caçando e me viu. Na hora me afundei na água, mas como ela é muito limpa, transparente, ele viu tudo! Ainda pediu desculpas e saiu dali acabrunhado. ...Mas, do jeito como ele depois pulou e correu, vi que ele havia ganhado um troféu.
    - Eu não acredito que meu irmão fez isto! Nunca me contou nada sobre este episódio.
    - Não, ele não contou para ninguém. Eu me vesti e corri atrás dele pedindo para ele não falar sobre o incidente. ...Então foia primeira vez que nos olhamos nos olhos e o amor nasceu...
    - Uau, que lindo! Mas isto não tira deles a fama de tarados.
     - ...Também Maria, se não fossem tarados, muitas coisas da vida perderiam a graça, como... pintar as unhas, usar roupas provocantes... um perfume especial, um olhar, ...enfim, você sabe as armas que utilizamos. ...Não dê bola para o que aconteceu.
    - Ah, é? Mas ainda estou envergonhada. Lourdes, meu vestido levantou até a cintura! Mostrei-me toda, tudo, e vi o olhar de provocação que ele lançou primeiro no meio de minhas pernas, depois para meu rosto.
    - O que tem, Maria? Com certeza não é a primeira calcinha vestida que ele viu em toda a sua vida.
    - Mas em mim foi a primeira vez! Bom, ...acho que até foi bom. Assim ele viu que mesmo sendo descendente de árabes, sou uma mulher normal.
    - Há, há, há, gostei da piada. ...Mas, me conta, Maria, o que atrai a você no Édson?
    - Tudo Lourdes, tudo. Ele é tudo de bom. A começar pelo seu jeito carinhoso de tratar todas as pessoas, pelo seu sorriso sempre estampado no rosto, por querer sempre ajudar, pelo seu modo especial como me trata... Ele me ama, sabia? ...me sinto uma rainha quando estou com ele. ...Enfim, porque ele não repara nos meus muitos defeitos.
    - Não exagera, Maria. Você não tem defeitos.
    - Bom, talvez meu maior defeito seja querer acreditar em todas as pessoas e achar que o mundo pode se transformar num enorme paraíso de pessoas bacanas e amigas.
    - Com certeza é este o seu maior defeito. E é por isto que adoro sua amizade e prezo por ela.
    As duas se abraçaram calorosamente. Depois, Maria falou:
    - Obrigada, Lourdes! Também prezo nossa amizade. Mas, falando em amizades, lembra que o seu avô me emprestou uma vez, com o maior carinho, uma Bíblia escrita em alemão gótico, a qual foi necessária para uma gincana da escola?
    - Claro que me lembro! Naquela ocasião, foi Célio quem me perguntou se tínhamos uma Bíblia assim, e eu respondi prontamente que sim. ...Áh! – Olhando para o forro com um sorriso semi-aflorado – foi aí que nos apaixonamos!
    - Mesmo?
    - Sim! Sempre achei o Célio um cara diferente, aquela pele escura e aquele olhar inteligente...
    - Como é bacana relembrar isto, não Lourdes?
    - Sim, é uma nostalgia muito gostosa de sentir.
    - Falando em nostalgia, sabe o que o Arnus me disse quando entregou a Bíblia para mim?
    - Ah, o meu querido avozinho tem sempre alguns conselhos para dar. O que foi que ele disse, “minha filha”?
    - “Minha filha”! Foi bem assim que ele começou: “Se você, minha filha, soubesse um pouquinho do que está escrito aqui dentro, já teríamos feito as pazes há muito tempo com vocês”.
    - E o que você respondeu?
    - Respondi que ia tentar fazer alguma coisa pela paz entre as famílias e seus relacionamentos. E aquilo me marcou. Eu sempre pensava nesta afirmação que fizera para o seu avô, e mesmo não sendo promessa, resolvi que tentaria de tudo para novamente aproximar as duas famílias.
    - É o que estamos fazendo.
    - É! E tomara que dê certo!
    - Vai ter de dar certo!
    - Vai!
    Terminado o chá, Lourdes convidou:
    - Maria Ojeh, traga o açúcar, sim? Nossos amados devem estar com a garganta seca de tantos planos que elaboraram. Vamos levar este chá até eles.
    Lourdes pegou o bule com quatro xícaras sobre uma bandeja e foi para a sala. Maria Ojeh a seguiu. Entrementes, o velho relógio na parede ecoou lúgubre, ao mesmo tempo melódico, doze vezes em sua espiral metálica. As batidas me trouxeram de volta à realidade, à amarga certeza de que o repouso era por demais necessário. Veio-me à tona também, que após tudo o que pré-planejáramos e conversamos, dormiria tranquilo, pois nossos planos eram puros e sinceros. Haveria de tudo dar certo.
    Depois de muitas palavras e retoques nos planos para o reatamento entre as famílias, Maria Ojeh e eu nos levantamos e não sentamos mais. Nos despedimos e fomos para a casa entre latidos de cães denotadamente nervosos.
    Após um longo banho, com bastante água morna, coloquei um roupão e fui deitar. O sono porém, não conciliava. Coloquei um CD do Waikiki Minstrels e fui à cozinha pegar uma cerveja na geladeira. Ao retornar, aquela música havaiana envolvente e melódica, trouxe para bem perto de mim a imagem de Maria. Ela era uma mulher madura, mais velha do que eu e, junto a qual me sentia arrebatado de todas as vontades próprias. Em seguida, minha mente redesenhou a cena dela caída, completamente desajeitada em frente à casa do irmão. “Lingerie cor de vinho para as núpcias! ...Que provocação!” ...E logo já surgiu no pensamento o quadro dela fazendo meneios a minha frente com uma lingerie desta cor, e seu pescoço adornado com um colar de flores como as havaianas. Em seguida, sua silhueta em tom de pele escura, fazia contraste com a intimidade cor de mármore exibida involuntariamente naquele início de noite, em sua queda... Um ritmo mais acelerado entrou na música: agora era uma marimba em harmonia com uma guitarra havaiana a me levar para a orla marítima de uma praia paradisíaca. Novamente Maria estava junto a mim, gesticulando como de costume, e o sol, atrás dela, projetava uma silhueta tentadora mostrando todas as suas curvas através de um vestido solto de seda branco que a cobria. Aliás, tão tentadora como na realidade ela era. Suas ancas apareciam por entre o tecido semi-transparente de seu vestido, e denotadamente aparecia sua lingerie vinho me esperando. E eu fui possuído por esta cena, por esta melodia, por este momento... Na verdade, larguei o copo de cerveja e na imaginação, entrei com ela no mar. Eu, de roupa e tudo. Ela, com aquele vestido transparente na silhueta da luz do sol poente, o qual ia sendo tomado pelas ondinhas do mar, deixando mais ainda a mostra suas curvas. Adormeci com o som ligado, a luz também e o copo de cerveja pela metade e a garrafa pela metade. Só desliguei tudo ao acordar de manhã.



                   **************



    Lourdes entrou no pátio muito bem cuidado de seus pais, indecisa, ao mesmo tempo ciente de sua responsabilidade: tudo estava, a partir daquele momento por sua conta. Apesar de seus pais parecerem mais compreensivos, tudo dependia do seu modo de apresentar sua situação real, a fim de comovê-los e fazerem entender da necessidade de uma reconciliação.
    Seu pai, de olhar inteligente, ostentando um bigode semi-grisalho, mostrava-se sempre disposto a ouvir e tentar acertar o bem-comum de seus familiares. E justamente naquele domingo ele se encontrava sobremaneira feliz: havia comercializado toda a sua safra de milho. No encontro, Lourdes expôs todos os nossos pensamentos e anseios. Ele a ouviu quieto, sem esboçar qualquer reação de apoio ou desabono, simplesmente a ouviu. E quanto mais atenção ele prestava, mais ela se aprofundava no assunto, trazendo à tona nossas idéias e nossa vontade comum em acabar com estes desacertos entre eles e os Kasir. Aliás, em seu pensamento, no de Lourdes, ela já achava que seu pai ouvira tudo para no fim, concordar com todos os nossos propósitos e nossa vontade em resolver o problema.
    Ponderado como sempre, seguiu toda a tarde de domingo sem esboçar qualquer reação contraditória ou abonativa ao que Lourdes falara.
    Quase no fim da tarde, finalmente resolveu falar:
    - Minha filha, é impossível tentarmos resumir em um único encontro todos os motivos que nos levaram ao conflito com os Kasir desde as primeiras gerações. Mas, podemos tentar esta aproximação, sim. Porém, os Kasir, com toda a sua petulância, que parem de se julgar os donos absolutos deste lugar; afinal, aqui o sol não os cobre mais que a todos os outros. Também, num encontro destes, ninguém irá se rebaixar ou descer aos pés de ninguém. Seremos simplesmente seres racionais tentando chegar a um acordo amigável com futuro duradouro. Apoiamos sua iniciativa, filha!
    Por esta explanação sólida e madura de Marcus Sandfisch, pude concluir que aquele homem possuía um caráter inabalável, ostensivo, que fechava com seus propósitos. Não era chato ouvir Lourdes falando dos seus: suas angústias, alegrias, lutas e conquistas, enfim, ouvi-la falar da vida de sua família. Não me cabia imaginar onde ou quando, ou talvez, até como fora possível criar-se tamanha muralha entre as duas raças a ponto de se detestarem, já que ambas as partes eram formadas por pessoas corretas, inteligentes, prósperas e de bem.
    Mas, vamos às especulações sobre o motivo de tamanha discórdia entre os Sandfisch e os Kasir...
    Era corrente na cidade a conversa de que há muitos anos, em torno de 1930, quando os ascendentes dos Kasir vieram morar aqui para abrir uma casa comercial, trouxeram junto sua mudança, tecidos para iniciarem o negócio e seus filhos. Aliás, seus compatriotas já possuíam uma rede de comércio de tecidos em Porto Alegre. Dentre os filhos, um deles era prodigioso: inteligente e esperto, ele era o orgulho da família. Seu nome era Samir e na época beirava os doze anos de idade. Logo quando se estabeleceram aqui, Samir fez amizade com o filho de Herbert Sandfisch, de nome Klaus, qye era uns meses mais velho que Samir. Os dois foram muito unidos e ocupavam todo o seu tempo livre entre caçadas com funda, brincadeiras no meio das plantações e caminhadas no desbravamento da região. Apesar de morarem quase um quilômetro distante um do outro, tiveram uma amizade sólida, mesmo sendo crianças, e as famílias se orgulhavam desse relacionamento.
    Klaus era um garoto iluminado. Seu comportamento era o de um ser adulto e seu desempenho na escola e na ajuda a sua família espelhavam estas suas particularidades. Tinha uma habilidade manual invejável, e desde pequeno fazia esculturas em madeira e pinturas.
    Mas, a fatalidade ceifou a vida de ambos com esta tenra idade, quando se afogaram num banho no rio Caí. Foi uma tragédia sem igual  e o luto tomou conta de ambas as famílias durante meses.
    Aos olhos de todos da comunidade, acreditava-se que havia acontecido o normal: dois moleques irriquietos, numa tarde de verão, o sol a pino, calor, e a vontade em se refrescarem. O normal: um garoto convidou o outro para irem até o rio Caí, se banharem e abrandarem seu calor. Independentemente de quem tivesse partido o convite, é o tipo de situação normal que acontece frequentemente e os pais muitas vezes nem se dão conta de que seus filhos estão no rio tomando banho. E, apesar de ele não ser perigoso em sua maior parte, para quem não o conhece tem alguns pontos cruciais que podem se tornar perigosas armadilhas.
    Quando, aos poucos, eles foram se recompondo, talvez devido a grande perda, as famílias enlutadas tentaram encontrar culpados para esta fatalidade. Então, os Kasir acusaram os Sandfisch dizendo que Klaus havia induzido Samir a acompanhá-lo até o rio para se banharem. Ao mesmo tempo, os Sandfisch se defendiam dizendo que provavelmente Klaus havia sido induzido por Samir a acompanhá-lo até o rio. Como os pretensos culpados também foram as vítimas, surgiu entre as famílias um clima acusativo, o qual evoluiu para um desentendimento formal, deixando-os afastados e acirrados.
    Inclusive, no túmulo de Samir tem uma inscrição em letra árabe, onde diz: “Aqui jaz um ser pequenino e indefeso que foi levado para o seu destino contra a sua vontade.”
    E, apesar de anos terem se passado, este assombroso acontecimento ainda mantinha as famílias afastadas e inimigas. E, pelo que conta a história, nenhuma das famílias foi a culpada por iniciarem as desavenças. Na realidades, estavam se acusando de algo do qual não havia motivo de acusação. Crianças criam situações diferentes, e quando acontece uma fatalidade, ninguém tem a culpa. Mas eles, mesmo setenta e cinco anos depois, ainda tentavam encontrar culpados.

                    ************



    Maria Ojeh e eu fizemos a nossa parte. Comunicamos os Kasir do desejo dos Sandfisch em manterem um encontro amigável com eles em duas semanas. Ainda dizemos que os Sandfisch gostariam de se encontrar com toda a prole, assim como todos os Sandfisch se fariam presentes.
    Isto aconteceu num domingo de tarde chuvoso, onde Abdala Kasir ouviu nosso propósito e logo após, esboçou um olhar demoníaco, amedrontando Maria Ojeh. Ela, que tanto confiava na segurança de seu pai, no equilíbrio de sua mãe, agora balançava mais que pinguela de arroio. Mas eu, como sempre, do seu lado, segurei firmemente suas mãos de dedos finos, compridos e de unhas feitas com um capricho incomparável, esmalte vermelho, alisando-as, dando segurança. Finalmente, o olhar de Abdala mudou para interrogativo, ao que Maria disse:
    - Estamos dispostos a levar este encontro até o fim e ver estes desentendimentos terminarem de uma vez por todas.
    Os olhos de Abdala começaram a reluzir. Senti que suas intenções não eram muito puras, nem meramente altruísticas, porém, nada corteses. Mas, já que houvera a proposição de Marcus, com intenções completamente antagônicas  às de Abdala, confirmamos o encontro...



                ************



    Na casa de Célio preparamos nossos espíritos para qualquer ofensiva que pudesse ocorrer, a qual provavelmente partiria dos Kasir. Nossa atmosfera mostrava-se completamente frenética, entusiasmada e ao mesmo tempo angustiante: tudo poderia acontecer... até mortes poderiam resultar de tal encontro! Agora estávamos começando a ficar amedrontados ao cogitarmos este último detalhe...
    Mas, por tudo o que eu havia levantado, o velho Kasir transmitia a sensação de poder, mas no seu íntimo dava a impressão de ser muito dócil.
    Minha trintona parara de roer as unhasa: agora as corroía, carcomia, aprarecendo o encontro da pele com elas. Logo ela, que tinha unhas impecalvemente feitas. Eu, só de olhar, sentia agulhaços espetando a ponta de todos os dedos. Nada como expectativas inimagináveils com probabilidades de resultados dos mais variados.
    Houve horas de terríveis arrependimentos por parte dos que engendraram o plano, ou melhor, NÓS, nestas duas semanas seculares.
    A pessoa a demonstrar mais serenidade era Lourdes, pois confiava em seus familiares e imaginava perfeitamente o que seu pai poderia ou não fazer. Ele era comedido em seus atos, cauteloso as vezes, até por demais.
    Nos encontrávamos regularmente todas as noites, ora na casa de Célio, ora na minha. A escada em frente a sua casa já havia sido  trocada e meu desejo em ver a reprise da cena de Maria Ojeh, caindo, esboçando sua intimidade estampada na calcinha cor de mármore não ocorreria mais. Nos encontros nós discutíamos, prevíamos, calculávamos. O nervosismo era geral em todos os encontros. Parecíamos estudantes a ponto de enfrentarem um vestibular muito concorrido.
    A mim, o que realmente me prendia a todo este caldeirão era Maria Ojeh, aquela trintona especial, de cabelos negros, olhos negros e perfume inebriante. A esta altura já amava ela e não era difícil ver este sentimento em mim pois, agia como se fosse um cachorrinho em suas mãos.
    Faltando três dias para o encontro se realizar, ou seja, uma quinta-feira, Maria Ojeh falou-nos de suas dificuldades em conciliar com o sono. Acudíamos em suas preocupações realmente de dimensões exageradas. Porém, o sexo feminino possui um sexto, ou talvez, um oitavo sentido que nunca falha, o qual preconiza alguma consequencia boa ou desalentosa. É uma intuição única das mulheres,  a qual podemos até considerar como dom. Como nós, os homens, não possuímos esta arma maravilhosa, somos iconsequentes nos detalhes; preocupamo-nos com o todo e não com as partes.
    Os dias que foram caminhando até o sábado foram por demais marcantes em nós. Até Célio e eu, que estávamos confiantes quanto ao resultado do nosso encontro, ou melhor, quanto ao encontro das duas famílias, estávamos nervosos e denotávamos isto em nosso comportamento. Célio conhecia bem seu pai e sabia de tudo o que ele poderia criar neste encontro para acirrar com maior intensidade as intrigas entre as famílias.
    Mas, eu e Lourdes estávamos confiantes num resultado positivo neste encontro e não compartilhávamos com os anseios dos dois irmãos.
    O sábado raiou e o céu não se mostrou nada cordial com a humanidade, pois nuvens pretas se espalhavam em toda a sua extensão, feito uma colônia de mofo sobre uma laranja podre.
Meus pensamentos, nada concretos, eram turvos como o céu, que pouco a pouco, principiou a desmanchar-se em pingos, aumentando para goteiras e terminando em torrente de água.
    Minha manhã transcorreu normalmente na minha loja e as pessoas que foram atendidas não notaram meu drama interior. Perto do meio-dia, passou lá a Maria Ojeh, linda e vistosa como sempre, de cabelos molhados como quem saíra do banho, inebriando o recinto com seu perfume inconfundível.
    Passou lá para dizer que estava querendo desistir do encontro das famílias pois temia a reação de seu pai. Eu, mesmo compartilhando interiormente com o seu pensamento, respondi:
    - Maria, o mais difícil nós conseguimos, que foi induzir os pais de Lourdes a visitarem seus pais e fazer seus pais aceitar a visita deles. Vamos ver no que vai dar...
    - Pois é justamente ali que reside meu medo: no que vai dar! Pode dar mortes! Eles nunca se falaram pessoalmente. Como acha que vai ser a reação deles quando se verem frente-à-frente?
    - Normal, Maria, normal! Eles são pessoas de bem e devem estar tão ansiosos por este encontro tanto quanto nós estamos nervosos.
    - A responsabilidade é nossa. Fomos nós que provocamos este acontecimento.
    - E é por isto que não vamos deixar acontecer nada.
    - Que bom ter você ao meu lado, Édson. Me sinto bem mais segura.
    Saí por detrás do balcão, tomei-a em meus braços e nos abraçamos com muito carinho. Em seguida a beijei na testa e disse:
    - Vamos almoçar no centro?
    - Não! – Respondeu ela. – Preciso ir até na casa de meus pais, eles me esperam para almoçar. À noite a gente se encontra na casa de Célio.
    - Certo, Maria. A encontro às vinte horas lá.
    Um abraço, um beijo e ela se foi. Acompanhei seu caminhar gingado, sensual, até perdê-la de vista.



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    À noite, regado a pizzas e cerveja, nosso encontro não poderia ter sido mais nervoso, excitante e temeroso na casa de Lourdes e Célio. Estávamos todos muito nervosos. Ainda mais com as últimas informações que Maria trouxera da casa de seus pais. Quando indagada por mim sobre o almoço com sua família, ela respondeu:
    - Foi muito estranho. Todos serviram as refeições em silêncio, ninguém falou nada, só se ouvia o respirar arquejante de meu pai. Minha mãe nem sequer o olhar a mim dirigiu. Tudo o que ela falou comigo foi: “Deixa que eu lavo a louça”. Estou apavorada!
    Célio incendiou ainda mais nossa temerosidade:
    - Mas como, Maria. Nossos pais não são assim! Principalmente minha mãe sempre tem palavras e assuntos para nos dirigir... Ela nem sequer perguntou sobre o seu namorado?
    - Não. Como eu vi o clima pesado por lá, vim embora assim que almocei. Até a comida estava insossa, sem graça.
    O remorso começou a tomar conta de mim lentamente, afinal, fora eu um dos maiores incentivadores para que este encontro acontecesse. Mas, agora a sorte estava lançada e não tinha mais nada para ser feito. O encontro iria acontecer e depois veríamos o prejuízo causado pelo nosso ato. Abaixo do teto que nos abrigava da chuva que caía sem parar, Maria Ojeh mais uma vez transmitiu seus receios e ansiedades preconitivas. Cheguei a concluir que ela estava fazendo o bicho maior do que era. Afinal, quem sempre prega ser de bem, jamais um dia será do mal. E era a noite e a tarde do último dia...
    Levei Maria até o seu apartamentinho no centro. Subimos. Ficamos namorando naquele quarto copiado das mil e uma noites até às duas da manhã e eu, por mim, atravessaria aquela noite nos braços cor-de-cobre daquela mulher sensual, entre tapetes, cortinas, afagos, tesão e o arfar provocante daquela trintona irriquieta. Estávamos os dois sem sono. Mas, eu sabia que minha mãe não dormiria enquanto eu não chegasse em casa e contasse a ela como estava sendo o preparo deste encontro memorável.
    Assim aconteceu. Maria já estava mais calma, eu havia falado muito a respeito do lado do bem das pessoas envolvidas e fui embora. Fui, com o nariz inebriado do gostoso perfume, intenso e discreto, que pairava no apartamentinho dela.
    Quando cheguei em casa ainda tive que contar para a minha mãe como estava tudo delineado para o dia seguinte, ou melhor, para aquele dia na casa da família Kasir.



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    Domingo de manhã. Na casa de Abdala e Ilena Ojeh Kasir, encontravam-se além dos dois, filhos, netos irmãos, enfim, uma prole rica e fecunda que fora convidada para participar do encontro memorável. A algazarra no pátio era grande com crianças correndo e brincando por todos os lados. Apesar da chuva intermitente de sábado, o domingo se mostrava ensolarado e o pátio já se encontrava bastante seco.
    Quando Maria Ojeh e eu chegamos na casa dos Kasir e tentamos entrar, Abdala nos barrou, negando sua hospitalidade, trazendo à tona os receios de Maria. Disse-nos que, com toda a certeza, se viessem Marcus e seus familiares, estaríamos melhor colocados no meio deles. Seu temor era de que se surgisse alguma discussão, nós tomaríamos partido para o lado dos Sandfisch, mesmo estando em sua casa. Eu compreendera logo este detalhe, mas minha doce trintona não. Ela estava nervosa por demais: tremia de alto a baixo e nem meu pulso forte a segurá-la a livrou de seu tremor. À saída do portão da casa de seus pais, ela me falou:
    - Édson, meu pai hoje não está em condições de receber os familiares de Lourdes. Ele está completamente transtornado! Acho que ele tomou alguma coisa, e...
    - Bobagem, Maria! Ele também deve estar nervoso, assim como nós. Não julgue seu pai com tanta brabeza! Afina Lourdes, com a magnanimidade que possui, haverá de acalmar os ânimos de todos, principalmente os de teu pai. Acredite-me!
    - Alá te ouça! Estou ansiosíssima! Dará tudo certo, eu acredito! Tem de ser, e será!
    - Assim é que se fala, Maria. Vamos confiar e acreditar nas nossas famílias! Está na hora de se reconciliarem e se ajeitarem.



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    Finalmente, catorze horas da tarde de domingo, estacionou de fronte ao portão onde aguardávamos, uma perua, donde desceram Arnus, seu filho Marcus, a mãe de Lourdes Irmgard, célio e Lourdes com Aragelda em seus braços, além de irmãos e primos de Lourdes. Fiquei radiante ao ver descendo do carro Marcus, dialogando profundamente com Célio, sem objeções. Lourdes olhou-me sorrindo, ao que Aragelda a  imitou. Cumprimentamo-nos e entramos no pátio da família Kasir.
    À entrada da casa nos aguardavam Abdala e Ilena, que num comportamento de ‘etiqueta’ cumprimentaram a todos e convidaram a entrar na sala. Para nossa surpresa, antes que alguém pensasse no real objetivo a que nos propúnhamos àquela tarde, Abdala apossou-se de um instrumento de cordas, uma espécie de guitarra, ao qual ele chamou de “al’ud”. Arrancou-lhe algumas notas melódicas e choraminguentas, às quais Ilena seguiu entoando uma música de tradição Árabe, que também foi acompanhada por Maria Ojeh (mesmo estando sem véu na cabeça) e por Célio. Enquanto nos deleitavam com o belo espetáculo, apercebi-me de uma coleção de cimitarras, que em outras ocasiões quando estivera naquela sala namorando Maria, nem notara. Eram no total cinco cimitarras e avaliei elas serem de valor incalculável.
     Os acordes continuaram encantando nossos ouvidos, e mesmo sendo uma música quase chorada, deixaram a todos atônitos, quietos e esfusiados pelas canções desconhecidas.
     Marcus, em sinal de agradecimento, mandou seu filho até a perua pegar uma gaita que trouxera junto, e a empunhando, entoou várias canções germânicas, tradicionais, como: “ Ich hat eine Kameraden”, “Schön ist die Jugendzeit” e “Heimatlos”.
    Este começo serviu para amaciar os propósitos do encontro, e o problema começou a ser abordado. O primeiro a argumentar após as canções, foi Marcus o pai de Lourdes:
    - Bem, senhor Abdala, sua esposa Ilena, espero que após estes belos cantos que entoamos, possamos dialogar sem ressalvas, e conversar sem levantarmos a voz, enfim, fazermos o que há anos deveríamos ter feito: dialogar para selarmos nossa amizade. Espero encontrarmos a paz entre nossas famílias neste nosso encontro de hoje e que ela se torne duradoura.
    Os parentes do lado dos Sandfisch começaram a aplaudir.  Abdala que acompanhara atônito o desenrolar do acontecimento, tomou a palavra e, no discurso que fez, nos deixou embasbacados. Iniciou falando assim:
    - Para não me ater a formalidades, direi unicamente: “Caros Sandfisch”! Acredito que estarei citando-os todos. Cabe-me dizer que simplesmente, o ocorrido entre tantas gerações tem a ver com a falta de oportunidade de nos conhecermos melhor. Estamos contidos numa teia, num labirinto, que nos impossibilita de continuarmos no ponto em que estamos, sozinhos. Além disto, eu tenho sérios problemas de saúde e não haverei de me permitir  partir desta vida, sem antes ter a certeza de havermos acabado com todos os nossos incitamentos, nosso orgulho racial que não leva a nada, enfim, quando deixarmos de lado esta história em querer sermos senhores absolutos, donos de todas as verdades, mesmo que sejam do passado. Ultimamente andei meditando muito a respeito de todos nós; esta meditação  criou maior poder ainda nestas nestas duas últimas semanas e vi que este desdém que viemos cultivando é indigno tanto para nós como para vocês. Quero neste exato momento oferecer-lhes minha hospitalidade, minha paz, a paz de minha família, a paz dos Ojeh Kasir e, do fundo de meu ser lhe pedir desculpas por todos os incômodos e transtornos causados ao longo de todos estes anos.
    As palmas brotaram soltas e animadas. Abdala abriu os braços e abraçou  Marcus Sandfisch. Seguiram-se os cumprimentos entre todos os participantes do encontro. As mulheres não esconderam generosas lágrimas de contentamento. Maria, que há poucos minutos atrás vinha quase me derrubando com sua tremedeira nervosa, agora soluçava à vontade. Senti nela muito mais sua realização para com o evento do que a emoção do acontecimento em si. E eu a abracei no todo, com vontade, trazendo para perto de mim aqueles seios desejosos, aquele corpo encantador. E, para completar, eu a amava. Depois de Maria Ojeh me abraçar, ela também abraçou a todos os presentes, e via-se no seu abraço a felicidade do cumprimento de sua promessa.
    Após os agraciados cumprimentos, Marcus tomou a palavra com Aragelda em seus braços. A pequena sorria, parecendo ter entendido tudo o que acontecera. E, Marcus, feliz e realizado com o encontro, falou:
    - Sinceramente não sei como exprimir o tamanho de minha felicidade por este momento! Devo admitir, porém, que devamos retribuir algo para nossos filhos, senhor Abdala, os quais por sua força de vontade conseguiram com que chegássemos a este ponto. Esqueçamos o ocorrido de tantos anos atrás, a fatalidade que envolveu Samir e Klaus, pois eram crianças e não podemos buscar entre eles culpados. São mártires! O destino lhes tomou a vida e tenho plena convicção que hoje eles estão a nos apoiar.
    - Allah hu Akibar (Deus é grande)     - Foi o que Ilena falou, acrescentando: - Arlam ua Sarlam ( Sejam bem-vindos!!!) – Traduzido no pé do meu ovido pela doce Maria,  e falado a todos os presentes, traduzido em minha voz.   
    Marcus novamente tomou a palavra, dizendo:
    - Bem, proponho que no próximo fim-de-semana façamos um churrasco em minha casa, contando com a presença de todos vocês. Vamos comemorar a alegria deste reencontro. As portas de minha casa, a partir de hoje, sempre estarão abertas e serão todos recebidos como gente da minha família.
    - Agradecemos os convites, e com certeza estaremos presentes. – Disse Abdala, visivelmente emocionado. – Quanto às portas, digo o mesmo: sejam todos bem-vindos! Tornemo-nos uma grande família!
    Do lado de fora da casa dos Kasir estava amontoada a cidade inteira a espreitar o desenrolar dos fatos. Decerto esperavam cenas de luta e de sangue. A notícia se espalhou no momento em que foi concretizado o encontro entre as famílias e Maria comentara seus anseios com uma amiga. Masa, para a sua tristeza e nossa felicidade, isto não aconteceu e o povo aos poucos se dispersou.




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    De noite, na casa de meus pais, era incomensurável nosso estado de alegria. Estávamos reunidos Maria Ojeh e eu, Lourdes e Célio. Para completar a felicidade, posso assegurtar que daquela data em diante, acabaram-se as brigas e as famílias nunca mais se estranharam.
    Quando todos foram embora, imaginei como muita coisa neste mundo seria fácil de resolver e concretizar, bastando para isto um pequeno empurrão, um diálogo sincero ou um ato de entrega ou humildade. A vaidade e o orgulho sempre levam à ruína. E, no caso das famílias, estas duas palavras deixaram afastadas as pessoas de bem, amáveis e inteligentes, durante várias gerações. Não bastasse isto, no futuro poderia resultar em afrontas diretas, resultando talvez, até em mortes. A satisfação tomou conta do meu ser, já que minha pessoa foi importante na realização deste entendimento. Veio-me à mente minha bela trintona. No ar da sala onde me encontrava ainda estava suspensa a sutil mistura perfumada dela: algo de Jasmim com Maderas do Oriente. Lembrei-me das promessas de núpcias em detalhes menores cor de vinho... Definitivamente estava no momento de tomar a iniciativa. Afinal, ela tomara conta do meu seu e tudo o que a ela pertencia, enchia os meus sentimentos.
    Maria Ojeh me arrebatou neste período em que lutamos para unir as famílias. Mulher madura, completa, perfeita. Fui domado, dominado com sua graciosidade, com seu olhar, seu jeito feminino, doce, perfumado. Ela me enlaçou em sua teia sedutora e eu não tive mais como sair dela. Estava por demais apaixonado. Maria era perfeita: olhar enigmático, mas ao mesmo tempo doce, compreensível, cúmplice. Não existia outra pessoa igual: em certos momentos mulher madura, em outros, menina meiga, doce, desejosa. E eu, que tinha pensado nunca casar, acabei cedendo aos encantos desta mulher especial, mudando completamente meu pensamento  referente às mulheres. Não consegui resistir a sua voz poderosa a sussurrar palavras comprometedoras em meus ouvidos. Ela sabia como me dominar. Acabei tomando uma decisão...



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    No domingo seguinte, na casa dos Sandfisch, houve o encontro entre as famílias Kasir e eles, num almoço de confraternização e harmonia, que fez com que todos os laços novamente fossem atados.
    Maria me chamou cedo para irmos até lá, a fim de não perdermos nenhum momento do maravilhoso encontro. Mal sabia ela que eu havia preparado uma surpresa.
    Durante o almoço, muito foi conversado e todos os membros de ambas as famílias estavam entrosados.
    Após o almoço, comuniquei a todos, sob o olhar estupefato de Maria Ojeh, que a estava pedindo em casamento, noivando com ela. A surpresa de Maria foi enorme. Não havia esperado uma surpresa de tão grande desenvoltura; na hora de colocar a aliança ela tremia tanto, que tive que segurar sua mão para que desse para colocar a aliança. Sua reação foi tão grande, que se atirou em meus braços e me crivou de beijos. No desequilíbrio caímos juntos. Os beijos continuaram no chão em meio à gargalhada geral. Tudo culminou com uma enorme torta de morangos e muita cerveja fabricada pelo próprio anfitrião.

       



   

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