quarta-feira, 30 de outubro de 2013

O Lenço



   Hoje foi mais um começo de noite daqueles onde a sombra insiste em tentar velar a luz que tanto busco em sua plenitude nestes últimos dias. É um misto de verdades que me cercam e completam o cenário, e fica difícil não pensar no que eu não gostaria. Fica difícil até separar as vibrações positivas que tanto estou precisando, das vibrações aflitivas, dos sentimentos, da carga emocional. Não são negativas, não. São tênues faíscas que riscam meu mundo como lampejos para anunciar que ainda nem tudo passou. Que tenho que ser forte, entender que é o processo da vida que se faz presente, e este processo não tem pressa, nenhuma pressa, é lento, massacra a cada lampejar, dilapida meus sentimentos em momentos, em instantes, todos os dias como se fosse num esforço ímpar, querer me impor a condição de viuvês. Viúvo é pesado! Acho viúva mais leve. Mas esta condição se instalou em mim, e mesmo corroído por todos estes sentimentos que a ausência da Bere me proporcionam, coloco no papel para compartilhar, já que isto me faz sentir melhor e também atende a tantas pessoas que pediram para eu continuar postando estes sentimentos. Que também se sentem bem nesta partilha. Então, vamos lá.
   Os filhos saíram, cada um seguindo seus compromissos. Wagner na Faculdade e Guilherme na Mostra Caiense de Cinema que ele organiza. Me sinto muito só. Somente só. Garoa leve lá fora nesta noite escura, gota por gota se desprendendo dos telhados e o pec pec delas caindo pulsam com meu coração ainda tão fragilizado. Queria acalmá-lo, muito, mas ele se nega a obedecer. Também não o culpo, perdeu sua metade da força que pulsava junto com ele há pouco mais de mês quando Bere partiu. Respiro fundo. Preciso me distrair para não pensar. Ouvir música! Não. Tem tantas que em vêz de me distraírem vão puxar ainda mais esta lembrança que confesso, é doce, é serena, mas sua vibração não faz bem sentir o tempo todo.
   Scotty está lá fora uivando. Saudades da Bere. E a cada lamento seu, meu lamento interior o acompanha e me sinto no desejo de também poder uivar como ele em uma forma de externar esta acuada saudade da ausência dela. Mais um úivo sentido, muito sentido. Em mim é como uma facada na minha alma. Então, não consigo conter esta insistente lágrima que nestes últimos dias também vem pra fora, sozinha, sem pedir licença mesmo eu não querendo, como se isto já fosse algo normal em minha rotina. Olho para a tela do computador e o que vejo é ela afagando a nuca do Scotty com carinho como tantas vezes fêz. Mais um úivo e minhas lágrimas aumentam. Me angustia ver ela neste carinho, porque na tela está apenas esta folha do bloco de notas aberta esperando minhas dissertações, mas sua presença imaginária ofusca minha tentativa em escrever. Olho pro lado, olhos marejados, óculos embassados, tiro, limpo e vejo Scotty perto da porta ensaiando mais um úivo. Ouço nitidamente a voz dela dizendo a frase que tantas vezes repetiu junto dele ao acariciá-lo: "Queridinho da vovó, vem cá, quero te dar um tsóde (carinho)!" Penso em mandar Scotty calar. Prefiro não arriscar. Talvez então ele aumentasse seus áis.
   Resolvo ir até ele. Me acocoro ao seu lado, afago sua cabeça, seu queixo, falo, elogio, e ele nem me olha. Fita acabrunhado o chão como se ali enxergasse os pés dela. Aqueles pés de anjo, pequenos, com as unhas sempre perfeitas, aparadinhas e pintadas, dentro daquele chinelinho de dedos de alças douradas que ela tanto gostava de usar. Ponho a mão embaixo do queixo do Scotty e tento puxar sua cara para me fitar, mas ele puxa pra baixo, insistindo em fitar o chão. Converso com ele. Ele não muda. Bom, pelo menos parou de uivar. 
   Volto pro computador, talvez fale com alguém para me distrair. Não. Não vou falar com ninguém, porque uma palavra diferente pode ser o suficiente para eu desabar em choro incontrolável. Ando assim. Chorão. Um cara cinquentão que em toda sua vida não chorou o que já chorou nestes trinta e poucos dias. Depois desses anos todos agora descobri o alívio que o ato de chorar dá. Então deixo fluir. Choro mais uma vez. No ritmo dos úivos do Scotty, que talvez esteja mostrando seu modo de chorar assim. É profundo o sentimento. O vazio é muito mais cheio de ausências que a gente possa imaginar. É um volume incontrolável de infimidades que passam pela mente, rebuscando a essência deste vazio, que fazem chorar mais. Mas não há dor. Só há lágrimas e vazio. E enquanto estou divagando nestas palavras, Scotty novamente cai em si e volta a lamentar sua saudade com úivos doloridos. Parece que está sendo torturado, tão sofrido ele úiva. Penso numa solução...
   Quem sabe pego uma peça de roupa dela, usada, mesmo que lavada, ele acalma. Boa ideia. Um lenço! Destes que ela usava para cobrir sua cabeça durante o tratamento na ausência de cabelos! Estes cabelos que tanto ela amava e que a condição da doença fez caírem um a um, lentamente, num sofrimento sem igual. Uma tortura para ela que durou dois meses e que a fez se dar por vencida, quando chamou sua cabeleireira e pediu para passar a máquina zero. Ela amava aqueles cabelos e por horas, quando sadia, muitas horas tratou deles como se fossem sua maior riqueza corporal, para continuar feminina, radiante para mim e de semblante doce como sempre teve.
   Até, quando isto aconteceu aqui em casa, a cabeleireira veio, fez o processo e depois que ficou pronta, Bere me chamou e disse enquanto se olhava no espelho:
   - Vidinha, olha, não fiquei tão feia assim! Achei que tinha uma cabeça deformada mas não, ela é redondinha, perfeita.
   Eu elogiei também, disse que ficou linda, sexi, nobre.
Mas, sinceramente, mesmo eu vendo ela assim, e realmente eu ter falado a verdade pois, olhando para ela enxerguei mais sua luz interior através de seus olhos negros e a ausência de cabelos não apagaria minha admiração por esta luz, senti nas entrelinhas do que ela dissera, sua grande dor em se ver assim, sem seu bem maior, o cabelo. Vi isto nitidamente pelo seu olhar de autocompaixão, louca para chorar, mas precisando se mostrar forte a fim de provar que cabelo não era tudo e que realmente queria a cura, mesmo sem cabelo. Mas, para ela, "seu cabelo era tudo" e eu sabia disto. Deixei ela com a cabeleireira e fui pro banheiro deixar meus sentimentos fluírem e chorei. Chorei de pena. A única vez que chorei de pena dela. Pena em vê-la passar por uma provação a mais, talvez a mais dura porque lhe arrancara da cabeça sua autoestima, pensando no que mais ainda a esperava.
   Vou até o nosso quarto. Onde achar um lenço no meio de toda aquela roupa? Procuro em várias gavetas. Não encontro. Revejo bermudinhas, camisetas, pijamas, abrigos. Roupinhas que ela adorava usar. Abro mais uma gaveta, só roupa íntima. Chamou a atenção no fundo da gaveta uma 'necessaire'. O que tem lá dentro? Puxo um pouco mais a gaveta, tiro aquela bolsa, abro o fecho e vejo o mundo de lingeries que adornaram nossas tantas noites de amor. Uma história a parte num mundo encantado e tantas vezes vivido, intenso e pleno. Mais um úivo prolongado e sofrido do Scotty ecoa pela noite, agora silenciosa. Parou de garoar. Scotty me trouxe de volta à realidade. Fecho a 'necessaire' e guardo. Procuro mais. Finalmente encontro uma gaveta cheia de lenços no criado mudo. Todos eles, cheirinho de limpo, lavados. Mesmo assim peguei um colorido. 
   Levo ele para fora, onde o Scotty está sentado em seu lugarzinho habitual e dou o lenço a ele. Bom, para ver sua reação, é melhor olhar no vídeo que fiz com ele recebendo este presente. Indescritível o que ele sentiu. Me emocionei com a sua reação se adonando daquele pano, me advertindo a não tirar mais dele. Naquela noite ele não uivou mais.

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