Rosa padre-reus. Fica aberta uma semana sem desfolhar
O Dia.
Hoje instintivamente na hora de por a mesa, coloquei para quatro pessoas. Nossa, quando me dei por conta de que o prato de Bere não precisava mais ir para aquele lugarzinho onde ela sentava, travei. Uma história inteira de Domingos se atravessou em minha mente e eu terminei de arrumar a mesa e de fazer o almoço com um nó na garganta. Afinal, é o primeiro Domingo do ano sem ela, sem sua viva energia a contagiar a família, sem seus pitacos nos erros do meu programa de rádio, sem tantas outras coisas. Máquina de lavar calada, esperando eu tomar a atitude, se quando eu chegava em casa a máquina já estava encerrando o processo, pois ela havia feito funcionar. Um Domingo vazio, de encanto quebrado, onde somente mais ficou o que tem por fazer, e não o amor por fazê-lo. Faltam tantas coisas. Falta o rádio ligado tocando a continuidade da programação da RCC. Falta o pátio varrido, que agora está cheio de folhas. Falta o cesto de frutas no centro da mesa. Falta a pia com a louça lavada, seca e guardada. Falta o fogão tinindo de limpo. Falta tudo. Falta encontrar em cima do microondas o início da lista das coisas que vamos levar para a praia. Então eu penso: o que ela anotaria? E enquanto os bifes vão pegando ponto vou anotando ítens que se usa todos os dias e que fariam falta nas férias. Ao mesmo tempo, revejo este começo de ano.
Difícil. Muito difícil acordar no primeiro dia do ano, depois de 31 anos, sem Bere do meu lado, dormindo doce e encantadora em seu sono de umas espumantes a mais, esparramada na cama, invadindo meu espaço com seu doce braço, num sono angelical. Difícil ver seu travesseiro vazio, alinhado ao meu e seu lado na cama com o lençol lisinho, sem ter sido usado. Difícil ver que entrei no novo ano sem lista de sonhos tantas vezes feita por ela em tantos anos, onde anotávamos as prioridades para o próximo ano. Aliás, nem preciso escrever porque minha lista de sonhos para este ano só tem duas palavras: saúde, foco. Com este sonho de apenas duas palavras pretendo recomeçar. Difícil ver que no cesto de roupas não está para lavar o seu vestido branco da virada com uma mancha rosa da cereja que caíra da taça de espumante como fôra no ano passado. Assim como suas sandálias brancas com detalhes dourados que não estão do lado da pia e nem seu cinto dourado está pendurado no suporte ao lado da toalha de rosto. Nem seus brincos com pérolas estão sobre a pia, junto com o anel e a pulseira de pérolas. "Contas de brilho para dar sorte!" - Dizia ela. Sinto falta de tudo isso. Muita falta. Olho para a banheira e não vejo sua roupa dobradinha esperando o banho do primeiro dia do ano. Parece até que não é meu quarto, minha banheira. Porque toda virada de ano, tinha ali de manhã uma toalha de banho cor de rosa, e uma roupa leve para vestir após o banho. Faltam também dentro dela as revistas de novelas, os livros, a retrospectiva do jornal e o encarte de Arte & Agenda que ela sempre lia. Mas o vasinho de violetas multicores fiz questão de manter sobre o balcão da pia, renovando quando estas ficam passadas. Uma singela forma de dar continuidade à vida, com este pequeno detalhe. E Bere nunca o deixou faltar.
Está faltando no ar o cheiro do preparo de toda esta química: seus cremes, seu perfume, seu desodorante. Parece que o ar do meu quarto não tem a mesma graça, que está sem química. Difícil ver que a tv do quarto não foi ligada na véspera para Bere dar uma conferida no réveillon. Aliás, faz três meses que não é ligada. Penso em ligá-la para ver se ainda funciona, mas, perco a vontade. Nunca usei aquele controle remoto, estou sem óculos, nem sei onde aperta para ligar. Tem três botões vermelhos. Deixo para outro dia. Aliás, como deixo para outro dia tantas coisas que deixaram de me apetecer desde que Bere partiu. O livro que eu estava lendo ainda está marcado na mesma página, minha leitura não caminhou mais. Assim como outras coisas que não fiz mais. Simplesmente não apetecem porque não tenho o estímulo dela me empurrando para fazê-lo. Sem vontade de cortar a grama e refazer as folhagens do jardim, ando pagando o Rogênio para fazê-lo. Até é bom para ele: trabalhador, esforçado e caprichoso, vive disso. Bere gostava dele. Quando tinha algo a fazer aqui em casa sempre pedia para chamá-lo. Um simples faz-tudo, que nos conquistou. Também não me apetece mais fazer comidinhas elaboradas, cheias de cuidados, em panela de ferro, tempero apurado, pois quem as provava com o gosto da alma não está mais aqui para provar. Nem aquele monte de curtidos não me apetece fazer. Agora acho trabalhoso fazer. Antes tinha prazer em fazer porque Bere não via a hora de tirar a primeira cebolinha, ou o primeiro pepino curtido do pote de conservas. Porém, estou pensando seriamente em mudar isto, porque comida boa é a essência de um equilíbrio saudável. E pratos ricos em misturas fazem nosso organismo absorver mais nutrientes.
Mas a rosinha padre-reus no vasinho em cima do granito da cozinha eu mantenho. Sinal de vida. E olhando para aquela flor, sinto que a vida também me olha. E que eu devo a ela uma lenta e gradual recompostura. É como aquele botão que está do lado da rosa, lutando para abrir. Mas tem o tempo de isto acontecer. Não tem como forçar, ele vai abrir no tempo certo. Este botão de rosa só irá desabrochar quando as pétalas lá dentro estiverem firmes para se segurarem ao vento. Para que não se desfolhem ao primeiro vento. Eu ando me desfolhando ainda até com uma brisa. Nem precisa ser vento. Mas estou ficando mais forte na base. E sei que com meus dias também será assim, desfazendo aos poucos todo este episódio que ainda me envolve para que quando voltar a ser pleno, este mesmo invólucro será minha base de sustentação. De onde sairei com novo semblante e pronto para a vida.
Bere e seu negro olhar. Não canso de admirar. Seu olhar era único, doce e severo, mas aconchegante. Jamais esquecerei seus olhos lindos, negros, profundos e cativantes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário