Cinco Meses sem Bere. Viúvo
Minha vida sem Bere já criou sua marca. Já me fez ser muito mais minucioso do que eu era. Já me fez chorar em cinco meses o que não chorei a vida toda. Já me fez pensar mais nela do que pensei nela em toda a nossa vida em comum. Já me balançou, já me chacoalhou e já me trouxe paz. Uma paz da qual aos poucos estou novamente me acostumando a ter. Está difícil, mas estou me esforçando. Hoje fazem cinco meses. Nestes cento e cinquenta e três dias em que ela partiu, meu começo foi de muita agitação, estava perdido, sem rumo, vivendo num mundo numa espécie de Limbo: nada bom, nada ruim, tudo estranho. Sabe, aquelas metas que você tem, aqueles compromissos que são inadiáveis? E você não tá nem tchum pra eles? Bem assim eu andei no começo de minha viuvez. Uma fragilidade tão grande envolve os sentimentos que qualquer coisa por mais trágica que seja, vira somente uma coisa. Nada mais. Os sentimentos viram algo que tanto faz como fez se edificam ou magoam, pois toda a energia sentimental fica canalizada somente na cara metade que partiu. É difícil descrever, afinal, parece impossível a gente não se importar com nada mais ao nosso redor. Mas é a verdade. Foi o que aconteceu comigo, e conversando com outras pessoas que passaram exatamente por esta mesma situação, de perder marido, esposa, cedo, na meia idade, relatam o mesmo. A energia da gente vira um sentimento gigante em tributo a quem tanto de si nos proporcionou, completando nossas vidas e que partiu incompleto. Partiu deixando para trás exatamente o mundo pronto, o qual agora começaria a usufruir. Tudo feito, tudo realizado, tudo alcançado, tudo pago. Agora era só usufruir. Aí está o pedaço da dor que tanto machuca a quem ficou. O tributo pela realização. E este sentimento é uma espécie de reverência, onde a gente sente que está pagando o que não virá mais pela frente. Uma espécie de depuração. Doída, forte, mas necessária.
Mas os meses passaram, foram me moldando e eu fui adaptando minha vida a viver com a ausência de Bere: não tenho mais tantos motivos para chorar, não sinto mais tanto a saudade da ausência de Bere, mudei algumas coisas dentro de casa que acho que ficaram mais práticas, enfim, estou criando uma identidade própria que está se moldando. Jamais eu mexeria em algo dentro de casa, deixado por Bere, se fosse há alguns meses atrás. Jamais. Mas agora já tomei a liberdade e mexi. Já posso falar sobre vários assuntos relacionados a ela sem me emocionar, sem sofrer e já consigo ver uma luz no fim do túnel. Já fui no cemitério e, de cara, não chorei frente ao seu túmulo. A vontade era imensa, mas como estava acompanhado, resisti, me mostrei forte e não chorei. Vi que a pessoa que me acompanhava também, doida pra chorar, tentou ser forte e se conteve. Só que quando contei o que iria mandar escrever no túmulo dela, em seu epitáfio, não me contive. Chorei abraçado à pessoa que foi comigo. E choramos juntos. Foi de uma emoção indescritível. Mas nossa emoção se somou, e acho que Bere teve nossa energia emanada em sua reverência. Mesmo assim, o epitáfio de Bere já está decidido, mesmo que eu chore todas as vezes em que chegar lá no cemitério e ler: "Onde estão teus olhos Negros? Onde estão teus olhos Negros? ...Que de noite eu via antes de dormir, e agora estão longe daqui."- Choro ao ler e lembrar isso lembrando o olhar de Bere, assim como chorei no cemitério ao falar estas frases, embargado com tantas lembranças. Mas é uma emoção que não machuca. É da boa, que faz minha alma sentir o valor de cada olhar que Bere me lançou em vida. E foram tantos. Sempre autênticos. Um olhar único, impagável e indelével. Um olhar de complemento, de energia, de soma. Um olhar que marcou tão profundamente minha vida, que não canso de falar nele. Porque seus olhos negros e seu olhar sempre foram de todo meu fascínio, meu domínio, uma sinceridade indescritível espelhando uma pureza de alma quase infantil. Seguramente se me perguntassem o que eu mais admirava em Bere, a resposta viria rapidamente: "Seus olhos negros, seu olhar."
O tempo está me ensinando que a vida é feita de histórias e cada qual no seu tempo tem sua importância. Mas que elas tem começo, meio e fim. E isto sinto cada vez mais presente. Por mais que não quisesse que nossa bela e linda história de amor terminasse, o destino se encarregou de transformá-la em um livro de trinta e um capítulos: 31 anos de tanta beleza e intensidade vividos em sua plenitude por nós dois. Mais dois anos de preparo antes. Eu não queria que terminasse. Ainda mais tão cedo. Eu queria viver este romance para o resto de minha vida. Me sinto até um pouco egoísta falando assim, mas, por que um relacionamento de amor incondicional, pleno, lindo e mágico como o nosso não pôde durar mais tempo? Então fico refletindo, e chego à conclusão de que até os contos de fadas têm fim. Por que então, nossa história de amor deveria durar o resto de nossas vidas?
Olhando para trás vejo que muito do que vivemos é tão sublime que dificilmente se repetirá. Este é um fato do qual preciso me conscientizar para que minha vida continue plena e feliz. Aceitar que esta foi uma vida vivida de um jeito único, inigualável. E que no futuro, talvez minha vida tenha uma geografia completamente diferente do que vivi. Tenho que me conscientizar disso, para que não vire um chato, ranzinza e insatisfeito por querer repetir em meu futuro, minha história com Bere. Porque Bere era única, inigualável. Inimitável. E jamais existirá outra Bere. Penso muito nisso. Bere formava frases curtas de uma intensidade de sentido de um parágrafo inteiro. E ela no seu todo era assim. Eu admirava este seu dom. Ela dizia: "Vamos fazer!" - Enquanto eu ainda estava pensando em como começar a juntar recursos, em como seria a logística da realização que tínhamos em mente e assim por diante. Bere atalhava e falava incisiva. Jamais eu tomaria esta ininciativa. Mas Bere tinha sempre sua estrutura montada, não falaria se não tivesse certeza do que queria. Só que restava a mim correr atrás. E nestas frases curtas ela gostava de dizer: "Somos café com leite: mistura perfeita, nada doce, nada salgado, saborosos!" - Filosofia de uma ternura sem igual. Sabor de uma intensidade e medida certa. Cada qual com sua parte, para o todo ser único. E penso nisso tudo, como sendo um tributo a ela, e difícil de voltar a acontecer um dia. Porque ela era um todo, completo, e me fascinava com este seu jeito de ser, de agir e de viver.
Enquanto caminho nestas lembranças gostosas de Bere, lembro também de algumas manias suas. Bere tinha o costume de ficar enrolando o cabelo com o dedo indicador de sua mãozinha direita. Me lembrei disso porque nestes dias, quando fui guardar toalhas de banho no armário do banheiro, vi um pacote fechado com sacola de supermercado. Aquilo me chamou a atenção. Abri, e eis que vi um copo com uma meia dúzia de pentes da Bere limpinhos e guardados, prontos para o uso quando ela voltasse a ter cabelos. Infelizmente ela partiu antes, sem voltar a ter cabelos. Bere era assim, enrolava suas mechas divagando, olhando TV, nervosa, ou para pegar no sono, sempre ficava enrolando o cabelo no dedo no lado do ouvido. Uma mania gostosa de ver, eu me sentia sereno em vê-la fazendo isso. E isto ela já vinha fazendo desde nosso tempo de namoro. Então, quando ela soube que iria perder seus cabelos por causa da quimioterapia, ficou muito preocupada, agitada, temendo como iria proceder. Tanto é que uma semana antes da primeira sessão de químio, ela me falou: "Vidinha, quando eu perder os cabelos, como vou fazer para pegar no sono? Não vou ter meus cabelos para ficar enrolando..." - Então eu respondi: "Quem sabe, compramos uma boneca, uma Barbie, ou outra que tenha bastante cabelos e tu enrolas eles." - Mesmo a contragosto ela concordou. E, quando ficou definitivamente sem cabelos, comprei uma boneca para ela e ela começou a enrolar o cabelo da boneca para pegar no sono. Algumas vezes cheguei no quarto, e vi ela dormindo abraçada à boneca, de cabelo enroladinho feito pelos dedinhos dela e chorei. Chorei pelo sentimento de captar exatamente a falta de cabelo que ela sentia. Seu cabelo era tudo. Ela não falava. Enfrentou tudo de cara, com sua coragem e persistência. Mas, esta cena era sempre o retrato real de algo subliminar, de algo que sua vida sentia. Algo de uma falta sem tamanho, sem explicação. Seu cabelo realmente era tudo para ela. Ela tinha em seu cabelo a valorização máxima de seu semblante. Eu sei disto, ela nunca me falou. Mas, um dia vi no perfil dela, no Orkut, a resposta para a pergunta: O que você mais aprecia em você? - E sua resposta: O cabelo. - juntei as coisas e não tive como não chorar. Ainda mais ao vê-la abraçada a uma boneca, com seu dedinho enfiado no cabelo da boneca todo enroladinho. Uma cena de mexer com qualquer sentimento. Uma cena doce, mas de um amargor sem tamanho. E eu querer tirar a boneca dela, e ela resmungar em seu sonho: "Já tá arrumada. Fica comigo!" - Respeitei o momento, e me senti um cara completamente impotente diante de tantas coisas que a vida apronta, das quais não temos como fugir. Mas vou criando forças. Aos poucos estou ficando pronto, de pé para a vida. É só uma questão de tempo.
Onde estão teus olhos negros? Onde estão teus olhos negros? Que de noite eu via antes de dormir. E agora estão longe daqui.