segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Cinco Meses sem Bere. Viúvo.



Cinco Meses sem Bere. Viúvo

   Minha vida sem Bere já criou sua marca. Já me fez ser muito mais minucioso do que eu era. Já me fez chorar em cinco meses o que não chorei a vida toda. Já me fez pensar mais nela do que pensei nela em toda a nossa vida em comum. Já me balançou, já me chacoalhou e já me trouxe paz. Uma paz da qual aos poucos estou novamente me acostumando a ter. Está difícil, mas estou me esforçando. Hoje fazem cinco meses. Nestes cento e cinquenta e três dias em que ela partiu, meu começo foi de muita agitação, estava perdido, sem rumo, vivendo num mundo numa espécie de Limbo: nada bom, nada ruim, tudo estranho. Sabe, aquelas metas que você tem, aqueles compromissos que são inadiáveis? E você não tá nem tchum pra eles? Bem assim eu andei no começo de minha viuvez. Uma fragilidade tão grande envolve os sentimentos que qualquer coisa por mais trágica que seja, vira somente uma coisa. Nada mais. Os sentimentos viram algo que tanto faz como fez se edificam ou magoam, pois toda a energia sentimental fica canalizada somente na cara metade que partiu. É difícil descrever, afinal, parece impossível a gente não se importar com nada mais ao nosso redor. Mas é a verdade. Foi o que aconteceu comigo, e conversando com outras pessoas que passaram exatamente por esta mesma situação, de perder marido, esposa, cedo, na meia idade, relatam o mesmo. A energia da gente vira um sentimento gigante em tributo a quem tanto de si nos proporcionou, completando nossas vidas e que partiu incompleto. Partiu deixando para trás exatamente o mundo pronto, o qual agora começaria a usufruir. Tudo feito, tudo realizado, tudo alcançado, tudo pago. Agora era só usufruir. Aí está o pedaço da dor que tanto machuca a quem ficou. O tributo pela realização. E este sentimento é uma espécie de reverência, onde a gente sente que está pagando o que não virá mais pela frente. Uma espécie de depuração. Doída, forte, mas necessária.
   Mas os meses passaram, foram me moldando e eu fui adaptando minha vida a viver com a ausência de Bere: não tenho mais tantos motivos para chorar, não sinto mais tanto a saudade da ausência de Bere, mudei algumas coisas dentro de casa que acho que ficaram mais práticas, enfim, estou criando uma identidade própria que está se moldando. Jamais eu mexeria em algo dentro de casa, deixado por Bere, se fosse há alguns meses atrás. Jamais. Mas agora já tomei a liberdade e mexi. Já posso falar sobre vários assuntos relacionados a ela sem me emocionar, sem sofrer e já consigo ver uma luz no fim do túnel. Já fui no cemitério e, de cara, não chorei frente ao seu túmulo. A vontade era imensa, mas como estava acompanhado, resisti, me mostrei forte e não chorei. Vi que a pessoa que me acompanhava também, doida pra chorar, tentou ser forte e se conteve. Só que quando contei o que iria mandar escrever no túmulo dela, em seu epitáfio, não me contive. Chorei abraçado à pessoa que foi comigo. E choramos juntos. Foi de uma emoção indescritível. Mas nossa emoção se somou, e acho que Bere teve nossa energia emanada em sua reverência. Mesmo assim, o epitáfio de Bere já está decidido, mesmo que eu chore todas as vezes em que chegar lá no cemitério e ler: "Onde estão teus olhos Negros? Onde estão teus olhos Negros? ...Que de noite eu via antes de dormir, e agora estão longe daqui."- Choro ao ler e lembrar isso lembrando o olhar de Bere, assim como chorei no cemitério ao falar estas frases, embargado com tantas lembranças. Mas é uma emoção que não machuca. É da boa, que faz minha alma sentir o valor de cada olhar que Bere me lançou em vida. E foram tantos. Sempre autênticos. Um olhar único, impagável e indelével. Um olhar de complemento, de energia, de soma. Um olhar que marcou tão profundamente minha vida, que não canso de falar nele. Porque seus olhos negros e seu olhar sempre foram de todo meu fascínio, meu domínio, uma sinceridade indescritível espelhando uma pureza de alma quase infantil. Seguramente se me perguntassem o que eu mais admirava em Bere, a resposta viria rapidamente: "Seus olhos negros, seu olhar."
    O tempo está me ensinando que a vida é feita de histórias e cada qual no seu tempo tem sua importância. Mas que elas tem começo, meio e fim. E isto sinto cada vez mais presente. Por mais que não quisesse que nossa bela e linda história de amor terminasse, o destino se encarregou de transformá-la em um livro de trinta e um capítulos: 31 anos de tanta beleza e intensidade vividos em sua plenitude por nós dois. Mais dois anos de preparo antes. Eu não queria que terminasse. Ainda mais tão cedo. Eu queria viver este romance para o resto de minha vida. Me sinto até um pouco egoísta falando assim, mas, por que um relacionamento de amor incondicional, pleno, lindo e mágico como o nosso não pôde durar mais tempo? Então fico refletindo, e chego à conclusão de que até os contos de fadas têm fim. Por que então, nossa história de amor deveria durar o resto de nossas vidas?
   Olhando para trás vejo que muito do que vivemos é tão sublime que dificilmente se repetirá. Este é um fato do qual preciso me conscientizar para que minha vida continue plena e feliz. Aceitar que esta foi uma vida vivida de um jeito único, inigualável. E que no futuro, talvez minha vida tenha uma geografia completamente diferente do que vivi. Tenho que me conscientizar disso, para que não vire um chato, ranzinza e insatisfeito por querer repetir em meu futuro, minha história com Bere. Porque Bere era única, inigualável. Inimitável. E jamais existirá outra Bere. Penso muito nisso. Bere formava frases curtas de uma intensidade de sentido de um parágrafo inteiro. E ela no seu todo era assim. Eu admirava este seu dom. Ela dizia: "Vamos fazer!" - Enquanto eu ainda estava pensando em como começar a juntar recursos, em como seria a logística da realização que tínhamos em mente e assim por diante. Bere atalhava e falava incisiva. Jamais eu tomaria esta ininciativa. Mas Bere tinha sempre sua estrutura montada, não falaria se não tivesse certeza do que queria. Só que restava a mim correr atrás. E nestas frases curtas ela gostava de dizer: "Somos café com leite: mistura perfeita, nada doce, nada salgado, saborosos!" - Filosofia de uma ternura sem igual. Sabor de uma intensidade e medida certa. Cada qual com sua parte, para o todo ser único. E penso nisso tudo, como sendo um tributo a ela, e difícil de voltar a acontecer um dia. Porque ela era um  todo, completo, e me fascinava com este seu jeito de ser, de agir e de viver.
   Enquanto caminho nestas lembranças gostosas de Bere, lembro também de algumas manias suas. Bere tinha o costume de ficar enrolando o cabelo com o dedo indicador de sua mãozinha direita. Me lembrei disso porque nestes dias, quando fui guardar toalhas de banho no armário do banheiro, vi um pacote fechado com sacola de supermercado. Aquilo me chamou a atenção. Abri, e eis que vi um copo com uma meia dúzia de pentes da Bere limpinhos e guardados, prontos para o uso quando ela voltasse a ter cabelos. Infelizmente ela partiu antes, sem voltar a ter cabelos. Bere era assim, enrolava suas mechas divagando, olhando TV, nervosa, ou para pegar no sono, sempre ficava enrolando o cabelo no dedo no lado do ouvido. Uma mania gostosa de ver, eu me sentia sereno em vê-la fazendo isso. E isto ela já vinha fazendo desde nosso tempo de namoro. Então, quando ela soube que iria perder seus cabelos por causa da quimioterapia, ficou muito preocupada, agitada, temendo como iria proceder. Tanto é que uma semana antes da primeira sessão de químio, ela me falou: "Vidinha, quando eu perder os cabelos, como vou fazer para pegar no sono? Não vou ter meus cabelos para ficar enrolando..." - Então eu respondi: "Quem sabe, compramos uma boneca, uma Barbie, ou outra que tenha bastante cabelos e tu enrolas eles." - Mesmo a contragosto ela concordou. E, quando ficou definitivamente sem cabelos, comprei uma boneca para ela e ela começou a enrolar o cabelo da boneca para pegar no sono. Algumas vezes cheguei no quarto, e vi ela dormindo abraçada à boneca, de cabelo enroladinho feito pelos dedinhos dela e chorei. Chorei pelo sentimento de captar exatamente a falta de cabelo que ela sentia. Seu cabelo era tudo. Ela não falava. Enfrentou tudo de cara, com sua coragem e persistência. Mas, esta cena era sempre o retrato real de algo subliminar, de algo que sua vida sentia. Algo de uma falta sem tamanho, sem explicação. Seu cabelo realmente era tudo para ela. Ela tinha em seu cabelo a valorização máxima de seu semblante. Eu sei disto, ela nunca me falou. Mas, um dia vi no perfil dela, no Orkut, a resposta para a pergunta: O que você mais aprecia em você? - E sua resposta: O cabelo. - juntei as coisas e não tive como não chorar. Ainda mais ao vê-la abraçada a uma boneca, com seu dedinho enfiado no cabelo da boneca todo enroladinho. Uma cena de mexer com qualquer sentimento. Uma cena doce, mas de um amargor sem tamanho. E eu querer tirar a boneca dela, e ela resmungar em seu sonho: "Já tá arrumada. Fica comigo!" - Respeitei o momento, e me senti um cara completamente impotente diante de tantas coisas que a vida apronta, das quais não temos como fugir. Mas vou criando forças. Aos poucos estou ficando pronto, de pé para a vida. É só uma questão de tempo.



 Onde estão teus olhos negros? Onde estão teus olhos negros? Que de noite eu via antes de dormir. E agora estão longe daqui.





sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Noite em Itapema




 Noite em Itapema   

   Caminhar pelas ruas de Itapema à noite é como trazer um ano inteiro de volta. Tudo remete a Fevereiro de dois mil e treze. Olhando as lojinhas, com tantas variedades de produtos, tantos estilos de roupas, calçados, bijuterias, utilidades... Tudo faz lembrar intensamente Bere e nossas férias. Quantas vezes no ano passado caminhamos à noite de mãos dadas, despreocupadamente, pelas mesmas ruas, mesmas calçadas e iluminados pelas mesmas luminárias... Isto após uma generosa chuva. Itapema no verão sempre tem uma chuva passageira no início da noite. E nestas caminhadas olhávamos as lojas, entrávamos, víamos as meninas atendentes com seu doce sorriso e eu via a paciência de Bere em escolher algum produto. Nossa! Ela era muito minuciosa. Em cada artigo que comprava ela observava cores, detalhes, tamanho, procedência, textura, se amarrotava facilmente ou não porque detestava passar roupa e, por fim, o preço. Tudo. Sempre escolhia com critério. Uma espécie de ritual de compras que fez parte desta e de tantas outras férias. E eu tinha um enorme prazer em poder estar ao seu lado vendo ela comprar. Eu tinha orgulho do jeito inteligente com que ela comprava. Adorava isso. Não me importava o tempo que Bere levasse para escolher a compra, o que me importava era ver sua sabedoria em escolher. Bere era sábia, objetiva e perspicaz nas escolhas. Sabia puxar de dentro de uma loja o que de melhor havia, pelo melhor preço. Mas nunca pechinchava. Pagava sempre o valor da etiqueta. Nunca me angustiei por ela demorar a decidir em sua escolha, pois sabia que, depois de estar com o produto em casa, ela exibiria com satisfação o fruto de sua escolha acertada, enaltecendo sua compra e o valor investido. Bere sempre lembrava de alguém que em seguida estaria de aniversário, ou que simplesmente merecia uma lembrancinha pela ajuda que dera no escritório onde trabalhava. As colegas do escritório Neiva Dahmer. Ela adorava todas, sem distinção. Com algumas era mais íntima, mas todas faziam parte de sua dedicação e seu carinho. Ou, então, por alguém ter sido parceira ajudando-a em alguma dificuldade. Dava até lembrancinha por ter recebido uma receita de alguém e que ela fez e deu certo, e que aprovou. Dar presentes era para Bere algo de tamanho prazer, que ela inventava motivos para presentear. E sabia escolher presentes que agradassem as pessoas. Ela tinha este 'feeling'. Ela se imaginava a pessoa, o que gostaria de ganhar e, pronto: estava ali a resposta do presentinho ou lembrancinha certa para aquela pessoa. Algo peculiar do modo de Bere ser, e que tantas alegrias trouxe a tantas pessoas com estas suas lembrancinhas.
   A noite de Itapema trás as pessoas às ruas. O burburinho é intenso. Várias línguas se misturam entre os transeuntes, todos falando alto, extravasando sua energia por estarem em férias. A gente nota nas pessoas uma certa euforia, incomum nas noites em cidades que não são balneários. Ninguém se importa em esperar meia hora para vagar mesa na pizzaria ou chopperia. Também ninguém se importa em tomar sorvete em pé na calçada por todas as mesas da sorveteria estarem ocupadas. Na padaria, todos esperam pacienciosamente a próxima fornada de cacetinhos porque a vida indolente das férias não dá pressa para nada. Simplesmente deixam o ritmo andar do seu jeito, mesmo que seja lento. Jovens sentados no cordão da calçada pipocando seus dedinhos sobre seus celulares e com o canto dos olhos seguindo a bunda das meninas que passam na calçada, junto com seus pais, ou em grupinhos, usando shortinhos surrados e curtos. E o canto do olho das meninas volta para eles em sinal de um jogo que talvez, vai começar. Casais adultos de mãos dadas caminhando de vitrine em vitrine observando os produtos e casais de namorados andando abraçados, de vez em quando um beijo, e juras de amor estampados em cada olhar. E em cada sorveteria, famílias inteiras saboreando os mais variados tipos de sorvetes, alívio para o calor e delícia para as crianças, em meio a um burburinho gostoso de vida no ar.
   Nestas férias eu saí também a caminhar pela noite de Itapema. Sozinho. Senti a falta da mão de Bere, meio áspera com sua tradicional alergia ao clima, ou ao sal, ou à areia da praia. E enquanto caminhávamos, muita conversa. Uma troca eterna de projetos, esperanças, espectativas e realizações por serem feitas. Conversávamos animadamente sobre tudo, enquanto volta e meia parávamos para ver alguma novidade sendo exposta em alguma vitrine, ou até na calçada, do lado de fora da loja, para chamar a atenção. Também, uma vez, enquanto caminhávamos na noite mágica daquele veraneio do ano passado, aconteceu um fato. De repente uma parada nossa no meio da calçada, uma troca de olhares, uma confidência provocante no olhar dela para mim, somente no olhar, e um acerto do que viria depois. Só no olhar. E eu captei. Logo em seguida, um sorriso malicioso, um selinho e o cochicho de Bere: "Vamos entrar nesta lojinha e comprar algo provocante para apimentar nossa noite!" - Meu olhar de aprovação, e a puxada dela em meu braço me arrastando para dentro da lojinha Cor de Rosa. Tudo inusitado, tudo ao acaso, mas de pensamento planejado pela Bere. Sem combinar. Algo que está previsto, mas que onde o acaso faz o momento certo. A verdadeira alquimia de um relacionamento, onde a vida dos detalhes é a arte e não sua imitação. Tudo muito claro, puro e natural. A escolha da peça, a pergunta se gostei, só com o seu olhar, minha aprovação também somente com o olhar, e a certeza do  desfecho de uma noite especial que começava ali, muito antes, na lojinha, no centro de Itapema. A química da vida é feita destas miucéias inusitadas, das coisinhas que quando as valorizamos se tornam 'as coisas' mais pelo momento e pela situação como tudo foi e aconteceu, do que pelo seu preço. Mas pelo valor de como aconteceu, as tornam coisas grandes, significativas, especiais. Inesquecíveis. Tanto é, que me lembrei de tudo isto neste ano quando passei em frente a esta lojinha Cor de Rosa. E vi as mesmas meninas atendendo, com seu jeitinho acolhedor. Lembro que no ano passado, quando estávamos dentro da loja e Bere depois de remexer praticamente em todo o estoque, puxou três peças e me mostrou, elas cochicharam algo entre si e eu consegui ler em seus lábios: "A noite promete!" - Seguido de risadinhas discretas. E Bere me disse baixinho, sussurrando: "Me dá de presente uma delas? ...Escolhe a mais sexy." - Enquanto mostrava frente e verso de cada uma. Eu assenti, e cochichei de volta: "Pega as três!" - E paguei. Na saída da loja eu cochichei em seu ouvido: "Compramos as embalagens do presente." - E rimos alto e solto, continuando a caminhar abraçados. Logo ali adiante, a parada na sorveteria. Sentamos numa mesinha daquelas altas, que parece estar-se em pé, perto da janelona que dá para a calçada para vermos o movimento intenso passando ali na frente. Mas em vez de olharmos para fora, nós dois nos observávamos. Sabe aquela conversa que se faz só no olhar? É uma arte que se aprende no convívio do dia-a-dia e após anos de relacionamento, onde se conhece perfeitamente a outra pessoa. E quando existe um amor puro, de intensidade, de soma, onde tudo é pelo outro antes de ser para si próprio, a conversa com os olhares se torna tão visível e inteligível que não há necessidade de palavras. Assim estávamos Bere e eu ali na sorveteria. Trocando energia da boa através de nossa 'conversa visual', em nosso mundo, imaginando o 'depois', sem nos darmos conta do que estava acontecendo ao nosso redor. De repente, como acordando, caí em mim e disse: "Vidinha, teu sorvete está derretendo!" - então foi que ela se deu conta que ainda nem havia tocado no sorvete. E eu só tinha tomado um gole do copo de chopp que estava na minha frente, já sem colarinho. Rimos largado e começamos a conversar animados, ao mesmo tempo em que consumíamos sorvete e chopp e víamos o movimento. Depois, de mãos dadas, em rápidos passos a volta para casa e o desfecho da noite.
   Itapema de noite convida a todos os tipos de imaginações e atitudes. É um lugar mágico onde as pessoas parecem as mais felizes do planeta. Se vê sorrisos para todos os lados. Se vê jeito e postura otimista no modo de ser das pessoas, ninguém esboça olhar triste ou indiferente. E isto tudo inspira a gente em ter a vontade de retornar a cada ano. A praia, então! Nossa, mar verde-azulado, água morna, ondas calmas e tantas outras vantagens. Itapema dá praia mesmo com chuva. Não tem vento e as pessoas ficam na praia. Além disso, tudo lá é perto. Tudo lá é de um jeito especial. Assim como era Bere. Acho que por isso ela gostava tanto de veranear lá. Itapema tem algo de Bere: dinâmica, serena, amorosa, completa. E com estas lembranças também boas de nossas férias do ano passado, com certeza pretendo voltar mais vezes à Itapema para veranear, rever nossa história e sentir seus encantos e sua magia.



Noite de Itapema, encanto magia.



Compras de lembrancinhas para tantas pessoas que Bere queria bem.



Na Pizzaria. Olhar de carinho de Bere, assim como ela sempre foi.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Uma Imagem que Muda o Dia: O Baque




o Baque

   Férias sempre são sinônimo de descanso, coisas diferentes, vida diferente, acontecimentos diferentes. Tudo remete a um mundo que se cria na imaginação, o qual vai fazer os dias de lazer se transformarem em fotos, lembranças e momentos que, somados aos nossos dias de trabalho e labuta, formam nossa história. E foi isto que imaginei para os meus filhos retornando a Itapema, onde veraneamos no ano passado, quando Bere mostrou o desejo em retornar. Mas foi tudo muito diferente do que eu havia protagonizado, pois, apesar de minha fidelidade ao seu pedido, quando vi a casa, o quarto e a mobília, tudo mexeu com meu sentimental. Afinal, ano passado vivemos ali momentos indescritíveis. 
   No segundo dia, de manhã, quando fomos ao mar já senti aquele nó incômodo em minha garganta pedindo passagem, mas pensei que quando fosse sentar em frente ao mar na orla, vendo aquela maravilhosa paisagem, tudo mudaria. Mas não mudou. Foi pior. Aquela repetição de ondas brancas e doces se quebrando na areia me remeteram a dois mil e treze. Onde Bere ficou comigo e nosso veraneio foi marcado por todos estes ruídos. Disfarcei meu choro na frente dos filhos e cunhados, mas me senti muito só. Apesar de todas as pessoas, eu estava só. Consegui dominar meus sentimentos entrando na conversa animada de minha turma, argumentando, rindo com eles por fora e chorando por dentro. No meu interior, o mar, com seu burburinho cantava a melodia da lembrança de bons momentos do passado, que não voltariam. E esta melodia machucou. Pois a companhia mais importante para completar estes momentos, Bere, não mais sentava do meu lado embaixo do guarda-sol, com seu cheiro de bronzeador, com sua saída de praia branca, de renda, pendurada dentro das barbatanas do guarda-sol, com seu doce e negro olhar a me fitar pedindo para passar bronzeador nas costas. E eu reclamar da meleca que isto dava nas mãos e ela docemente me responder: "Trouxe junto uma garrafinha de água e uma toalha. É só lavar que sai." - E tantas, tantas, mais tantas outras lembranças. Mas contive o choro me distraindo, adulando crianças que brincavam ali perto, conversando.
   Mas no dia seguinte aconteceu. Não me contive. Fomos ao supermercado comprar os mantimentos para nosso almoço, coisas que também faltavam na casa. Quando fui na fruteira pegar um pé de rúcula, dei de cara com uma senhora de meia idade de lenço na cabeça, sem sobrancelhas, sem cílios, em tratamento quimioterápico, escolhendo também rúcula. Puxamos juntos o mesmo maço. Ela me olhou profundamente, eu olhei para ela. Senti na hora um desconforto sem igual, e cedi dizendo com um nó na garganta: "Pode levar, eu pego outro." - Ela sorriu, agradeceu puxando o maço, respingando meus pés com as raízes que estavam na bandeja com água, e foi embora. Foi um choque! Um baque! Então me voltou um filme inteiro na mente. Lembrei de toda nossa luta do ano passado, onde Bere também ficou assim sem cabelos em seu tratamento, e do desejo dela de voltar à Itapema, fazer compras no mesmo supermercado Koch, comprar também um maço de rúcula, e quem sabe neste ano, se tivesse sobrevivido estaria com a mesma aparência da senhora que vi na fruteira. Já travei uma luta interna dentro do supermercado para não chorar. Estava emocionalmente abalado. Fui ler rótulos de vinho para saber sua procedência para me distrair. Fui alinhar abobrinhas na fruteira e escolher tomates. Mas foi muito marcante. Uma mexida, chacoalhada, que eu não esperava e que involuntariamente me dominou: se instalou e chacoalhou meu mundo. Meu chão simplesmente desapareceu. Aquela cena da senhora de lenço trouxe de volta todo o nosso caminho de lutas e esforços no tratamento de Bere do ano passado. E graças a ele, ao menos prolongamos alguns meses a sobrevida dela. Caso o destino fosse generoso conosco, Bere poderia estar ali, daquele jeito, na mesma fruteira, puxando aquele mesmo maço de rúcula, sorrindo com a mesma cortesia para um estranho que estivesse cedendo este maço a ela. E a imagem do tratamento, do sofrimento, da luta que aquela mulher de lenço me trouxe de volta me aniquilou.
   Depois desta cena eu fiquei todo errado. Até cozinhei para todos que estavam comigo no veraneio, molho de carne moída com massa. E claro, salada de rúcula, da qual não comi mesmo gostando muito desta salada. Cozinhei para me distrair, mas sem prazer. Porque não tinha vontade de fazer comida. Muito menos de comer. O cheiro da comida sendo preparada me repugnou. Quase vomitei. Eu somente mais via Bere na minha frente com o lenço na cabeça, sorrindo e agradecendo as férias maravilhosas em Itapema e por ter comprado um maço de rúcula para ela. Almoçamos. Eu empurrei uma colherada de comida através do nó da garganta, desceu difícil. Disfarcei remexendo meu prato de comida para os outros não notarem minha falta de apetite, mexendo com o garfo o que havia sobrado lá. Tentei tomar uma cerveja mas botei fora com o pretexto de que estava quente, mas ela na realidade não desceu. O nó segurou. E a turma animada ao meu redor, elogiando o sabor da carne. E eu repugnado, disfarçava o sorriso para acompanhar. Meu cunhado disse para eu pegar outra cerveja, mais atrás na gaveta do congelador, que certamente estaria mais gelada. E eu, na obrigação de disfarçar tive que seguir sua sugestão. Fui, peguei uma lata, estava muito gelada. Abri, servi um gole no copo e empurrei com força para a boca para atravessar o nó da garganta. Deu certo. Levei todo o tempo da arrumação da cozinha, de lavar louça que minha cunhada encabeçou e filhos ajudaram, para empurrar aquela lata de cerveja goela abaixo e não dar na vista. Fui no banheiro fazer a higiene bucal e o pessoal aos poucos foi se dissipando, cada qual indo pro seu quarto descansar, relaxar. Eu não. Estava tenso por demais. Aquela imagem da mulher de lenço não saía de mim. Tinha que fazer algo para tirar de dentro de mim este abafar de sentimentos que estava me abatendo e me dominando. Então, como pretexto peguei o notebook, botei em sua maletinha, peguei um guarda-sol e uma cadeira, morto de vontade de chorar, e disse a todos que iria na beira da praia escrever. Mas, este era o pretexto para eu poder ir sozinho e chorar sozinho. Não queria estragar o veraneio de ninguém. Mas eu sabia que o 'note' não tem luminosidade para se enxergar na praia. A claridade não permite escrever. Foi só pretexto.
   Quando cheguei lá, pedi uma mesinha no bar da orla, levei até um ponto de areia livre, armei o guarda-sol e sentei embaixo. O sol estava literalmente fritando as pessoas com sua intensidade. E uma leve brisa do mar amainava este calor embaixo do guarda sol. Poucos banhistas brincavam e riam ali perto dentro da água. Não tinha muita gente. Na minha frente, uma mesinha abandonada com um coco deitado. Ainda tinha o canudinho de onde foi tomada sua água. Do meu lado esquerdo, um casal de argentinos com uma menina de seus dez anos. Do outro lado, gente distante, uns dez metros ou mais. Coloquei a pastinha do notebook sobre a mesinha. Meu coração estava explodindo, querendo sair até nos braços. Tirei o óculos de sol de cima do boné que estava usando, coloquei sobre os olhos, fechei-os e deixei a sinfonia das ondas do mar me levar. Uma melodia que a cada quebrada de onda forma acordes diferentes. E elas me levaram. No vai e vem das brumas se dissipando na areia, no meio daquele ruído, a voz de Bere estava faltando. A companhia de Bere estava faltando. O cheiro do bronzeador de Bere estava faltando. A cadeira de Bere ao meu lado estava faltando. Discretamente chorei. Procurando ser contido. Disfarçado. As lágrimas corriam soltas, desavisadas, como se fosse para depurar lentamente toda a minha saudade dela e daqueles momentos. Os quinze guardanapos de papel que havia trazido para enxugar meu choro, que eram para durar a tarde toda, em meia hora se consumiram enxarcados. De repente, vi com o canto do olho marejado a menina portenha me encarando, e ela foi correndo cochichar com sua mãe e seu pai. Daqui a pouco, a jovem senhora argentina acocorou na minha frente e disse: "¿pasó algo? ... ¡Usted está llorando! ¿Necesitas ayuda? ..." - E eu respondi: "Solamente estoy triste. ¡Déjame! Necessito llorar." - Ela assentiu com a cabeça, não falou nada, levantou, pegou sua menina pela mão, que a esta altura também já tinha chegado ali perto, e voltou para junto do marido. E já os três foram ao mar, certamente para respeitar meu momento e não atrapalharem minha depuração. E eu chorei. Muito. Discretamente. Mais de uma hora. Ainda bem que tinha levado uma toalha de rosto na bolsa, que me amparou as lágrimas e a corisa. O vai-e-vem das ondas, aquele som do mar, o vento salgadinho, o cheiro de maresia, o farfalhar dos guarda-sóis, crianças correndo e jogando, falando em português e em espanhol, gritos e o som monótono dos vendedores da orla, tudo me remeteu à Bere. E a falta dela do meu lado embaixo do guarda-sol. Tudo. Não tive jeito de separar as coisas, pois elas se somaram em vez de se diluírem. ...Depois que o casal argentino voltou do mar e sentou do meu lado, me encarando com preocupação, procurei me ater a outros pensamentos e consegui dominar minhas remiscências, pensando no quanto de bem isto tudo havia feito a ela no ano passado. E parei de chorar. Respirei fundo, desarmei acampamento e voltei para casa. Com olheiras, cara de choro, mas o tributo merecido feito a este ser maravilhoso que tantas orlas compartilhou comigo com sua companhia e seu doce modo de ser, a minha Bere. No fundo a sinfonia das ondas e no ar o inconfundível cheiro de mar. 


A imagem fala por si só. Do mesmo jeito como estava me sentindo, mesmo jeito a visão: um vazio sem tamanho!


Bere e o Lenço: imagem marcante!

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Meia Praia, Itapema, 30 de Janeiro de 2014



   Meia Praia, 30 de Janeiro, 2014

   O dia amanheceu para mim mais cedo. Cinco para as cinco da manhã estava eu acordado, sem sono. Mas a terra ainda se mostrava completamente escura. Lua enorme e minguante no céu, bocejando na despedida da madrugada. E a data me puxou. De cara, lembrei. Nossa, 30 de Janeiro, a data mais importante de minha vida! E eu de madrugada sozinho, no quarto da casa 195, em Meia Praia, Santa Catarina, pensando como faria para superar esta data, como faria para passar este dia, na boa. Há 32 anos, Bere e eu selávamos nosso casamento na igreja de São Sebastião, prometendo amor, respeito, fidelidade e parceria para o resto de nossas vidas. E isto aconteceu. Amor eterno, Respeito. Respeito sem igual, de verdadeiro sentimento de limites entre os direitos de cada um, onde víamos em nós, de mim para ela e de Bere para mim, o direito de termos nossas diferenças e delas termos nossos momentos, alegrias, amigos, encontros e conversas, cordialidades, inerentes ao casamento e independente se homem ou mulher nesta amizade, porque nos respeitávamos. E o respeito impunha a nós, nossos limites. Um relacionamento de fidelidade à prova de qualquer suspeita e parceria inigualável. Este é o verdadeiro teor de um casamento. O respeito. Assim, eu tinha e tenho amigas e ela tinha amigos. O casamento se potencializa com estas diferenças e apaga a besteira de se ter ciúmes. Afinal, quem ama tem inserido neste amor a fidelidade, não precisa provar. Estes anos todos com este respeito entre nós foram tão bons! Divinos! Só que eu não imaginei que isto fosse levar tão pouco tempo, pois 31 anos depois de tanta reciprocidade passaram voando e a vida veio e subtraiu Bere de meu convívio sem perguntar, nem chance de argumentar. Até hoje sinto dificuldades em aceitar isso. Mas procuro assimilar.  
   Fiquei revirando na cama, lembrando a data, e logo aquele apertar de garganta mostrou o prazer a que veio, enchendo meus olhos de uma saudade tamanha, que nada no mundo possa se comparar. De agora em diante, para sempre esta data seria somente mais lembrada e não comemorada, pois Bere não estava mais aqui. Não teria mais nada a comemorar, só relembrar. Tudo naquele dia foi difícil. Levantar e botar o café da manhã a passar, lembrando do cheiro do café da manhã passando misturado ao cheiro do filtro solar das roupas no tanque esperando serem lavadas e o cheiro da salada de cebolas na geladeira que havia sobrado no dia anterior, quando a abri para pegar o pote de margarina. E as canções do Simon & Garfunkel no cd ao lado do microondas, com uma coletânea de seus sucessos do passado ainda na bandeja do aparelho. Há um ano esta mistura de aromas inconfundíveis selava nossa parceria numa praia paradisíaca, Meia Praia. Bere e eu, dançando de manhã cedo na cozinha, de rostos colados, apaixonados, "Bridge Over Troubled Water", enquanto esperávamos o café passar. Nunca imaginei que esta 'ponte sobre águas turbulentas' - a tradução deste título musical, fosse se refletir um ano depois em minha vida com minha grande e única paixão, agora tão efêmera como a frágil ponte para atravessar um rio turbulento, igual à canção. Nossa ponte em 2013 teve que ser amarrada diversas vezes para sustentar nossas provações. e mais uma vez o amor incondicional fêz sua parte, dando passagem sobre este rio turbulento. Fiz questão de trazer o cd da coletânea para ouvir na manhã deste dia 30. E o toquei enquanto passava o café, do mesmo jeito como do ano passado. Faltou o resto da salada de cebolas na geladeira. Em compensação, um pote de salsa e cebolinha picada estava perfumando o interior dela. E eles, Simon & Garfunkel, com suas vozes marcantes, nesta linda canção, me trouxeram a cena toda do ano anterior de volta, presente neste mesmo local, nesta mesma cozinha, com os mesmos aromas. Meu convite para Bere dançar comigo e a relutância dela em aceitar dizendo: "Estou descabelada." - Eu a tomei nos braços, ela cedeu, deixou se envolver e a dança iniciou. Nossos passos, balançando no ritmo da melodia, a parada para mais uma enchida de água fervente no filtro do café para passar, nosso abraço de ternura, nosso tropeçar na mesa por estarmos dançando de olhos fechados, seguido de risadas adolescentes e nosso encarar doce, apaixonado, de quem realmente estava vivendo a simbiose deste grande amor. E enquanto a melodia rolava, ficamos parados nos segurando nas cinturas, cheiro de café no ar e eu acompanhando a melodia, cantando num sussurar: "Like a bridge over troubled water I will lay me down." - Bere, me encarando, seu negro olhar, me disse: "Conquistamos tudo isto, vamos manter!" - Me abraçou, deu um beijo suave em minha face. Eu quis revidar como outro beijo mas ela impediu: "Não, na boca não. Ainda não escovei os dentes." - Então terminou a melodia, café passado, preparamos a mesa e tomamos café. Só nós dois, enamorados, eu esmaguei a banana no prato dela misturada com açúcar, banana caturra, para colocar sobre o pão, e ela fatiou a banana catarina no meu prato, para eu comer em rodelinhas, acompanhada de fatias de pão. Rimos, muito, parecíamos iniciando um namoro. Os meninos ainda estavam dormindo. Em seguida, ela preparou meu café com leite e eu enchi sua xícara com café preto. Fizemos tim-tim com as xícaras para comemorar e rimos largado. Bere disse, como gostava de dizer quando tínhamos estes momentos moleques: "Frech bubche!" (malandrinho - em alemão). Eu olhei sério para ela e respondi: "Main Lebche!" (minha Vidinha!). 
   Lembro também de todos os nossos detalhes do ano passado à beira mar: o mesmo garçom na praia, o mesmo chato recolhedor de latinhas com sua voz rouca e seu óculos de sol de camelô, de armação branca, espelhado, importunando as mulheres da praia, e a mesma família de índios vendendo artesanato. Não vi o garotinho que no ano passado vendera uma pulseira de artesanato indígena para Bere e para quem ela deu dinheiro a mais para comprar refri. Mas vi a indiazinha. Franzina, de lá de seus doze anos, olhar de quem está fazendo aquilo por obrigação e não porque quer, oferecendo os produtos artesanais de sua tribo, lá pela hora do meio dia. Torradinha do sol, cabelo muito preto e desgrenhado, olhinhos puxados, cheirando a xixi misturado com suor, de pés no chão caminhando sobre aquela areia escaldante, oferecendo seu artesanato. E ninguém querendo sequer ver os produtos oferecidos, quem dirá comprar. Mas eu me lembrei de Bere e sua atitude do ano passado: chamei a indiazinha, pedi para ver seus produtos e comprei uma pulseira artesanal, com uma concha no meio, muito linda.  O preço? Cinco reais. E do mesmo jeito como Bere fez no ano passado com o indiozinho, eu puxei uma nota de dez reais e dei a ela, dizendo para comprar algo para ela com o troco. Mais tarde a vi sentada no banco embaixo de uma jovem amendoeira, no calçadão à beira mar, comendo um saco enorme de salgadinhos juntamente com duas pequerruchinhas, que desconfio eram suas irmãs, comendo com ela. Este provavelmente foi seu almoço.
   O meu dia na praia foi este. Muito carregado de sensações e sentimentos indescritíveis pois para todo o lado que olhava sentia a presença, ou melhor, a ausência presente de Bere. Faltaram seus comentários sobre as pessoas que frequentavam a praia, me apontar mulheres bonitas, e gostosas, destacando suas formas, sugerindo olhá-las para ver as belezas deste mundo. Vi os vendedores de roupas e tantas outras coisas, que ela fazia questão de chegar, apalpar os produtos e sentir o quanto de bons eram. Faltou o sorriso dela para mim embaixo do guarda-sol dizendo: "Vidinha, a melhor praia de nossas vidas!" - Faltou tudo. Aquela lata de coca que ela não tomou, aquela caipirinha servida em mesinha personalizada do Surf Bar da beira da praia que ela adorava tomar, e o suspiro no último gole: "Se eu ficar bêbada, não vai me repreender?" - E eu por mais que desejasse que um momento desses acontecesse, nunca vi Bere bêbada. Faltou também ela dizendo: "Compra mais uma cerveja, que esta é por minha conta!" - Era a cerveja mais gostosa do dia. Faltou na volta da praia ela combinando o almoço comigo, fazendo o pedido das comidinhas que ela mais gostava: "Quem sabe faz um purezinho de batatas e aquele bifinho fritinho que só tu sabes fazer?" - Eu assentir, dar um beijo com gosto de filtro solar e caipirinha, responder: "O que não faço por ti?" - Ela sorrir, dizendo que o chuveiro pertencia primeiro ao cozinheiro da rodada, no caso, eu. E senti. Um sentimento vazio de falta e cheio de lembranças. Relembrando tudo isto do ano passado, senti profundamente todo o caminho da volta da praia. Fui caminhando na frente de todos, para que não me vissem assim, amargando a falta do complemento meu desta data, a falta de minha Vidinha. Não quis estragar a alegria da praia de ninguém pela minha dor de sua ausência. Bere estava tão presente em toda esta paisagem, na cara das lojas, farmácias, vitrines, que por onde passava, parecia sentir ela abanando para mim, pedindo para dar uma paradinha para ela entrar e ver os produtos daquela loja. E eu, lembrando que estava cumprindo um de seus últimos desejos em vida, o de voltar a veranear na mesma casa do ano passado, em Meia Praia, Itapema. Foi muito marcante. Talvez não teria sentido tanto se fosse à praia em outro lugar, pois nesta casa tudo me remeteu a ela. Mas eu sempre fui de enfrentar tudo de frente e sabia que passaria por isto. No fim, se for somar entre alegrias e os momentos de saudades da ausência de Bere, posso dizer que valeu a pena reviver tudo aquilo. E com certeza, se tivesse ficado em minha casa, onde todo o ambiente ainda tem a mão e o carinho dela, eu sentiria muito mais a passagem desta data.


Bere amava praia.


Bere em 2013 na mesma praia, escolhendo uma pulseira do artesanato indígena e o indiosinho pra quem pagou um refrigerante.



Em 2013 no veraneio, algumas vezes esta cena se repetiu. Bere adorava passar os dedos nas roupas para sentir sua qualidade. Acabou ficando com aquela saída de praia branca que aparece no lado direito da foto.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

30 de Janeiro


 30 de Janeiro

   Lembro que foi um dia muito quente este dia de 1982. Como o de hoje. Nosso casamento estava marcado para às 19:15, quinze minutos após a missa de sábado. Eu não havia visto Bere vestida de noiva como é tradicional. Lembro que naquela tarde causticante tudo estava parado, nenhuma brisa e o sol torrando a natureza. Então o inusitado aconteceu: uma manga d'água desceu do céu molhando toda a nossa cidade, mas em vez de refrescar o ambiente o tornou mais quente ainda com aquela umidade evaporando na quentura de mais de quarenta graus. Bere foi se arrumar em sua cabeleireira da qual não lembro mais o nome e eu fui me vestir na casa que seria nosso lar a partir daquele dia. Foi um sacrifício vestir a fatiota porque tudo grudava no corpo devido ao suor, mesmo após um banho frio com sabonete Lifebuoy e cabelo lavado com shampoo Tres Brut, desodorante Brut e perfume Aquarius da Rhodia. Nossa, eu tinha coleção de perfumes da Rhodia. Mas, abri uma Pepsi bem gelada com bastante cubos de gelo no copo e enquanto sorvia seus golinhos, fui vestindo. E, a surpresa, quando estava vestido: quis guardar documentos, dinheiro, mas todos os bolsos da fatiota estavam costurados. Tive que tirar o casaco de novo, pegar uma faca na cozinha, com cara de nunca usada, e abrir os buracos dos bolsos. Maldisse o fabricante, na época Tevah, e abri a costura dos bolsos, pois tinha que carregar lenço, documentos, chaves da casa, e duas caixinhas de chicletes da Chiclets, a pedido de Bere, para comermos depois do jantar e podermos beijar refrescado.
   Quando estava esperando a hora de entrar na igreja, somente eu e minha mãe, em frente à Igreja São Sebastião, em Caí, vi minha mãe se mostrando muito tensa. Então eu perguntei: "Que foi mãe?" - Ela respondeu: "Estou preocupada em te entregar para minha 'filhinha'. Tantas já passaram em tua vida, não sei se vai durar este casamento. Também não sei se a farás feliz." - Ela tinha o costume de chamar as noras de "filhinhas".  Até fiquei chateado com o que ela havia falado. Afinal, eu estava realmente querendo assumir um compromisso de verdade. Eu queria casar. Tinha certeza disto. O amor de minha vida era Bere, eu já tinha decidido. Então eu disse a ela: "Mãe, que coisa!!! ...Eu pareço tão pouco confiável?" - Ela, continuando com o seu olhar tenso, respondeu: "Pioche, eu não estou preocupada contigo porque tu te viras. Estou preocupada com a 'filhinha' (Bere). Ela não merece nada de mal pra vida dela, porque ela entrou de cabeça na relação de vocês. Vejo seus olhinhos brilhando quando fala em ti. E não quero que ela tenha uma desilusão justamente com um filho meu." - Então eu respondi: "Mãezinha, mãezinha, que preocupação besta! Se eu não estivesse afim de arrumar um compromisso de verdade, para o resto de minha vida com uma mulher, casando, continuaria minha vida aprontando como fiz até há dois anos atrás. Sério, mãe, eu amo ela de verdade e vais ter ainda muito orgulho de 'tua filhinha' ter acontecido em minha vida, prometo!" - Ela esboçou um leve sorriso, mas já voltou a manter aquele olhar tenso. ...Pensou um pouco e disse: "A maior felicidade de uma mãe é poder entregar um filho para o casamento. Assim como estou fazendo hoje. Mas, entregar para um filho que saiba realmente olhar com a certeza de sua escolha. Que saiba escolher e selar sua escolha. Que tenha o retorno desta escolha. ...E tu, Pioche, já pensaste sobre estas escolhas?" - Eu iria falar dizendo que "sim", mas nos chamaram para a entrar na igreja para começar a cerimônia do casamento.
   A cerimônia aconteceu, tudo normal. Só muito quente. Eu estava enxarcado dentro daquela fatiota, sentindo o suor iniciando no peito e nas costas e descer correndo pelo corpo até terminar nos sapatos. E, tenho certeza de que a hora de minha vida onde senti a maior responsabilidade de todas, de realmente selar a 'escolha' da qual a mãe falou, foi quando jurei à Bere amá-la e resepeitá-la na alegria e na tristeza, na saúde e na doença para o resto da vida. Pois isto realmente aconteceu. Tivemos uma vida intensa de muitas lutas, muito trabalho, muitas alegrias e algumas tristezas e preocupações. Mas tudo sempre foi somado no condensar desta frase de jura lá no altar. E hoje, depois de tudo que passamos juntos, se for pensar nesta frase, realmente ela é química: faz você selar um compromisso que vai fazer a diferença nos momentos da vida quando balançar. Porque não é fácil acompanhar o drama de quem amamos e abraçar a causa em anulação própria, para trazer ao outro ao menos o conforto de parceria, de reciprocidade e de doação. Isto se chama amor incondicional. Este é quem move e motiva estas atitudes, e que faz do ser humano alguém que procura melhorar seus atos e ações diante dos revéses da vida. O amor incondicional é a paz do relacionamento, a alavanca nas lutas em parceria, a força nos momentos de fraqueza e principalmente, o alimento da alma. Me sinto feliz por ter tido a chance de viver um amor incondicional, ele é quem fez a diferença.
   30 de Janeiro de 2014: Completaríamos 32 anos de casados e Bere teria completado 52 anos. Teria havido uma festa com amigos e parentes e a realização do desejo dela de contratar uma equipe de pizzaiolos de Porto Alegre, como havíamos experimentado no aniversário da Fernanda, para fazerem as pizzas aqui em casa, na hora, para os convidados, regadas a chopp e à alegria de nossas pessoas amadas que tanto animam uma festinha. Quis o destino que isto não acontecesse. O mundo de Bere a separou deste plano antes. Mas eu, mesmo distante daqui, lá em Itapema, tomei um banho de mar por ela conforme ela pedira em seu diário, lembrando de sua vida, sua história, seus fatos, suas virtudes, seus vícios e manias (que eram poucos), suas atitudes e principalmente do grande coração de Bere, carregado de amor e carinho. Ela sempre se preocupou mais pelos outros do que consigo mesma. Talvez este seja também um dos motivos pelo qual a amei tanto. 





domingo, 9 de fevereiro de 2014

A Casa Número 195 no Balneário Meia Praia em Itapema, Santa Catarina


A Casa nº 195 da Rua Duzentos e Cinquenta e Seis em Meia Praia - Itapema - SC

 A Volta  

   Quando eu cheguei em frente ao portão daquela casa, na rua duzentos e cinquenta e seis, número cento e noventa e cinco no bairro Meia Praia, em Itapema, Santa Catarina, até parece que meu carro ficou fora de si, por parar na frente daquele portão. Parecia o motor gemendo. Naquela vez, Bere desembarcou primeiro, estava comigo. Pois, ano passado, no início de Fevereiro, naquele mesmo endereço, parei também. Conhecemos aquela casa e passamos férias maravilhosas, curtindo tudo o que de bom e belo a vida pode oferecer. Bere estava radiante: estávamos perto do centro, da praia e das lojas. O Carro poderia ficar ali, sem precisar tirar da garagem, pois tudo ficava perto. Foram férias tão sensacionais, que ela tinha sonhado em repetir neste ano de 2014. E eu cumpri seu desejo. Mas não imaginei que todas as reminiscências destas férias fossem me marcar tanto.
   Saí do carro em frente ao portão, olhei aquela casa, o pátio, sua enorme amendoeira defronte a dar uma sombra abençoada e já ouvi em meu interior Bere na sua falinha do ano passado dizendo: "Nossa, perfeito! A casa de praia que pedi a Deus. Vão ser os dez melhores dias de nossas vidas!" - E foram. Aproveitamos mesmo, muito, cada momento, cada dia. Só que eu não imaginava que cada dia, cada acontecimento fosse tão marcante nas lembranças por sua repetição. E nisso eu me perdi, ou, sei lá, balancei. Já pela viagem em si, a falta de Bere do meu lado me cuidando, instruindo, me olhando, já foi algo que me fez sentir. Então veio a parada em Maquiné, onde no ano passado não fomos atendidos porque tinha gente demais, e viemos embora. Bere estava muito chateada pela falta de atenção do lugar para com os clientes. Acabamos comendo qualquer coisa no Japonês, e ela disse que agora sempre haveria de parar ali por causa do atendimento. Maquiné nunca mais. Então a viagem, o cuidado com o trânsito e a chegada, com o agradecimento por termos chegado sãos e inteiros. E a casa. Nossa! A casa 195! Nunca imaginei que rever uma casa de veraneio fosse me tocar tanto. Senti tanto a presença dela quando entrei naquele pátio, que até o carro engasgou, apagou. Parecia Bere me dizendo: "Péraí! Vai devagar! Estou voltando! Quero rever tudo isto." - E eu parei. Num rompante, como para me calar, virei a chave novamente, o carro roncou de novo, mas logo em seguida desliguei o motor, rendido pela cena. Desci do carro, olhei para fora do pátio, bem em frente, a mesma loja de conveniências ainda estava ali. Onde no ano passado ela tantas vezes foi comprar picolé depois do almoço. Olhei para aquelas janelas verdes da casa de veraneio, de onde ela tantas vezes me abanou no ano passado quando eu estava cochilando embaixo da amendoeira, que meu coração se apertou tanto, a ponto de me encher os olhos de lágrimas. Ainda bem que filhos e cunhada não viram, pois não queria que suas férias fossem feitas de lembranças emocionantes e de eu estragar sua alegria. Era um momento meu para Bere, nada mais. Só nosso, de emoção, de revisão.
   Entramos naquela casa, e literalmente vi Bere escolhendo o nosso quarto. Ano passado, olhando maliciosamente para mim ela disse cochichando: "Vidinha, aqui vai ser nosso paraíso por dez dias! Vou te querer tanto, que a praia nem vai te importar. Prometo!". - Entrei, fechei a porta, larguei a mala no chão, sentei na cama e chorei mais uma vez. Muito. Pois fôra realmente o nosso paraíso. Aquele quarto nos trouxe momentos de tantas realizações, nos amamos tanto e intensamente, que nossa vida até parecia ter um recomeço. Optei por pegar este mesmo quarto, e quando fui deitar de noite, a sensação que tive foi de que aquele quarto tinha sido demolido durante aquele ano, para apagar todos os traços de Bere, pois nem dormindo abraçado ao seu travesseiro consegui sentir sua presença. Maldisse minha sensibilidade. Coração sufocado, lembranças rolando, momentos vividos ali, naquele mesmo ambiente, tudo voltou como se fosse hoje. Mas só sem ela. Chorei muito. Muito mesmo. Do tipo minguado, doente. Ainda bem que tinha o ventilador com seu barulho monótono a varrer meu corpo e a preencher o espaço com seu ruído, pois assim pude soltar o choro sem conter, e ninguém ouvir. Sabe o que é construir um mundo cheio de encantos e depois de um ano voltar lá e ver ele do mesmo jeito, nada mudado mas pela pessoa mais importante faltando, sentí-lo destruído, sem sobrar nada? Assim eu me senti. Mesmo estando tudo de pé, vi tudo destruído, pois Bere não estava comigo. "Meu tudo" não estava mais comigo. Mas eu senti que tinha que reviver aquilo. ...O guarda-roupas antigo, com uma gaveta vazia, sem os biquínis dela e o cabideiro sem nenhum vestido, o gaveteirinho sem seus braceletes e brincos, o criado mudo sem seus cremes e perfumes e o espaço no canto do quarto onde no ano passado estava sua mala, agora, vazio. E eu, mais vazio ainda no meio deste ambiente completamente deixado de lado.
   Naquele dia, antes, de tardezinha, resolvemos ir até o mar e conhecer a praia. Melhor, conhecer de novo. Meu cunhado o Vani e a irmã da Bere, a Lete, estavam curiosos para verem aquela enseada maravilhosa de Meia Praia no anoitecer. E nós fomos até lá.  Nossa, quando chegamos lá, aquele nó cerrado, sufocante tomou conta de mim mais uma vez, assim que senti o vento do mar e seu cheiro. Então eu não pude me conter. A sorte é que todos eles foram até a água para sentir sua temperatura, e eu fiquei na orla com minha saudade da ausência de Bere. Faltou ela ali segurando minha mão e me encarando com desejo. Lembrei de Bere, com ela ali, no mesmo lugar, com ela maravilhada há um ano atrás dizendo: "Delíciaaaa!" - E o marzão gigante no seu doce balanço batizando os nossos pés com sua água limpa. Olhei para as luzes de Itapema que já estavam acesas, olhei para Porto Belo no lado contrário com suas luzes a iniciar a noite e pensei no que ela falou, parada exatamente no mesmo lugar, na mesma hora, no ano passado: "Somos privilegiados em podermos assistir isto tudo. Queria muito que todos pudessem assistir, não só nós! Isto é impagável."
  E eu chorei. Chorei mais uma vez, contido, me sentindo abandonado, distante de todos, sozinho, sem a mãozinha dela me segurando, de unhas feitas, aquela doce e delicada mão. Me senti um miserável. Não que não tivesse companhia. Por sinal, muito bacana. Amo meus filhos, meu cunhado, minha cunhada. Mas, por sentir a falta da companhia da pessoa mais importante de minha vida, que queria tanto reviver tudo isto e não alcançou, a minha Bere. E isto, por incrível que pareça, cobra de nosso interior esta posição. O compromisso. De reviver, de revisão. Por isso que voltei à Itapema. Porque quis reverenciar o desejo de Bere em reviver tudo isto, mesmo sabendo que teria difuculdades em lidar com meu sentimental. E tive. Muito, demais. Ainda estou. Férias sentimentais. Mas este chacoalhar com meus sentimentos foi muito mais intenso do que esperava. Porque o que para mim parecia ser o resgate de lembranças, todas boas, se mostrou o cobrar de sentimentos vividos e a espectativa de revida. Eu não esperava por isto. Como eu poderia imaginar que todo aquele ambiente fosse me cobrar tanto a ausência dela? E isto foi muito forte, indescritível. Então, cada abrida de geladeira, freezer, microondas, cada prato que pegava, ou talher que tirasse da gaveta, tinha a mão de Bere. Nossa, foi tudo muito marcante! Bere estava inserida naquele ambiente. E olhar para aquela mesa na cozinha, com os talheres colocados, toalha de pano lá de casa colocada na mesa, "Porque esta realmente era limpa," - como ela dizia. Aquela cadeira vazia na ponta da mesa onde ela sentava para tomar um cafezinho fez me sentir o descrever de uma história sem ponto final. Ela partiu antes.
   Mas esta volta marcante não estragou minhas férias. Até as transformou em algo mais doce, um complemento de meu mundo sem Bere. Só que de noite, na hora de ir dormir, sua falta foi muito profunda, pois ela não me mostrou seu bronzeado, a marquinha do biquini, seu sorriso e seu desejo em viver mais uma noite ao meu lado dormindo abraçada ou de conchinha. E o calor sufocante de Itapema e o carinho do ventilador a varrer nossos corpos, enquanto a cortina com estampa de rosas silvestres balançava com o vai-vém do ventilador. Bere fez muita falta, senti na pele tudo isto. Queria tanto mais uma vez ao menos ter dormido com minha mão em sua cintura e com ela a engrolar frases desconhecidas, selando nosso amor. Mas isto não aconteceu. Uma volta de desafio. Que depois de cumprido me deixa mais forte e sereno, pois realizei mais um desejo dela: a de veranear na mesma casa do ano passado em Itapema.

 Vista do pátio interno da casa 195

Preparados para jantar e depois dar uma banda pelas lojinhas de Itapema

Depois do Jantar, comprinhas. Bere adorava. Um presente para cada amiga.

 Na praia de Meia Praia em Fevereiro de 2013