o Baque
Férias sempre são sinônimo de descanso, coisas diferentes, vida diferente, acontecimentos diferentes. Tudo remete a um mundo que se cria na imaginação, o qual vai fazer os dias de lazer se transformarem em fotos, lembranças e momentos que, somados aos nossos dias de trabalho e labuta, formam nossa história. E foi isto que imaginei para os meus filhos retornando a Itapema, onde veraneamos no ano passado, quando Bere mostrou o desejo em retornar. Mas foi tudo muito diferente do que eu havia protagonizado, pois, apesar de minha fidelidade ao seu pedido, quando vi a casa, o quarto e a mobília, tudo mexeu com meu sentimental. Afinal, ano passado vivemos ali momentos indescritíveis.
No segundo dia, de manhã, quando fomos ao mar já senti aquele nó incômodo em minha garganta pedindo passagem, mas pensei que quando fosse sentar em frente ao mar na orla, vendo aquela maravilhosa paisagem, tudo mudaria. Mas não mudou. Foi pior. Aquela repetição de ondas brancas e doces se quebrando na areia me remeteram a dois mil e treze. Onde Bere ficou comigo e nosso veraneio foi marcado por todos estes ruídos. Disfarcei meu choro na frente dos filhos e cunhados, mas me senti muito só. Apesar de todas as pessoas, eu estava só. Consegui dominar meus sentimentos entrando na conversa animada de minha turma, argumentando, rindo com eles por fora e chorando por dentro. No meu interior, o mar, com seu burburinho cantava a melodia da lembrança de bons momentos do passado, que não voltariam. E esta melodia machucou. Pois a companhia mais importante para completar estes momentos, Bere, não mais sentava do meu lado embaixo do guarda-sol, com seu cheiro de bronzeador, com sua saída de praia branca, de renda, pendurada dentro das barbatanas do guarda-sol, com seu doce e negro olhar a me fitar pedindo para passar bronzeador nas costas. E eu reclamar da meleca que isto dava nas mãos e ela docemente me responder: "Trouxe junto uma garrafinha de água e uma toalha. É só lavar que sai." - E tantas, tantas, mais tantas outras lembranças. Mas contive o choro me distraindo, adulando crianças que brincavam ali perto, conversando.
Mas no dia seguinte aconteceu. Não me contive. Fomos ao supermercado comprar os mantimentos para nosso almoço, coisas que também faltavam na casa. Quando fui na fruteira pegar um pé de rúcula, dei de cara com uma senhora de meia idade de lenço na cabeça, sem sobrancelhas, sem cílios, em tratamento quimioterápico, escolhendo também rúcula. Puxamos juntos o mesmo maço. Ela me olhou profundamente, eu olhei para ela. Senti na hora um desconforto sem igual, e cedi dizendo com um nó na garganta: "Pode levar, eu pego outro." - Ela sorriu, agradeceu puxando o maço, respingando meus pés com as raízes que estavam na bandeja com água, e foi embora. Foi um choque! Um baque! Então me voltou um filme inteiro na mente. Lembrei de toda nossa luta do ano passado, onde Bere também ficou assim sem cabelos em seu tratamento, e do desejo dela de voltar à Itapema, fazer compras no mesmo supermercado Koch, comprar também um maço de rúcula, e quem sabe neste ano, se tivesse sobrevivido estaria com a mesma aparência da senhora que vi na fruteira. Já travei uma luta interna dentro do supermercado para não chorar. Estava emocionalmente abalado. Fui ler rótulos de vinho para saber sua procedência para me distrair. Fui alinhar abobrinhas na fruteira e escolher tomates. Mas foi muito marcante. Uma mexida, chacoalhada, que eu não esperava e que involuntariamente me dominou: se instalou e chacoalhou meu mundo. Meu chão simplesmente desapareceu. Aquela cena da senhora de lenço trouxe de volta todo o nosso caminho de lutas e esforços no tratamento de Bere do ano passado. E graças a ele, ao menos prolongamos alguns meses a sobrevida dela. Caso o destino fosse generoso conosco, Bere poderia estar ali, daquele jeito, na mesma fruteira, puxando aquele mesmo maço de rúcula, sorrindo com a mesma cortesia para um estranho que estivesse cedendo este maço a ela. E a imagem do tratamento, do sofrimento, da luta que aquela mulher de lenço me trouxe de volta me aniquilou.
Depois desta cena eu fiquei todo errado. Até cozinhei para todos que estavam comigo no veraneio, molho de carne moída com massa. E claro, salada de rúcula, da qual não comi mesmo gostando muito desta salada. Cozinhei para me distrair, mas sem prazer. Porque não tinha vontade de fazer comida. Muito menos de comer. O cheiro da comida sendo preparada me repugnou. Quase vomitei. Eu somente mais via Bere na minha frente com o lenço na cabeça, sorrindo e agradecendo as férias maravilhosas em Itapema e por ter comprado um maço de rúcula para ela. Almoçamos. Eu empurrei uma colherada de comida através do nó da garganta, desceu difícil. Disfarcei remexendo meu prato de comida para os outros não notarem minha falta de apetite, mexendo com o garfo o que havia sobrado lá. Tentei tomar uma cerveja mas botei fora com o pretexto de que estava quente, mas ela na realidade não desceu. O nó segurou. E a turma animada ao meu redor, elogiando o sabor da carne. E eu repugnado, disfarçava o sorriso para acompanhar. Meu cunhado disse para eu pegar outra cerveja, mais atrás na gaveta do congelador, que certamente estaria mais gelada. E eu, na obrigação de disfarçar tive que seguir sua sugestão. Fui, peguei uma lata, estava muito gelada. Abri, servi um gole no copo e empurrei com força para a boca para atravessar o nó da garganta. Deu certo. Levei todo o tempo da arrumação da cozinha, de lavar louça que minha cunhada encabeçou e filhos ajudaram, para empurrar aquela lata de cerveja goela abaixo e não dar na vista. Fui no banheiro fazer a higiene bucal e o pessoal aos poucos foi se dissipando, cada qual indo pro seu quarto descansar, relaxar. Eu não. Estava tenso por demais. Aquela imagem da mulher de lenço não saía de mim. Tinha que fazer algo para tirar de dentro de mim este abafar de sentimentos que estava me abatendo e me dominando. Então, como pretexto peguei o notebook, botei em sua maletinha, peguei um guarda-sol e uma cadeira, morto de vontade de chorar, e disse a todos que iria na beira da praia escrever. Mas, este era o pretexto para eu poder ir sozinho e chorar sozinho. Não queria estragar o veraneio de ninguém. Mas eu sabia que o 'note' não tem luminosidade para se enxergar na praia. A claridade não permite escrever. Foi só pretexto.
Quando cheguei lá, pedi uma mesinha no bar da orla, levei até um ponto de areia livre, armei o guarda-sol e sentei embaixo. O sol estava literalmente fritando as pessoas com sua intensidade. E uma leve brisa do mar amainava este calor embaixo do guarda sol. Poucos banhistas brincavam e riam ali perto dentro da água. Não tinha muita gente. Na minha frente, uma mesinha abandonada com um coco deitado. Ainda tinha o canudinho de onde foi tomada sua água. Do meu lado esquerdo, um casal de argentinos com uma menina de seus dez anos. Do outro lado, gente distante, uns dez metros ou mais. Coloquei a pastinha do notebook sobre a mesinha. Meu coração estava explodindo, querendo sair até nos braços. Tirei o óculos de sol de cima do boné que estava usando, coloquei sobre os olhos, fechei-os e deixei a sinfonia das ondas do mar me levar. Uma melodia que a cada quebrada de onda forma acordes diferentes. E elas me levaram. No vai e vem das brumas se dissipando na areia, no meio daquele ruído, a voz de Bere estava faltando. A companhia de Bere estava faltando. O cheiro do bronzeador de Bere estava faltando. A cadeira de Bere ao meu lado estava faltando. Discretamente chorei. Procurando ser contido. Disfarçado. As lágrimas corriam soltas, desavisadas, como se fosse para depurar lentamente toda a minha saudade dela e daqueles momentos. Os quinze guardanapos de papel que havia trazido para enxugar meu choro, que eram para durar a tarde toda, em meia hora se consumiram enxarcados. De repente, vi com o canto do olho marejado a menina portenha me encarando, e ela foi correndo cochichar com sua mãe e seu pai. Daqui a pouco, a jovem senhora argentina acocorou na minha frente e disse: "¿pasó algo? ... ¡Usted está llorando! ¿Necesitas ayuda? ..." - E eu respondi: "Solamente estoy triste. ¡Déjame! Necessito llorar." - Ela assentiu com a cabeça, não falou nada, levantou, pegou sua menina pela mão, que a esta altura também já tinha chegado ali perto, e voltou para junto do marido. E já os três foram ao mar, certamente para respeitar meu momento e não atrapalharem minha depuração. E eu chorei. Muito. Discretamente. Mais de uma hora. Ainda bem que tinha levado uma toalha de rosto na bolsa, que me amparou as lágrimas e a corisa. O vai-e-vem das ondas, aquele som do mar, o vento salgadinho, o cheiro de maresia, o farfalhar dos guarda-sóis, crianças correndo e jogando, falando em português e em espanhol, gritos e o som monótono dos vendedores da orla, tudo me remeteu à Bere. E a falta dela do meu lado embaixo do guarda-sol. Tudo. Não tive jeito de separar as coisas, pois elas se somaram em vez de se diluírem. ...Depois que o casal argentino voltou do mar e sentou do meu lado, me encarando com preocupação, procurei me ater a outros pensamentos e consegui dominar minhas remiscências, pensando no quanto de bem isto tudo havia feito a ela no ano passado. E parei de chorar. Respirei fundo, desarmei acampamento e voltei para casa. Com olheiras, cara de choro, mas o tributo merecido feito a este ser maravilhoso que tantas orlas compartilhou comigo com sua companhia e seu doce modo de ser, a minha Bere. No fundo a sinfonia das ondas e no ar o inconfundível cheiro de mar.
A imagem fala por si só. Do mesmo jeito como estava me sentindo, mesmo jeito a visão: um vazio sem tamanho!
Bere e o Lenço: imagem marcante!
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