Felipe e Cecília
Felipe e Cecília já eram casados há mais de cinquenta anos. Ele tinha oitenta e oito anos e ela oitenta e cinco. Podia se ver nas feições de seus rostos o quanto de trabalho pesado haviam realizado durante seus anos de existência. Linhas de rugas, mãos castigadas e marcas de lesões cobriam seus corpos.
Agora, aposentados, gastavam seu tempo durante o dia, no inverno, defronte ao fogão à lenha. Ele sentado no banco que era a caixa de lenha e ela fazendo seu tricô, sentada na cadeira de balanço. Ela então, só levantava vez ou outra para mexer a comida nas panelas ou para fazer pipi já que a incontinência estava ameaçando há tempo se instalar em seu organismo, de onde havia parido sete filhos.
Felipe, volta e meia levantava da caixa de lenha, abria a tampa e tirava uma acha para alimentar o fogão que brandia reluzente num calor abrasador. E toda vez que levantava, vinha a reclamação:
- Droga! Este fogão devora a lenha tão ligeiro que mal me posso sentar. Logo se nota que o fogão não presta, ou a lenha é ruim, não é Cecília?
Cecília, sem levantar os olhos de seu tricô responde caçoando:
- Ora, ora Felipe! Sabes muito bem que esta lenha de pinus queima rápida. Já foi o tempo em que se podia cortar os pés de maricás e ter uma lenha de verdade. Agora é este tipo de lenha que podemos usar. Então não reclame!
Uma pausa se fez, enquanto eles pensavam sobre a lenha que se consumia no fogão. De repente, Felipe perguntou:
- Cecília! ...você sabe, estamos lentamente chegando ao fim de nossas vidas. ...Já somos casados há tantos anos, mais de cinquenta, e até hoje nosso relacionamento foi sempre o melhor possível.
- Sim, sim! - Retrucou ela. - Criamos nossos filhos, ajudamos a criar os netos e agora nossos bisnetos alegram nossos dias.
Felipe continuou:
- Cecília, como falei, estamos lentamente caminhando para nosso fim. Mas, antes que isto verdadeiramente ocorra, gostaria de saber algo de você com toda a sua sinceridade.
- Claro Felipe! Como sempre, sinceros! Fale!
- Cecília, nestes anos todos, por acaso me traiu com outro homem?
- Felipe! - Cecília levantou os olhos do seu trabalho, parou de tricotar, e encarando o marido continuou. - Como estamos sendo sinceros e autênticos, confesso que te traí uma vez.
Felipe começou a remexer nervoso sobre a caixa de lenha, mas ficou apreensivo para saber o que ela falaria:
- Se lembra daquela vez, quando estávamos indo para a praia e nosso carrinho velho, o Simca Tufão estragou e precisamos de um mecânico?
- Claro que lembro. Mas fazem muitos anos!
- Então! ...Foste atrás de mecânico e enquanto não voltavas, um mecânico passou por nosso carro, mostrei as pernas para ele e ele parou. Consertou nosso carro e eu, como não tinha dinheiro, paguei ele com uma transa! ...Me perdoa, certo? Mas foi só desta vez. Fiz para te ajudar!
- Ora, ora Cecília, a verdade dói. Mas, claro, perdoo. Fazem tantos anos.
- Teve só mais uma segunda vez, confesso!
- Cecília?!? Uma segunda vez???
- Sim. Aquela vez em que fomos à bancarrota e você foi tentar um empréstimo bancário e o gerente do banco não liberou, lembra? Então depois eu fui e consegui.
- Não acredito que você transou com o Clemente, meu amigo, gerente do banco?
- Sim Felipe. Mas foi para salvar nosso negócio! ...E teve uma terceira vez...
- Eu não acredito, Cecília! Mas, certamente foi para me ajudar. Pode contar.
- Se lembra aquela vez em que foi candidato a vereador?
- Sim, lembro. Mas já fazem muitos anos! Mas o que você e sua traição tem a ver com isso?
- He, he, Felipe! Por que achas que fizeste trezentos e dezoito votos?