quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Pequenas Mentiras, Meias Verdades: Felipe e Cecília



Felipe e Cecília

   Felipe e Cecília já eram casados há mais de cinquenta anos. Ele tinha oitenta e oito anos e ela oitenta e cinco. Podia se ver nas feições de seus rostos o quanto de trabalho pesado haviam realizado durante seus anos de existência. Linhas de rugas, mãos castigadas e marcas de lesões cobriam seus corpos.
   Agora, aposentados, gastavam seu tempo durante o dia, no inverno, defronte ao fogão à lenha. Ele sentado no banco que era a caixa de lenha e ela fazendo seu tricô, sentada na cadeira de balanço. Ela então, só levantava vez ou outra para mexer a comida nas panelas ou para fazer pipi já que a incontinência estava ameaçando há tempo se instalar em seu organismo, de onde havia parido sete filhos.
   Felipe, volta e meia levantava da caixa de lenha, abria a tampa e tirava uma acha para alimentar o fogão que brandia reluzente num calor abrasador. E toda vez que levantava, vinha a reclamação:
   - Droga! Este fogão devora a lenha tão ligeiro que mal me posso sentar. Logo se nota que o fogão não presta, ou a lenha é ruim, não é Cecília?
   Cecília, sem levantar os olhos de seu tricô responde caçoando:
   - Ora, ora Felipe! Sabes muito bem que esta lenha de pinus queima rápida. Já foi o tempo em que se podia cortar os pés de maricás e ter uma lenha de verdade. Agora é este tipo de lenha que podemos usar. Então não reclame!
   Uma pausa se fez, enquanto eles pensavam sobre a lenha que se consumia no fogão. De repente, Felipe perguntou:
   - Cecília! ...você sabe, estamos lentamente chegando ao fim de nossas vidas. ...Já somos casados há tantos anos, mais de cinquenta, e até hoje nosso relacionamento foi sempre o melhor possível.
   - Sim, sim! - Retrucou ela. - Criamos nossos filhos, ajudamos a criar os netos e agora nossos bisnetos alegram nossos dias.
   Felipe continuou:
   - Cecília, como falei, estamos lentamente caminhando para nosso fim. Mas, antes que isto verdadeiramente ocorra, gostaria de saber algo de você com toda a sua sinceridade.
   - Claro Felipe! Como sempre, sinceros! Fale!
   - Cecília, nestes anos todos, por acaso me traiu com outro homem?
   - Felipe! - Cecília levantou os olhos do seu trabalho, parou de tricotar, e encarando o marido continuou. - Como estamos sendo sinceros e autênticos, confesso que te traí uma vez. 
   Felipe começou a remexer nervoso sobre a caixa de lenha, mas ficou apreensivo para saber o que ela falaria:
   - Se lembra daquela vez, quando estávamos indo para a praia e nosso carrinho velho, o Simca Tufão estragou e precisamos de um mecânico?
   - Claro que lembro. Mas fazem muitos anos!
   - Então! ...Foste atrás de mecânico e enquanto não voltavas, um mecânico passou por nosso carro, mostrei as pernas para ele e ele parou. Consertou nosso carro e eu, como não tinha dinheiro, paguei ele com uma transa! ...Me perdoa, certo? Mas foi só desta vez. Fiz para te ajudar!
   - Ora, ora Cecília, a verdade dói. Mas, claro, perdoo. Fazem tantos anos.
   - Teve só mais uma segunda vez, confesso!
   - Cecília?!? Uma segunda vez???
   - Sim. Aquela vez em que fomos à bancarrota e você foi tentar um empréstimo bancário e o gerente do banco não liberou, lembra? Então depois eu fui e consegui.
   - Não acredito que você transou com o Clemente, meu amigo, gerente do banco?
   - Sim Felipe. Mas foi para salvar nosso negócio! ...E teve uma terceira vez...
   - Eu não acredito, Cecília! Mas, certamente foi para me ajudar. Pode contar.
   - Se lembra aquela vez em que foi candidato a vereador?
   - Sim, lembro. Mas já fazem muitos anos! Mas o que você e sua traição tem a ver com isso?
   - He, he, Felipe! Por que achas que fizeste trezentos e dezoito votos?

   

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Hora da Faxina: O Ponto Certo do Sal


 O Ponto Certo do Sal.

   Todos que me conhecem sabem que eu adoro cozinhar. Melhor, amo cozinhar. Sendo prato salgado, deixa comigo! Como não gosto de doce, doçuras, não sou prendado em preparar pratos com açúcar. E admiro as pessoas que fazem pratos doces com harmonia entre os sabores para que seja agradável ao paladar, sem exagerar no açúcar.
   Aprendi a cozinhar em fogão à lenha com minha mãe quando eu tinha onze anos. E o primeiro prato que aprendi a fazer foi arroz. É, sim, foi arroz! Ele por si só tem uma ciência exata para deixá-lo cozido e ao mesmo tempo solto. Mas se quiser que seja tipo 'unidos venceremos' ou empapado, também sei fazer. Mas, voltando ao arroz solto, não tem segredo. O importante é fritá-lo até ficar branco. Minha mãe me ensinou isto. Como??? Por acaso o arroz não é branco? Não. Parece branco mas é cor de neblina. E quando se põe a fritar mexendo bem e sempre, ele vai ficando cada vez mais branco. Faça a experiência se não acredita. Depois me conta!
   Quando eu comecei a cozinhar, o que mais me afligia era o ponto do sal na comida. Me criei numa família de uso de mais temperos e cheiros para apurar o sabor, deixando sempre o sal para o ponto certo, sem ser realçado dentro do prato. E este é o maior segredo de uma comida saborosa: fazê-la ter sabor sem aparecer o gosto do sal, ou sem ser salgada. 
   Sempre se falou do quanto ele pode fazer mal para o organismo quando em excesso. Aliás, muitos estudiosos afirmam que a ruína do mundo, do ser humano será por causa dos quatro pós brancos: sal, açúcar, farinha e cocaína. Sendo assim, um dente de alho a mais num molho pode suprimir uma boa pitada de sal. Uma cebola bem frita libera um sabor amargo que substitui boa quantidade de sal em muitos pratos onde se pode usar esta maneira de fazer. Uso muito fritar cebola, soltar com água, refritar, até se tornar um creme marrom muito saboroso e amargo, que misturado no molho, no arroz, na massa, carreteiro e tantos outros pratos substitui uma parte do sal.
   Quando eu comecei a cozinhar, por causa da falta de experiência em salgar a comida no ponto me deixava aflito. Então, para não salgar demais, eu ia colocando aos poucos de ponta de colher o sal, experimentando o ponto, até que achava bom. Só que isto me afligia. Eu queria fazer como a mãe fazia: pegar com a mão uma porção de sal, atirar na panela e 'voilá'! Sal no ponto. Sempre! A mãe tinha uma mão tão boa para fazer isto que a invejava por ter tanta prática assim.
   Comecei então, justamente no arroz para aprender o ponto do sal. Como quase todo dia eram cozidas duas xícaras de arroz, fui treinando. E, em quase um ano de treino peguei o jeito do quanto era o sal para esta quantidade de arroz. Bom, a partir de então, para este prato dispensei a colher medida. E os anos foram passando, aos poucos fui pegando o jeito entre quantidade do conteúdo da panela e quantidade de sal. Hoje acerto todos os pratos com a quantidade certa de sal, somente com o 'feeling' da mão e o tato dos dedos. Seja panela para uma pessoa ou para trinta pessoas. Então, quando tem pessoas para jantar ou almoçar conosco e acompanham minha lida na cozinha, ficam intrigados com um detalhe: eu ponho a medida de sal na panela e geralmente acrescento uma pitada, pouca coisa a mais. E lógico, a pergunta vem em seguida:
   - Por que botas esta pitada a mais depois de por o sal?
   E minha resposta:
   - Meus filhos gostam de comida mais salgada. Então, quando eram pequenos eu mostrava que botava o sal suficiente para aquele prato, e que a pitada a mais era para agradar o paladar deles.
   Mas é óbvio que esta pitada estava descontada do sal principal. Me acostumei a isto e geralmente 'batizo' a comida com esta pitada a mais.

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Hora da Faxina: Histórias do Padre Feltz 1



Histórias do Padre Felts 1

   O padre Feltz era uma das mais interessantes figuras que existiram antigamente. Era um homem gordo e baixo. Acho que ele pesava mais de cem quilos. Sua desgastada batina preta por sobre aquele corpo gordo dava a impressão de que ele era um sino vivo e suas pernas, o badalo.
   Conhecido em todos os cantos, todos sabiam que ele gostava muito de galinhada, então preparar a panela com uma galinha só para ele era muito pouco para um almoço.
   Ele era um padre santo, devoto, mas comilão. Também ninguém pode ser cem por cento perfeito. Pequenos defeitos sempre podem aparecer. A vida do padre Feltz era dividida entre rezar e comer. E estes dois caminhos se alinhavam.
   Nas manhãs de domingo ele tinha que ir longe montado em seu velho burro para atender as capelas da paróquia. E a última que visitava ficava muito longe. Assim, ele sempre se arrumava o almoço na viagem de volta. Tinha trinta e poucas famílias morando no trajeto que ele fazia. Casas que ficavam distantes porque era colônia e todos tinham extensões grandes de terra que cultivavam.
   Todos conheciam o seu sistema que era almoçar uma galinhada na casa de uma das famílias, em forma de rodízio. Mas, em época de colheita, as pessoas trabalhavam de segunda a segunda e não queriam saber se estavam na vez de alimentar o padre. Assim, aconteceu num domingo desses de colheita, que o padre chegou na casa do Erwin para almoçar, pois era a sua vez da rodada, mas ao chegar, ele só viu uma garota adolescente correndo por ali. Ele chamou a garota:
   - Garota, vem cá!
   A garota parou de brincar e veio correndo até ele, que estava no portão da casa.
   - Sim, o que você quer?
   - Escuta... o papai não está por aí?
   Disse o padre apreensivo. Então, ela olhou ao redor de si respondendo sapeca:
   - Não! Por que?
   - Deixa assim! ...Mas, eu gostaria de tomar algo ...poderia eu te pedir isto?
   - Sim! - Respondeu ela. Que quer beber?
   - Água minha filha, água!
   A menina foi para dentro de casa e dez minutos depois voltou com uma panela cheia guarapa. Alcançou-a para o padre e disse:
   - Eu trouxe guarapa para o senhor beber porque achei que iria agradar mais do que água. Isto te serve?
   - Óh, sim! Me agrada mais do que água. Muito obrigado garota! Que tão gentil você é!
   - Pode tomar tanto quanto quiser, padre. Ainda tem um tanque cheio. - Disse a garota. O padre, enquanto bebia disse:
   - É bonito que você seja tão espontânea! E, obrigado novamente pela gentileza.
   A garota desatou a rir e enquanto ria disse, enquanto o padre entornava a guarapa goela abaixo:
   - Não faz mal que tu bebas quanto desejares. ...Nós do mesmo não vamos mais tomar esta guarapa porque ontem de noite morreu afogado dentro dela um gambá.
   De supetão o padre parou de beber e sentiu o sangue subindo, ficando vermelho de aflição e raiva misturado pela atitude da garota. Então disse:
   - Sua pivete! Como me apronta essa? To com vontade de atirar esta panela na tua cara para tirar este deboche nojento que estás fazendo para um servo de Deus idoso.
   A garota começou a rir em altas gargalhadas, deixando o padre ainda mais irado. E ela falou:
   - Não, não! Não faça isso. Se me atirar ela na cara vai cair no chão e amassar. E minha vó não iria gostar de mijar neste troço amassado que ela usa pra pinico. 

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Pequenas Mentiras, Meias Verdades: Histórias de Músicos 7



Histórias de Músicos 7

Não existe nada mais belo no mundo do que ser músico. Aqueles pequenos contratempos que a gente tem como não poder olhar aquele filme na televisão sábado à noite, ou aquele casamento de parente que a gente perde, nada é a grandeza de se tocar um baile.
Quem é músico não tem fim-de-semana e muitas vezes senta para almoçar domingos às duas da tarde.
Ser músico é comer muitas novidades e passar muitas novidades com os colegas que conosco tocam. E também é se esmerar por várias noites para aprender músicas novas. Uma nova música muitas vezes toma até três horas do músico até ele aprender a tocá-la.
Às vezes então acontece que em cada três ou quatro encontros não se aprende a música. Um músico que erra um detalhe, estraga toda a música. Então, ensaiar tudo de novo.
Alguns músicos captam com facilidade uma nova música, então, quando ela já foi ensaiada duas ou três vezes,  já a sabem de cor.
Mas, os lugares que a gente conhece como músico é algo interessante. Falando francamente, se a gente nunca tivesse sido músico, jamais se conheceria estes lugares.
Existem pessoas tão bacanas nestes lugares escondidos, que a gente vê que a natureza semeou este tipo de pessoas por todos os cantos. O mesmo é para as belas garotas que a gente aprende a conhecer lá. Também, sim,  os homens feios.
Entre todos os lugares e todas as pessoas, uma coisa sempre é certa: as pessoas fazem todos os agrados para os músicos. Para eles nada pode faltar: desde a comida até a roupa no banheiro, tudo deve ser ao serviço daqueles que em breve seriam os reis da festa.
Em alguns lugares onde tocamos os garçons achavam que tinham que nos servir muito bem com cerveja ou cachaça, então traziam aos montes, tanto que às vezes alguns se passavam na bebida.
Nós tínhamos uma banda boa. Os mesmos músicos se mantiveram juntos durante oito anos e assim conseguimos uma grande harmonia entre nós, músicos. Os componentes eram pessoas bacanas e a maioria deles eram colonos que no fim-de-semana faziam música.
Mas um, o Guido, nosso pistonista, ele era virado. Melhor dito, era muito virado. Sua qualidade como músico era muito grande. Tanto, que várias músicas ele solava sozinho. 
Sua simplicidade muitas vezes nos deixava ufanos porque ele, um dos melhores músicos, nunca por si só queria se destacar. E ele tocava algumas músicas como se fossem as originais, de tão perfeito que era seu trabalho. Nunca tivera uma aula teórica de música sequer, e quase nem sabia assinar seu nome.
Mas. ma vida, ele era muito virado. Quando ele tinha na sua frente alguma bela garota, ele estragava a música soprando errado, tanto que tudo saía errado. E ele vermelhava de alto a baixo. Assim, ele de vez em quando nos aprontava alguma que parecia inacreditável.
Um dia, tocamos no salão que era a igreja velha em Harmonia. Tudo estava pronto, bem instalado, tínhamos comido muito bem, uniformizados e prontos para começar o baile. O salão estava lotado até o gogó e não tinha mais espaço vago. Subimos no palco, cada um no seu lugar, e exatamente às onze horas o maestro da banda começou a contagem regressiva para começar:
- Um, dois , três, quatro... Respiramos fundo para começar,  então o Guido se virou e gritou para o maestro:
- Espera! Espera! ...Miro, espera um pouquinho!
Miro, o maestro, nos assinalou que  esperássemos e então ele perguntou:
- Ué Guido, o que aconteceu?
Ele respondeu na frente de todo mundo que aguardava pacienciosamente para iniciar a dança:
- Não posso tocar, Miro! Esqueci o bocal do pistom no carro. 
Tivemos que literalmente iniciar o baile sem o Guido, o qual tinha esquecido o bocal do seu pistom no bolso do casaco lá fora dentro do carro.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Hora da Faxina: Vó Gertrudis


(vó Gertrudis é a de vestido preto com detalhes)

   Vó Gertrudis

  O nome de minha vó por parte de pai era Gertrudis. Nome estranho para quem era descendente alemã e preservava esta linhagem, pois o certo seria ter o nome de Gertrud. Foi a única avó que conheci e tive a felicidade da sua convivência conosco enquanto crescíamos, numa infância cheia de brincadeiras, mas também de compromissos. O pai e a mãe a chamavam de Gétrud. Ela era uma pessoa de atitudes muito diferentes, dependendo da ocasião ou do motivo. 
   Quando nossos amigos vinham em casa para brincar e ela acordava com a nossa algazarra, pegava uma caneca de alumínio que ela levava para o quarto com água para tomar, a enchia de água e atirava janela afora tentando acertar a gurizada. Como já era idosa, dificilmente acertava alguém. E a gente se divertia com os ranços dela xingando. Tinha um menino vizinho nosso que era o único menino que tinha trânsito livre em casa a hora que quisesse. Ele era o protegido dela.
   Quando o pai comprou a primeira televisão preto e branco em 1967, a vó ficou estarrecida. Ela dizia que aquilo era coisa do demônio e que ela jamais iria assistir. Quando ia para o seu quarto passava com as costas viradas para a TV. Mas, quando soube que nas manhãs de domingo era transmitida a missa ao vivo, começou a tomar conta do aparelho nestas manhãs e ninguém podia sequer cochichar.
   Vó Gertrudis me ensinou a ler o alemão gótico num livro enorme chamado Legende. Herdei ele. Ela tinha muita paciência para ensinar, legando este bem precioso a mim, onde até hoje em dia ainda consigo ler esta escrita alemã trabalhada.
   Dos seus ensinamentos muitas coisas poderiam ser ditas. Mas tem três que me marcaram. Ela dizia: "Cuidado com os homens que separam o cabelo com uma régua! Se eles têm tempo para isto, não vão tirar seu tempo para você." - Ou seja, ela queria dizer que se as pessoas tirassem muito tempo para cuidar de si todos os dias, muitas coisas para com as outras pessoas deixariam a desejar. Uma filosofia caseira que eu, com o passar dos anos consegui comprovar. Pois narcisistas nunca darão atenção a ninguém, a não ser a si mesmos. 
   Ela também dizia que o café para ser bom, tinha que ser tão quente que se fosse cuspir um gole num cachorro, tinha que fazê-lo perder o pelo. Ela adorava café quase fervendo. E na escassez de comida, quando as coisas apertavam, a mãe fazia um molho farto com meia dúzia de pedacinhos de carne boiando, só para dar o gosto. A gente como crianças, tinha vontade de repetir. Então a mãe dizia que era para não fazer isto, porque todos tinham o direito de pegar um pedaço de carne. Só a vó repetia. Então ela dizia enquanto pescava o pedaço de carne dentro do molho: "É, a gente não deve só comer o que é gostoso!"
   Durante o outono, meu pai comprava doze talhas de lenha que nós cortávamos no tamanho para o fogão à lenha. Para terem uma ideia da quantidade, uma talha de lenha equivale a cem pedaços de lenha de um metro de comprimento. Normalmente a vizinhança cortava esta lenha em três pedaços de trinta e três centímetros. Mas a vó tinha uma vareta de vinte e cinco centímetros e ficava sentada na frente do cavalete medindo cada corte para que os paus rendessem quatro peças.    Passávamos no contra-turno da escola o tempo todo cortando lenha com uma serra de arco, puxada por dois irmãos. Quando a gente mostrava cansaço ela xingava dizendo que tanto mais tempo demoraríamos para terminar de cortar aquela enorme pilha de lenha. E quando começávamos a rir do nada, ela achava que estávamos debochando, então batia com a varinha da medida da lenha em nossas mãos. 
   Mas havia a compensação. Quando a noite se anunciava, parávamos o trabalho para continuar no dia seguinte. Ela então nos levava todos até seu quarto, onde dentro do armário tinha um vidro com licor de ameixa que ela mesma fazia colocando as ameixas misturadas com cachaça. e dava uns golinhos para cada um saborear. Na época o mais velho tinha doze anos. E a gente se criou alegre, sem traumas, conquistando muitas coisas quando adultos. 
   Minha vó foi sempre muito ativa até vir a falecer aos 84 anos. Ela adorava cuidar de sua plantação de dálias que ficava do lado de casa, onde flores enormes das mais variadas cores proliferavam aparentando ser um tapete colorido.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

As Máximas de Bere - Pensamentos, Reflexões, Verdades


    Pensamentos de Bere que foram postos em cartas escritas há anos, ou mais recentes deixadas escritas em algumas pastas do seu notebook. Bere faleceu em setembro de 2013, mas deixou este legado maravilhoso de ideias que fazia sobre a vida, o dia a dia e o amor.



















Pequenas Mentiras, Meias Verdades - Carlos Hilgert e seu Cachorrinho



 Carlos Hilgert e seu Cachorrinho

   Harmonia sempre foi um lugar gostoso e idílico. Pessoas especiais, costumes germânicos e tradições de Kerbb, de família, de envolvimento social. As façanhas de tantas pessoas de lá que tinham seu jeito único de ser e que faziam a diferença naquela comunidade pequena que lutava unida pela melhora de seus dias e de seus descendentes.
   E como já falei numa outra oportunidade, dentre estas pessoas especiais algumas se destacavam por demais pelo tato que tinham em lidar com as pessoas, ou pela inteligência que as privilegiava podendo assim argumentar com mais propriedade e induzir as pessoas a acreditarem nas suas conclusões e pela genialidade em comentar situações onde a razão tentava mascarar a intuição.
   E neste texto retorno novamente à figura carismática de Carlos Hilgert, dono da rodoviária que ficava defronte ao salão de bailes que ele administrava juntamente com sua esposa Hilda e filhos. Carlos era inteligentíssimo, visionário, perfeccionista. Em tudo. Até no embalar das balas naquele papel de padaria que ele usava, ele tinha uma estratégia para fazer o pacotinho. Claro, éramos crianças e ele não queria que fôssemos perdendo nossas valiosas balinhas no caminho pelo pacotinho mal feito. Muitas vezes até se passava trabalho para abrir aquela trouxinha de papel, de tão bem feita que era. Apesar de elétrico, como era seu jeito de ser, tinha muita atenção para com as crianças.
   Mas um dia, estava ele sentado no banco que ficava do lado da porta do seu salão, onde as pessoas sentavam para esperar o ônibus, olhando o movimento, que não era tão intenso assim. E, enquanto ele estava lá ideando mil coisas, concentrado, passou o Paulo. Vendo-o tão sozinho no meio daquela tarde, sem ninguém no salão consumindo, Paulo disse:
   - Carlos! Você tem alguns momentos do dia que são tão solitários.
   - Verdade! - Respondeu Carlos. Paulo continuou:
   - Num momento destes seria bom ter a companhia de um cachorrinho. Ele iria te distrair, brincar contigo, sentar no teu colo, deixar com que fosses completamente envolvido por ele.
   - Não, nunca! - Disse categórico Carlos. Paulo insistiu:
   - Mas, por que? Já imaginou como seria bacana ter agora um cachorrinho contigo?
   E Carlos deu sua explicação:
   - Já! Ouça bem: imagina que eu vá ter um cachorrinho branco. Pequeno, como um poodle. Eu cuido dele como se fosse um filho. Dou banho deixando ele branquinho como um lençol, aparo os pelos, ele vive comigo pra lá e pra cá. Uma companhia e tanto. Dorme até nos pés da minha cama para de manhã me acordar faceiro.
   Paulo disse:
   - Viu só como seria bacana?
   - Espera! - Disse Carlos. - Ainda não terminei. ...Então, venho sentar esta hora aqui no banco na frente do salão para olhar o movimento e o cachorrinho fica do meu lado aqui no banco dormindo, me fazendo companhia. ...De repente, passa no outro lado da calçada o Antônio, voltando da roça, todo sujo e poeirento. Junto com ele vêm os dois cachorros pastor alemão que ele tem, cheios de pega-pega nos pelos, com tantas pulgas que até a cor deles fica diferente e com mosquinhas voando ao redor deles. ...De supetão meu cachorrinho acorda, vê os dois cachorrões passando no outro lado da rua. Ele pula do banco e vai correndo direto até os cachorrões. A primeira coisa que faz é chegar o focinho bem perto da bunda deles rodeada de mosquinhas para cheirar e meter a língua no rabo deles. Depois, volta todo faceiro, rabinho empinado, e vem sentar comigo, lambendo minhas mãos e meu rosto. Isto não me serve! Não quero cachorrinho!

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Hora da Faxina: A Manteiga



A Manteiga

   Antigamente as coisas eram bem diferentes das de hoje em dia.  A maioria das pessoas moravam na colônia e iam dormir com as galinhas e acordavam com os galos para passarem o dia na roça trabalhando. A alimentação deles era feita na própria roça, sendo muitas vezes o cardápio de pão com linguiça. Refeição mesmo era feita de noite, com um jantar bem preparado.
   Havia aquelas moças que saíam de casa e iam trabalhar na cidade grande como empregadas domésticas e babás. Algo que fazia com que elas pudessem seguir seus estudos e também adquirir práticas e costumes de gente da cidade como etiqueta e classe, e ainda o bom gosto em se vestir. E quando elas voltavam para o interior para visitar a família, as pessoas da comunidade ficavam vendo aquele jeito diferente de ser e comentavam entre si:
   - Esta já cagou no vaso. Agora ninguém mais vai aturar seu modo de ser.
   A expressão queria dizer que a garota tinha deixado de usar as capungas do interior para usar um banheiro decente. Mas o comentário das comadres era pejorativo.
   As pessoas mais importantes daquelas picadas eram o padre ou pastor e o professor.  As famílias os tinham como pessoas muito importantes, os quais eram dignos de admiração pelo estudo que possuíam, pelo grau de conhecimento que passavam. Poder então, convidar um dos dois para um almoço de domingo, ou um jantar especial, sempre era uma honra sem tamanho.
   A alimentação naquela época, no interior da colônia era controlada para que fosse o suficiente para suprir aa família durante o ano inteiro, principalmente no tempo da  escassês.  Mas numa visita destas ilustres pessoas, se permitiam o luxo de apresentar uma mesa bem farta.
   Foi o que aconteceu quando o professor Frederico foi convidado pea família Sommer para um jantar. Eles se esforçaram para juntarem o melhor de casa para lhe oferecer: pão de milho, ovos cozidos, manteiga, schmier de cana e um café bem mais forte do que o costumeiro naquela casa. Os filhos haviam sido recomendados para que moderassem naquele bolinho pequeno de manteiga feito com muito esforço a partir de uma porção de litros de leite que deixaram de ser comercializados.
   Chegou o dia do jantar. Na hora, depois de muita conversa sobre diversos assuntos, sentaram à mesa e depois de tudo posto, começaram a comer. A primeira coisa que o professor fez foi pegar uma fatia de pão e cobrir com uma generosa camada de manteiga, depois schmier. Os familiares ficaram se entreolhando, os filhos morrendo de vontade de copiar a atitude do professor, mas se contiveram.
   O jantar foi andando e a cada fatia de pão, o professor cobria mais e mais seu pão com manteiga. Até que os Sommer se entreolharam, pois os filhos estavam seguindo o comportamento dele, e a anfitriã falou:
   - Professor, isto é manteita!
   O professor engrolou um "aham" e continuou se servindo.
   Depois que quase a manteiga tinha terminado, e o professor se serviu mais uma vez, a anfitriã falou de novo:
   - Professor, sabe que isto aí é manteiga, não é?
   E o professor continuando concentrado em passar aquele resto da manteiga no pão respondeu:
   - Eu sei que isto é manteiga! Justamente é ela que eu gosto de comer!

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Pequenas Mentiras, meias Verdades: O Melhor Eletricista




Pequenas Mentiras, Meias Verdades:  O Melhor Eletricista

   As pessoas de hoje em dia, que têm menos de quarenta anos, não imaginam como era difícil a vida no interior antes da vinda da energia elétrica. O dia terminava muito cedo, depois da janta, já que não tinha claridade para continuar ficando acordado. Naquela época a iluminação era toda à base de velas e lampiões. Ninguém possuía iluminação melhor que esta. 
   Eu nasci e me criei durante a infância já com energia elétrica instalada em casa, mas os parentes do interior não tinham esta vantagem. E minha vó sempre nos levava com ela para ficarmos uma semana na casa destes parentes. Então aprendi a conviver de perto com a iluminação precária que eram as velas e o lampião. Aliás, o watt impresso nas lâmpadas era a quantidade de velas que ela substituía. Ou seja, uma lâmpada de cem watts equivalia à luz de cem velas. Imagina o breu que era uma vela solitária no meio de toda a escuridão. 
   E tinha a história do cheiro. Tenho perfeitamente na memória o cheiro terrível do querosene sendo lentamente queimado naqueles lampiões, deixando tudo cheirando a pista de aeroporto. Terrível! Mas em contrapartida, eles davam uma iluminação muito mais intensa. As velas até que não cheiravam mal enquanto queimavam, porque diferentemente de hoje em dia, elas não eram feitas com parafina, e sim, com a legítima cera de abelhas, as quais em seu queimar deixavam no ar um doce cheiro de mel.
   Alguns salões de baile e restaurantes eram iluminados por luz de carbureto. Como funcionava? Simples: o carbureto de cálcio é um material em forma de pedrinhas que misturado com água libera um gás chamado acetileno. E este gás é inflamável. Então, nos estabelecimentos tinha uma instalação com mangueiras de metal que saíam de um reservatório fechado onde era colocado o carbureto com água, e o gás caminhava pelas mangueiras, onde em vários pontos do salão tinham bicos onde o gás era aceso e estes pontos brilhavam feito luzes. E iluminava bem. O cheiro não era dos melhores, lembrando cloro, mas funcionava. Hoje em dia ainda usam o carbureto para fazer soldas em chapeações de automóveis e também para amadurecer frutas em estufas.
   Mas, depois de todo este tempo de vida difícil, chegou a energia elétrica. No interior de Tupandi tinha um eletricista e no interior de Harmonia tinha outro. Os dois estavam empenhados avidamente em suprir todas as casas de fiação elétrica, tomadas, lâmpadas, enfim, uma trabalheira sem tamanho para atrelar toda a clientela na rede elétrica e assim iluminarem suas noites.
   Só que o eletricista de Harmonia, além de fazer seu trabalho de instalação em Harmonia intercalava nos fins de semana as instalações em várias casas de Tupandi. O coitado do eletricista de Tupandi não sabia por que ele estava sendo deixado de lado em tantas casas. Pois seu serviço era exemplar, perfeito, do mesmo jeito como o de Harmonia trabalhava.
   O tempo passou e o eletricista de Harmonia estava absorvendo cada vez mais clientes em Tupandi, a ponto de sobrar tempo para o eletricista de lá, ficando sem trabalho até já em dias de semana. 
   Um dia, ele já desolado com a perda de tantos clientes, resolveu perguntar uma tia sua que também havia contratado os serviços do eletricista de Harmonia em detrimento do sobrinho. Ela então disse:
   - Simples! Porque o eletricista de Harmonia instala uma energia bem mais forte e eficiente que a tua. Dá só uma olhada: as lâmpadas dele brilham muito mais que as tuas! É lógico que vamos preferir mais energia em casa.
   Foi então que o coitado reparou que ele estava colocando lâmpadas de 40 watts em suas instalações e o eletricista de Harmonia estava colocando lâmpadas de 60 watts, ou seja, cinquenta por cento mais luminosas.