sábado, 9 de novembro de 2013

Chorinho de Bebê



Chorinho de Bebê

   Bere adorava crianças. De todos os tamanhos. Seus olhos negros fitavam tão angelicalmente estes pimpolhos, que sempre parecia ser ela a mãe. É. Ela dava ares de mãe para qualquer criança que cruzasse seu caminho. E isto era mais um fator que nos ligava intensamente. Eu também adoro crianças. De qualquer idade. Esta nossa ligação já vem de muito tempo, pois sempre demonstramos isto. E criança sente isto muito mais do que um adulto. Crianças que sentem uma ligação intensa com elas, se aconchegam e deixam tudo vibrar para elas. Elas sugam nossa energia em toda a sua intensidade porque sentem que as amamos e que temos uma ligação afetiva concreta com elas.
   Ainda está cheio o pote de balinhas e o outro pote de pirulitos ali no canto da cozinha. Está cheio porque Bere nunca deixou eles esvaziarem. Deus me livre uma criança entrar em nosso mundo sem levar pelo menos uma balinha. E se fosse maior, um pirulito. E Ela ensinava: "As balinhas devem ser macias para as crianças poderem mastigar sem engulir direto e se engasgar. Já os pirulitos, tem que cuidar para que sejam aqueles que tem a haste bem embutida para não soltar enquanto a criança bota o pirulito na boca." Guloseimas para selar a paixão e o carinho para estas luzes de Deus, que tanto bem nos fazem e que tanto encantam nossa existência.
   Teve uma época em que pensamos em adotar uma menina. De qualquer cor, viesse como e de onde viesse, de qualquer jeito, desde que fosse uma menina. O motivo de ser menina? Simples: como temos dois meninos e como eu sou muito amoroso com meninas, adotaríamos uma menina. Bere queria isto. Ela sentia no seu mundo, seu modo de pensar, que ela havia ficado devendo um bem maior em nosso relacionamento. Uma menina, por eu ter tanto carinho por elas. E ela falou sobre isto em nossas tantas conversas que sempre aconteciam, na hora do chimarrão, onde tudo era dito e ponderado. Sempre dizia que se sentia não plena em nossa história de amor, porque eu queria ter uma filha e ela não me tinha dado esta graça. Mas eu sempre retrucava que não era verdade. Que ela não ficou devendo nada! Afinal, com os dois filhos, podíamos um dia ter netas, então o ciclo se completaria. Claro, eu nunca neguei que se tivesse uma filha, me sentiria o pai completo, já que tenho dois filhos maravilhosos. E Bere, por eu ter uma afinidade tão afável por uma pretensa filha, achou que devia me conceder uma filha, nem que fosse adotada. E ela foi atrás. Mas os percalços da vida e a burocracia não lhe deram a chance de concretizar seu desejo. A explicação é simples: porque na época em que tínhamos vigor físico suficiente e queríamos adotar, para criar mais um serzinho em nosso lar, a burocracia para uma atitude tão humana e também, em parte, o fator financeiro impediram ela de realizar este sonho.
   Por outro lado, eu dizia a ela: "Deus me impediu de ter uma filha porque eu iria mimá-la demais." Ela ria do que eu falava. Mas sabia que eu estava sendo sincero. Então retrucava: "Sabe que menina mimada até que não seria tão chata assim? Eu queria! Seria uma companheirinha que mesmo que quebrasse meus batons, se borrasse com minhas maquiagens, tropeçasse em meus saltos altos e eu flagrasse usando meus perfumes, me olharia e diria: "Mamãe, eu só queria ser como você!"" E completava: "Nossa! Podia ter qualquer nome, qualquer idade, qualquer mania. Eu mudaria tudo nela, com paciência e com carinho, dando o amor necessário, para ter uma companheirinha em todos os momentos!" E finalizava: "Se viesse sem nome e eu pudesse escolher, chamaria Kelly." Era nosso sonho ter uma Kelly.
   Mas, foi um projeto em nossa vida que não aconteceu. Pelos motivos que muitos conhecem e que deixam tantos serzinhos adoráveis empilhados nos orfanatos, crescendo amargos porque a burocracia não lhes abriu as portas para um lar que as tornasse filhas e filhos e lhes deixasse crescer com dignidade. Serzinhos que jamais vão experimentar o gosto de ter uma família, um lar, alguém que os ame de verdade e um sonho realizado. Em contrapartida, famílias que lhes dariam a razão para serem felizes. 
   Um dia, de tardezinha, horário de verão, nós dois sentados na calçada na frente de casa, ela com a cuia do chimarrão na mão, olhou para mim. Ficou lendo minha alma com aquele olhar profundo e disse, sem tirar os olhos de mim: "Quer mesmo ter uma filha?" - Eu respondi: "Quem não quer?" - Na época, ela tinha em torno de 35 anos. Continuando a me fitar com seu olhar avassalador, respirou fundo e retrucou: "Então, vamos tentar mais um filho! Se for menina, Kelly será bem vinda. Se for menino, vamos agradecer a Deus a bênção de mais um filho!" Na época a gente não estava bem financeiramente, mas em meu pensamento vi uma menina abraçada a ela e aceitei o desafio. Ela, ainda me encarando disse: "Nosso amor vai nos trazer todos os meios para criarmos mais um serzinho em nosso meio. Quem alimenta e veste dois, também alimenta e veste três!" Mas não aconteceu. Não vingou. Talvez pela ânsia em realizarmos este sonho, talvez porque nosso destino foi o de ficar somente com os dois filhos maravilhosos que geramos.
   Sua paixão por crianças não tinha limite. E mesmo nos últimos tempos, ela em tratamento, fraquinha com as intermináveis quimioterapias, um dia ouviu a Maria Clara, filha da vizinha chorando no meio da tarde, me chamou e cochichou: 
   - Que vontade de ir ali e pegar a Maria Clara e trazer pra casa e dar umas mimadas nela. Escuta só o chorinhoooo! Ai que dó!
   Eu só ri e respondi:
   - A vizinha está criando a filha dela do jeito como nós criamos os nossos: choro de manha, não se encobre. Deixa chorar. 
   Ela riu e concordou.
   Agora, todas as vezem em que ouço as manhinhas da Maria Clara, me lembro da Bere fazendo carinha de dó, doida pra trazer a menina aqui em casa e encher de mimos. Esta é uma lembrança gostosa, que me dá satisfação em sentir, porque volta um filme inteiro de muito amor e carinho que ela sempre teve para com os pimpolhos. 
   Eu continuo mantendo os potes cheios de balinhas e pirulitos. Ela não gostaria que eu deixasse uma criança sair aqui de casa sem uma guloseima.

Com a sobrinha neta Lívia

Uma tarde na piscina com gostoso cachorro quente depois, com Maria Júlia e Natália, filhas de colegas de trabalho.

 Com Bianca, sobrinha neta.

 Com o filho Wagner

 Com o filho Guilherme

Com a sobrinha e afilhada Jéssica, amor de mãe mesmo!

Outra foto com a sobrinha neta Lívia

 Com o sobrinho neto Murilo

2 comentários:

  1. Olá Pio,
    Lendo suas postagens,
    "Sinceramente, sem palavras pra não blasfemar. Ó Deus, eu amo tanto, tanto, tanto ela, dá uma chance a ela para que se recupere, tá? Nem que fique com sequelas. Prefiro ela doente do meu lado do que perdê-la. Vai, Cara, dá uma chance a ela!!!! Ela quer tanto um dia ter netos. Dá uma chance, vai!!!", me vi exatamente assim pedindo, suplicando para Deus mais uma chance para meu marido e também não acreditava que ele pudesse levar ele pois era uma pessoa honesta, bondosa e nossa familia era muito feliz e unida.Hoje rezo um Pai Nosso e uma Ave Maria a noite antes de deitar mas ainda não estou conseguindo falar com Deus como falava antes, e eu tento não pensar mas penso será que ser honesto,feliz , desejar felicidades e ajudar o próximo não é bom e por isso somos castigados ou quem tem poder aqui é o demônio?...Sei que é terrível o meu pensamento e estou tentando superar, Talvez o tempo me traga uma resposta. Desejo muita força para você junto de seus filhos e amigos, abraço.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá Silvia,
      Realmente eu fiquei muito revoltado principalmente com minha crença em Deus quando soube do diagnóstico. Porque, afinal, se Deus é amor, por que ele quebra um elo de um amor tão intenso como foi o nosso, no meio? Eu fico encucado com isto. Tem algo errado. E busco também, como você, esta resposta até hoje. Não fui mais à missa, nem à Igreja desde a missa de seu sétimo dia, que foi um fiasco, onde o padre citou por cima o nome dela, somente. Não trouxe o conforto que um viúvo busca nas palavras de Deus e da Bíblia para um momento destes. Enfim, já me disseram que devo me agarrar à fé e não os meios que a ensinam (padres), mas não consigo separar as coisas. Acho que se o cara é padre, ele o deve ser em toda sua intensidade como se é marido, como se é esposa. Ou desce, e sai.
      Faz pouco tempo que voltei a rezar. Minha revolta me impedia sequer de chamar a Deus para me orientar ou ajudar a superar a perda, porque: como é que eu iria pedir a alguém ajudar a superar a perda maior de minha vida, se este mesmo Alguém foi o responsável? Como????
      Voltei a rezar porque descobri na agenda da Bere, a última coisa que ela escreveu, uma linda oração. E esta oração me tocou, pois mesmo ela enferma, condenada, agradece a Deus o dom da vida.
      No mais, amiga, colega, vamos superando, vamos nos amparando. Perdemos nossos amados numa diferença pequena, só dez dias, e sei exatamente com estás te sentindo hoje. Acredito que como eu, superando aos poucos, já conseguindo sorrir novamente, mas de vez em quando desabando intensamente quando as lembranças de tantas rotininhas nos corroem. Meu momento mais frágil é no final da tarde. Até mudei minha rotina para não chorar em todos os finais de tarde.
      Vamos em frente, amiga. Vamos superar! Tenho certeza!!!!!

      Excluir