terça-feira, 19 de novembro de 2013

Tarefa Difícil



Tarefa difícil.

   No último sábado mais uma vez tive que passar por esta difícil tarefa de estar presente em um velório, pois sendo o jovem rapaz, que não era gordo, mas de apelido Gordo, 44 anos, um excelente comunicador voluntário de nossa emissora, e sendo eu o presidente da associação, foi inevitável. Tive que ir. Por menos que quisesse. Já outros velórios haviam acontecido, dois amigos meus partiram, mas não fui. Não fui temendo o que meu interior me apresentaria num cenário tão familiar, pois está tudo tão recente, tão nítido em imagens e carga emocional. Achei que eu não teria mais estrutura em participar, ao menos por enquanto, desde a partida de Bere, onde vinte e quatro horas de muita emoção me acompanharam enquanto parentes, amigos, pessoas solidárias me abraçavam em silêncio para passar um pouco de suas vibrações e sua energia a mim, como se estivessem me mantendo, carregando de força minha tão séria e profunda fragilidade do momento.
   E cada momento daquelas vinte e quatro horas velando, onde estive sempre ao lado de Bere, foi único. Desde o meu olhar para ela, não só uma vez mas várias, com um fiozinho de esperança que, talvez visse Bere se mexer e tudo ter sido um grande engano. Mas Bere não se mexeu. Ainda martela meu inconsciente o desespero de tantas amigas e amigos, que ao vê-la, confirmavam o que não estavam acreditando: Bere realmente havia sido tirada de mim. Para sempre. Apesar de nosso grande amor, nossa simbiose, sem dó, sem direito a apelo, sem chance, ela me foi tomada. Mesmo sendo nossa história a de um grande amor, que pudesse durar ainda por muitos anos. Que pudesse desenvolver ainda mais grandes capítulos de ternura, doação e soma. Mas não. Tudo terminou em vinte e quatro horas. Demorei olhando para as mãos dela, que quis o destino não ficassem em forma de oração, mas de colo. Pensei: "Realmente ela dava colo para todos os problemas até achar suas soluções. Então é justo que fiquem assim." Suas mãos que tanto realizaram em vida, produzindo em seu trabalho, sempre com sua letrinha alegre e disposta, ou no teclado do computador, onde escrevendo com seis dedos era muito mais veloz que eu, escrevendo com os dez dedos. Ela se orgulhava disto, afinal, eu fiz curso de digitação e ela aprendeu no decorrer dos anos em seu serviço, na prática e na velocidade que a profissão exigia. Primeiro, na antiga máquina de escrever, depois no computador.
   Fitando seu rosto, via somente a marca da paz. Semblante de luz, mesmo tendo a sua luz interior a deixado. Aliás, este semblante de paz, que ela em vida tantas vezes me transmitiu e me fazia sentir seguro. Uma forma de ponderar tudo antes de tomar uma atitude, para depois fazer da atitude o resultado especial e certo. Assim Bere era: totalmente focada em atitudes sóbrias, de resultados. Fitando a cena ao redor, pessoas caladas e pensativas, cabisbaixas num semblante de muito pesar. Ainda outras pessoas, conversando animadas e por vezes até dando discretas risadas. Outras pessoas me cuidando com o canto dos olhos para expreitar meus movimentos, que caso fosse sentir algo mais forte, pudessem vir correndo me acudir. Mas não! Passei o tempo todo presente serenamente com a certeza de que tudo foi feito em vida. Nada ficou pra trás. Nada ficou meio feito ou meio certo. Não. Tudo ficou perfeito. E isto de certo modo gera serenidade. Serenidade de consciência, serenidade no abstrato. Mas no físico a cada pouco então, como um recipiente enchendo, transbordava em lágrimas solitárias, sentindo uma solidão sem igual. É. Mesmo estando cercado de inúmeras pessoas, eu sentia uma solidão imensurável. Não existe explicação para a solidão que eu senti durante as vinte e quatro horas em que Bere recebeu suas últimas homenagens. Por isso a importância do abraço no velório. Tantos que recebi, me aproximaram mais das pessoas presentes e me fizeram sentir menos só. Difícil de explicar porque é um sentimento que vem e que se instala à revelia. Não queria estar só neste momento. De jeito nenhum! Precisava desesperadamente de companhia. Minha alma gritava por companhia, algo sufocante, porque me sentia só, impotente. E Bere ali do lado, serena, não estava mais me amparando, nem podia, sua vida se fôra. Naquele momento apenas metade do meu coração pulsava. A outra metade jazia ali do meu lado. Se fôra algumas horas atrás e abria esta lacuna da solidão. Imediatamente. Uma lacuna que custa a ser recuperada e ainda hoje tenho a impressão de que minha força está pela metade.
   Tudo isto passou em minha mente como um filme nítido e conhecido, no velório de sábado. A viúva serena, olhando para seu marido ali, semblante sereno também, e certamente se sentindo muito só. Como eu me sentira com Bere no evento há quase dois meses. Quando a abracei choramos juntos, e uma grande emoção tomou conta de mim porque ali estava sendo apenas o começo de dias muito difíceis para ela. Eu falei enquanto a abraçava: "Amiga, força, Deus dá capacidade para superarmos isto. Eu estou superando, tu também vais conseguir." Mas não consegui mais segurar as lágrimas depois do abraço. Tudo o que vivi naquele dia de Setembro estava correndo velozmente em meu ser alimentando minhas lágrimas, apresentando os detalhes em alta definição, e eu imaginando que ela, a viúva, também estava passando exatamente por isto. Imaginei os dias seguintes, onde toda a existência se mostra vil, trucidando nosso ser com ataques de saudade da ausência das coisinhas de cada dia de nossa cara metade. Fiquei mais uma hora lá, e quando ia embora, a viúva, que estava em pé do lado do marido que ali jazia, veio me dar mais um abraço e ela novamente chorou muito, me levando junto ao choro. Choramos em coro, no mesmo ritmo, sem palavras, cada qual com sua solidão. E neste passar de experiências tão pesarosas ela se esforçou e disse entre soluços: "É, se foi teu amigo e se foi meu marido." foi muito tenso. Senti no peso de suas palavras o quanto a solidão a estava tomando. O Gordo era o amigo que qualquer pessoa amaria ter. Então fico imaginando como ele era com a esposa. Então, tomado com toda esta carga emocional, só consegui engrolar: "Vamos superar nossas perdas, acredite!" Saí de lá sem conseguir conter as lágrimas e fui chorando até em casa.

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