Anabel
Anabel era o nome daquela menina com uma cicatriz em forma de lua na perna direita. Quando ela tinha seis anos, adquiriu esta marca para o resto de sua vida. Bem do lado do joelho, lua crescente em marca profunda, que aconteceu durante um inocente jogo de bola no campinho do bairro. O jogo era um misto de caçador e futebol, ninguém sabia ao certo o que estava jogando, ou quais eram as regras daquela partida. Mas o que todos sabiam, era que se a bola saísse da linha marcada pelos chinelinhos dos participantes, aquele lado perdia um ponto para o outro lado. E o joguinho estava alegre, cheio de gritarias, quando a bola atravessou a linha das havaianas surradas e encardidas do lado de Anabel, e foi se alojar num monte de areia ali, contra o muro da divisa.
Ela não teve dúvidas. Como era a última da linha, foi para apanhar a bola e trazê-la de volta ao jogo. Chegando perto da areia, o convite daquele monte fofo para que ela se jogasse sobre ele para pegar a bola que estava lá no alto. Como tomaria seu banho depois, já era de tardezinha, se jogou ajoelhada para cima da areia, e eis que um gargalo de uma garrafa de cerveja quebrada estava em seu caminho, escondido na areia e seu joelho foi justamente parar naquele caco. Pronto! O estrago estava feito. O encontro, a fatalidade.
Então o corte, a sensação da lesão e um filete de sangue que não desceu até o pé. Por sorte o caco de vidro não acertou nenhuma veia. Ao sentir-se dilacerada, ela sentou na areia ali mesmo, apavorada pois se via o osso do joelho, ali não tem músculo, só pele e gritou por socorro. Logo estava cercada por todas as crianças da competição. Entre olhares apavorados, Saulo, um dos mais velhos do time, teve a lucidez em correr até a casa de Anabel, que não era longe dali, e relatar o fato para sua mãe e seu pai que acabara de retornar do seu trabalho. A mãe dela já foi pegando um paninho branco limpo e ambos correram até o campinho para acalmar e encaminhar a filha. Enquanto corriam, o pai de Anabel já chamou o Joca, amigo taxista, para vir pegá-la e levá-la até o hospital.
Quando os pais chegaram no monte de areia, Anabel, em estado de choque, ainda consegui esboçar aquele gargalo causador de seu ferimento. O pai, num ato impensado de raiva, atirou o vidro contra o muro, estilhaçando-o em centenas de pedaços. A mãe, fitando-o de um jeito como quem condena o ato, tratou de providenciar a atadura para o corte da filha. E logo Joca chegou, indo os quatro até o hospital. Lá, a ferida foi desinfectada, e após nove pontos, o corte ficou apenas em marca. A recomendação do médico foi de que Anabel não dobrasse o joelho nos próximos quinze dias, pois havia o perigo de a ferida abrir novamente, já que era bem na dobradura do joelho.
A família seguiu à risca as instruções. Após oito dias, a retirada dos pontos e a forma da lua quase Nova desenhada em sua perna. Mas, quis o destino que o ferimento voltasse a abrir, quando num dia de manhã Anabel, ao descer o degrau dos fundos de casa para dar comida ao seu gatinho, virou o tornozelo, e numa resposta inconsciente para não luxar, dobrou o joelho da lua e o ferimento voltou a abrir. Sem chance de fazer novos pontos, a Natureza se encarregou de deixar seu desenho na perna de Anabel.
Agora ela tem onze anos. Tem uma inteligência tão grande que espaira até em seu olhar. Olhinhos castanhos, contrastando com o cacheado cor de mel de seus cabelos, lhe dão uma aparência única. Seu abraço é de uma sinceridade indescritível. Nota-se que é do fundo de sua alminha. quando eu a abraço, sinto esta vibração doce, de uma entrega de energia plena, que só as crianças têm, pois transpiram pureza.
Um dia, quando a abracei mais uma vez, perguntei durante o abraço, enquanto meu rosto estava emaranhado no meio de seus cachinhos:
- Anabel, de onde vem todo este carinho, este amor puro, que tanto bem faz a mim ao te abraçar?
Ela respondeu:
- Joca, jamais vou esquecer aquela corrida de táxi que tu não cobraste de meu pai. Pois se ele tivesse que pagá-la, naquele dia não teríamos o que jantar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário