sexta-feira, 9 de maio de 2014

Hora da Faxina - O Homem da Varinha



O Homem da Varinha

   Toda a cidade tem a sua figura folclórica. Sempre existe uma pessoa diferente que perambula pelas ruas e mostra seu lado exótico de ser. Eu penso que todos temos um lado exótico dentro de nós, que só não aflora porque nosso mundo exige muito de nosso lado natural de ser, que impede que este lado aflore. Porém, existem momentos em que extravasamos este lado, mesmo que seja por alguns momentos, em festinhas, em brincadeiras, em viagens, enfim, quando nosso ser está leve, solto, tudo aflora. 
   Conheço diversas pessoas que têm um lado exótico bem destacado, quando o demonstram, que me fazem imaginá-las perambulando como figuras folclóricas pelas ruas de minha cidade, espalhando uma sensação de 'maluco beleza' a todos, descontraindo ao menos alguns momentos das tensas vidas que muitos vivem. Imagino as pessoas rindo soltas das maluquices que de cada pessoa são diferentes. Então tenho a impressão de que o folclorismo de certas pessoas, que andam por aí, é necessário. Algo como um sentimento de escape de tantos compromissos e afazeres, que encobrem e escondem o lado criança que cada um carrega dentro de si, e que é tão importante para o desenvolvimento de cada um.
   Em nossa cidade já tivemos diversas pessoas folclóricas perambulando pelas nossas ruas. Dentre elas, as que lembro, foram o Capricho, pessoa inteligentíssima e incompreendida. Andava pelas ruas com todos os seus pertences num saco e falava e gesticulava o tempo todo. Toda sua conversa era em forma de discurso. Sotaque alemão carregado, óculos dos anos 50 e sem um dente na boca. Mas a inteligência tão avançada, que transcendia seu raciocinar normal, o deixando desta forma: um andarilho incompreendido. 
   Depois veio  a tia do saco. Não lembro o nome, algo como Íria ou Irene, uma mulher de meia-idade que andava também com todos os seus pertences num saco pelas ruas de nossa cidade, xingando a todos sem pudor, com os palavrões mais impróprios. Isto que foi numa época em que usualmente não se pronunciava nenhum palavrão, nem em rodinha de amigos.
   Veio o Samuca. Figura muito peculiar, que tinha orgulho em ganhar a vida sem trabalhar. Tinha um papo muito convincente. Mas quem acha que ele nunca trabalhou, se engana. O meu estúdio de gravações, tem massa de cimento amassada por ele. Sim, pelo Samuca. Quando meu sogro construiu aquele prédio, pegou um vizinho pedreiro para fazer a obra e o vizinho pediu um servente de pedreiro. Como o sogra era de um coração sem tamanho, quando soube que Samuca estava procurando trabalho, lhe ofereceu a vaga. Todos haviam dito para ele não fazer isso, que se arrependeria, mas mesmo assim, o sogro lhe deu a chance. Pois, Samuca veio trabalhar, fez massa para a obra durante uma semana, e, na sexta, pagamento. Na segunda-feira, ele voltou ao trabalho. Fez massa durante a manhã. Depois do meio-dia fez a primeira massada e desapareceu. O pedreiro chamava por ele e ele estava sumido. Eu vendo a aflição do pedreiro também fui atrás, e eis que Samuca estava dorminho na sombra de um arbusto do lado da construção, usando a espuma de alisar reboco como travesseiro. É óbvio que perdeu a vaga.
   Agora, não faz muito tempo, apareceu o homem da varinha. Ele é diferente de todos os outros porque é quieto. Não fala. Somente perambula pelas ruas de nossa cidade com uma varinha na mão e um olhar amedrontador. Parece ser uma pessoa muito braba, mas não. É só o seu olhar, pois é doce no trato e gentil. Mas ele gosta de caminhar passando a sua varinha nas vitrines, apontando os produtos que têm exposto lá, escrevendo coisas incompreensíveis com sua varinha e olhando para os produtos como se conversasse com eles. Acho que é a pessoa que mais olha vitrines em nossa cidade. E com atenção. Muita atenção. Quando cansa, senta em algum ponto onde tenha um banco e fica olhando para o nada. Mas a varinha fica firme em sua mão, como se fosse ela a ligação entre o mundo real e seu mundo fantasioso. 
   Um dia, estava ele sentado na rampa que dá acesso para passar com os carrinhos do supermercado do lado de minha casa. Era sábado. Fiz minhas compras, e como é perto tenho o costume de trazer as compras no carrinho mesmo até em casa. Comecei a descer a rampa com o carrinho carregado e quando cheguei nele pedi licença para passar, já que a rampa é estreita e seu corpo fechava um pedaço da passagem. Então ele virou seu rosto que estava fixando o nada para mim, e como que acordando de um sonho disse: "Desculpe! Mas a vara fica!" - Ele levantou mantendo a vara segura no ponto onde a havia mantido e me deixou passar. Sem mexer a vara, quando eu passei, voltou a sentar e olhar para o nada.

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