terça-feira, 24 de dezembro de 2013

90 Dias sem Bere. Viúvo





   90 dias sem bere, viúvo.

   Véspera de Natal, 90 dias sem Bere. Tremo ao digitar. A data, pesa demais. Véspera de Natal e quem eu tanto amei e ainda amo vai ficar o primeiro Natal afastada de mim. Há 90 dias o destino a tomou impiedosamente de mim e deixou que eu me virasse com o sofrimento da perda. E mesmo que tivesse me preparado e aprendido a me virar antes do acontecimento, veria que nada seria daquele jeito. A vida dita é inversa à vida vivida. Porque a vida dita, não tem entrelinhas. E o que faz nossa vida ser como ela é, são justamente as entrelinhas. Mas, mesmo com o peso da data, hoje não vou lamentar. Nem vou chorar.  Eu quero seguir o que Bere escreveu em seu diário: "Não parem suas vidas, sigam em frente, viagem, tirem férias, vão à praia, sempre lembrando de tomar um banho por mim." Ou seja, Bere quer que toque em frente com a mesma alegria e disposição que sempre tivemos nestes 31 anos de casados. ...Mas ainda tremo ao escrever. A soma destas duas datas gera muita sensibilidade. Não é minha vontade ser assim. Só que estou assim. Até a respiração está ofegante. Só que eu tenho que colocar no papel o que realmente sinto. Não vou mostrar um xis no sorriso para fazer crer que tudo está bem, está normal. Não tem como! É véspera de Natal, gente. E Bere partiu há exatos 90 dias. A data coincidiu e nesta soma minha sensibilidade também dobrou. Mas não vou chorar. Prometo. E vou sorrir naturalmente quando algo me tocar neste sentido. Mas por favor, a sensibilidade tem que ficar. Não tem como eu fingí-lo não ter. Para amenizar esta sensibilidade  vou procurar voltar pra trás com lembranças gostosas de minha vida ao lado dela. Nossa vida que foi tudo, foi sempre. E tem muitas...
   Bere não era muito chegada a fazer as compras triviais no supermercado. Mesmo tendo o Cruz aqui do lado de casa, geralmente eu fazia e ainda faço as compras. Sábado de tarde é o dia. Ela sempre dizia: "Se tiver dinheiro sobrando para eu escolher o que não tem na lista, vou junto. Se não, Vidinha, vai pra mim?" Muitas vezes eu juntava durante a semana algum dinheirinho extra e guardava,  só para ela no sábado ir junto e comprar 'as coisas fora da lista'. Quando a avisava sobre este 'a mais' ela vinha, me dava um selinho e dizia: "Vidinha, tu és um amor!" - Bere tão simples, tão fácil de contentar! E ia junto comigo. Parecia uma criança com um troquinho para comprar balas. Bere então passava as prateleiras, via novidades, perdia um tempão lendo rótulos, vendo produtos, comprando. Para ela, este acontecimento simples era muito prazeiroso. Ela se realizava. E eu me realizava vendo ela nesta atividade em toda sua intensidade, como se estivesse estudando um aparelho novo recém ganho. Eu ficava junto, deixava ela comprar tudo, até as coisas marcadas na lista. Encarava suas ações apaixonado, como se a visse pela primeira vez, uma desconhecida, dentro do supermercado. Sabe, aquele momento em que você, quando menos espera, se depara com uma diva nos corredores de um supermercado, analisando os produtos como se fosse a maior expert no assunto? Assim eu a via. Amava ver ela nesta atividade: óculos no meio do nariz, concentrada. De repente, olhava para mim por cima dos óculos, segurando na mão o produto que estava analisando, eu apoiado sobre a barra de empurrar do carrinho a fitando, ela dizia: "Que foi?" - E eu dizia apaixonado: "Tá liiiiinda!" - E ela mordia a ponta da lingua fazendo um não mexendo a cabeça com aquele xis de quem gostou. Eu tinha um prazer enorme em ver aquele gesto, que tantas vezes se repetiu dentro do Cruz. Perdi a conta. E ela vinha perto de mim e cochichava no ouvido: "Olha o fiasco, Pio! Parecemos um casalzinho de adolescentes que está começando a paquerar." - Eu ria alto e respondia num cochicho também: "Mexi com teu ego. E isto é o que importa. Te amo!" - E ela cochichava de volta: "Namorando em pleno supermercado. Que romântico! Só faltava agora ganhar uma caixa de bombons de presente!" - Eu assoprava um beijinho (ela não gostava de beijar em público) e ia discretamente lá, pegar uma caixa de bombons. Sonhos de Valsa. Trazia para ela e quando Bere os via, soprava um beijinho de volta. Depois do Ouro Branco, era o que ela mais gostava. Num Natal desses, cheguei a dar um pacote de 2 quilos de bombons Ouro Branco para ela. Nossa, lembro até hoje seus olhinhos negros, minha paixão, reluzindo de encantamento por receber um presentão desses, tão inusitado. 
   Na sua companhia no supermercado também aprendi sobre os ensinamentos de Bere. Ela dizia: "Ovos, a gente abre a caixa, tira um por um e examina. Tem que tirar, porque se tiver algum grudado, quando for arrancar, quebra." - Eu sigo seu ensinamento, e todas as vezes que compro ovos faço este ritual, para ver se não estão grudados e se não tem nenhum rachado no meio.  A escolha do palmito, já que é caro, para Bere era rigorosa. Dizia: "Primeiro, sempre escolha o palmito de palmeira real porque ele não tem a camada de fibra dura. Se não tiver este, o de açaí também serve. Então faz assim: vira o vidro, olha por baixo. A água não deve estar turva senão é velho. Sempre tem que estar bem transparente. E se for de açaí, pega o vidro que tiver a maior quantidade de talinhos finos, que são menos fibrosos. O de pupunha não presta porque não tem fibra nenhuma, é molenga. Não compra." - E eu sigo escolhendo palmito nesta ordem. Produtos para lavar roupas sempre eram comprados aos pares e eu continuo fazendo isto: um sabão líquido e um amaciante mais caro para toalhas, roupas de cama e roupas em geral e um sabão em pó e um amaciante baratinho para toalhas de mesa, de pano, tapetes e paninhos de limpeza. Uma forma inteligente de economizar. Bere também herdou de sua mãe a tradição de manter sempre uma dúzia de pets de óleo de soja no estoque. Diziam que era para manter a aparência de que não faltava nada na dispensa. E sempre tem uma dúzia de óleo lá. Só que desde que ela adoeceu migramos para o óleo de milho. Aliás, na enchente de 1982, quando estávamos casados há meio ano, foram estas latas de óleo que salvaram nossa geladeira, nosso fogão e nosso armário do quarto, pois foram postas as latas embaixo destes móveis para levantá-los já que não tínhamos tijolos. E a enchente entrou em nossa humilde casinha de madeira da época exatamente os 20 cm da altura das latas. Pena que tivemos que decartá-las. Ainda falando do Cruz, aqui do lado de casa, eles fazem cucas maravilhosas. Então, quando Bere no meio da tarde sentia o cheirinho de cucas assando, vinha comigo e dizia: "Vidinha, tem um troquinho para eu comprar uma cuquinha e um pote de nata para merendar?" - Eu dizia para ela mesma ir na gaveta do dinheiro pegar o quanto precisava. E ela ia tão faceira comprar sua cuquinha e nata para depois passar um café e fazer um lanche no meio da tarde. Para ela isto era simplesmente um banquete. E este era mais um motivo de eu amá-la tanto. Tudo simples, mas com cara de luxo. Bere se contentava com tão pouco, era fácil agradar. Qualquer coisinha que fosse diferente, mesmo baratinha, para ela era um presentão. Assim como considerava presentes todos os bilhetes que escrevi para ela, espalhando-os entre tantas gavetas e armário de roupas. Simples, para que quando fosse escolher alguma roupa ali, achava o bilhete, relia e suspirava de paixão.
   Bere não era muito chegada à cozinha. Toda vida sempre eu cozinhei. E ela adorava minha comida. Mas, Bere tinha alguns pratos que fazia, que encantava a todos. Como a famosa maionese da qual já falei diversas vezes. Outro prato muito gostoso que ela fazia era a torta de bolachas (biscoito). Nas festas como a do Natal, era tão disputada, que muitas vezes ela fazia 2 tortas. Cobria uma com frutas cristalizadas e a outra com confeitos de chocolate. Assim também como o pão caseiro que ela fazia. Ficavam enormes, gostosos. Sinto saudades do pudim "espuma de sapo" que ela fazia. Receita aprendida com minha mãe. Nossa, era diviiino. Um dia vou tentar fazer esta receita.  
   Assim, consegui ficar escrevendo com um sorriso de saudade boa durante duas horas. Quantas lembranças doces e sublimes se passaram em minha mente. Quantas! Noto que o tempo aos poucos está curando a amargura da ausência de seus detalhes. O tempo está me deixando pensar nela com serenidade, saudade boa. Claro que tem momentos em que não consigo segurar a emoção e choro. Como hoje, quando fui pegar o presente de Natal de Bere na floricultura e vi a obra de arte que a florista fez para eu homenageá-la. Não resisti. Imaginei seus olhinhos ao ver este presente maravilhoso. Ela os arregalaria e diria: "Tudo isto só para mim?" - 66 rosas: 31 rosas vermelhas e duas amarelas pelos anos de feliz convivência e 32 rosas cor-de-rosa pelos maravilhosos e aconchegantes Natais que passamos juntos. E uma rosa branca, pelo Natal que vamos passar ligados em planos diferentes. 






Mudança no corte de cabelo

Esperando o pastel ficar pronto


Bere adorava comprar presentes para todas as pessoas que ela gostava. E sempre se dava o trabalho em escolher com cuidado e dedicação para escolher o melhor.



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