Oitavo dia do Diário de Bere.
26/04/2013. - Bere escreveu:
Hoje senti vontade de escrever novamente, já tou na 2ª sessão de quimioterapia. E hj tive a notícia q/to com câncer no pâncreas e supra renais também. Acho q/a tendência é despencar, chorei muito, to chorando e escrevendo. Preciso continuar crendo, mas tá difícil. Pio (meu tudo), vejo q/ está inconsolável. Q/dor!!! Choro por ele. Queria não causar esta dor nele, ele ñ merece. Sempre foi meu tudo, meu todo, meu sempre. Maridão presente, amor de minha vida. Sem limite sempre. Mas eu também ñ tenho culpa. Somos vítimas. Mas dói ver ele sofrer tanto. Tenho certeza (eu o conheço) que chora escondido (ele ñ mostra) pra se mostrar forte comigo, mas ñ gostaria q/fosse assim. Vai entender esta loucura. Mas eu sinto sua dor e finjo que ñ vejo para ele ñ sentir tanto.
Escrevi um email pra Nádia e contei tudo. Que despenquei, q/chorei, (deixei o Pio fora disso coitado, já o alugo demais e ñ quero que despenque comigo) e escolhi ela.
Tenho dó do Pio. Sempre foi meu tudo. Vai acabar ter que se virar sozinho. tenho dó dos meninos. Não de mim.
Me ajuda Senhor a mudar meu pensamento, ...a ter esperanças!
Amo tanto viver...
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Nossa! Esta penúltima página do diário de Bere pegou pesado! Os detalhes da revelação da metástase de seu câncer estão nítidos ainda hoje em meu pensamento. Praticamente ali ela foi sentenciada. Quantas vezes eu chorei escondido como ela escreveu e desconfiava porque me conhecia! Quantas! Perdi a conta.
Nota-se que já passou mais de 1 mês desde a última postagem de Bere em seu diário que foi em 17 de Março. Na realidade, são quarenta dias, quase. Ela perdeu a vontade de escrever. As esperanças escasseavam sempre mais. Neste meio tempo, nossa vida foi marcada com muitos desacertos no sentido do desenvolver da doença de Bere. Entre consultas e exames. Primeiro porque os exames preliminares foram alarmantes quanto à metástase do câncer em órgãos vitais como supra renais e pâncreas. A Doutora Maria Helena, oncologista (que exibe em seu jaleco: cancerologista) marcou um pet CT na época em Porto Alegre para averiguar a fundo a quantidade de metástase que havia gerado aquele câncer de pulmão inicial. Nossa, naquela consulta ela nos deixou alvorotados. Foi muito tenso. Metástase significa diminuição de espectativa de vida. Afinal, seu diagnóstico estava ruim, podia ter até se alastrado aos ossos, nos deixando completamente sem chão. E Bere, nervosa, acuada, cobrando até de mim respostas que eu não tinha. Vivemos dias de muita tensão, até turbulentos, onde o que realmente nos manteve unidos foi nosso amor incondicional e a intenção de enfrentarmos tudo juntos, sempre.
Fomos a Porto Alegre, no Divina Providência fazer o tal do pet CT. Este é um exame que em imagens fatia o corpo em mil pedaços. Laubin, grande amigo, nos levou para poupar voltas desnecessárias e GPS para indicar o caminho. Bere foi até lá de lenço na cabeça (a primeira vez) porque estava começando a perder os cabelos. Em casa foram momentos cruciais. Sabe o que é uma pessoa amar acima de qualquer outra parte do corpo seus cabelos e ao passar a mão, saírem aos chumaços como se fossem flocos colocados na cabeça tipo enfeite? Foi terrível. Ela tendo o exame (por sinal, caro) pela frente, que a gente não sabia como seria, nervosa com a espectativa do resultado, e ao mesmo tempo com o drama da perda dos cabelos iniciando justamente naquele momento. E ainda por cima, a incerteza do diagnóstico, que poderia ser muito pior do que já o que tínhamos. Lembro que nós estávamos sentados na sala de espera do hospital, quando ela comentou comigo: "Pio, não vou tirar este lenço por nada deste mundo. Porque estou ridícula, e não quero espalhar cabelo por tudo que é lado. Do jeito que estou perdendo eles, é um fiasco ficar sem lenço." - E o lenço dela estava super mal colocado. Ela não tinha ainda aprendido a amarrar de verdade o lenço na cabeça. Quando entrou para o exame, fizeram ela tirar o lenço, mesmo que espalhasse cabelos pelo ambulatório. Ela se sentiu humilhada por esta atitude para com ela, afinal, estava em seus primeiros momentos onde os cabelos caíam aos chumaços e ela não teve ainda a chance de se familiarizar com tamanho impacto, neste acontecimento esperado mas não imaginado o quanto ele seria sentido e o quanto ele mexeria com seu psicológico. Estava fragilizada. Ao voltar de Porto Alegre para casa Laubin parou numa empresa onde comprava produtos para a loja do seu filho. Enquanto ele fazia as compras, ficamos aguardando no carro. Bere me chamou, olhei para trás, e ela falou: "Vidinha, foi horrível!" - Seus olhos se encheram de lágrimas enquanto ela me encarava: "Eu fiquei com muita vergonha! Chorei lá dentro da sala do exame." - Saí do carro (estava sentado na frente e ela atrás), abri a porta de trás do carro, desatei seu cinto de segurança, dei as duas mãos e a trouxe para fora. Mantive segurando. Fitei ela nos olhos. Ela me encarando marejada, completamente impotente, como se ela não valesse nada mesmo, uma coisa qualquer, continuou: "Eles até foram bacana comigo. Disseram que ficasse calma..." - Bere olhou para o chão, uma lágrima sua caiu em cima de nossas mãos e saiu rolando até cair ao chão. Respirou fundo e enquanto estava puxando o ar, continuou falando sufocada enquanto fitava o chão: "Que tantas pessoas iguais a mim... ...passavam por aquela sala..." - Mais uma lágrima dela caiu, agora no meio de nossos dedos, como se fosse fundi-los e se alojou lá. Ela respirou fundo mais uma vez, e numa vozinha sumida, inocente, infantil, continuou: "Eu me senti um objeto. Um objeto sem nenhum valor! Nenhum, nenhum. Insignificante." - Eu fiquei muito sentido com esta frase. Ela me tocou por demais, demais. Pensei pra mim: "Nossa, como Bere está pra baixo!" Apertei com força as mãos dela, ela voltou a me olhar, esperando que dissesse algo. O sufoco de minha garganta pela dó que senti por Bere naquele momento apagou minha fala. Me calou. Eu consegui imaginar o tamanho de sua pequenês diante desse novo mundo que estava nos ameaçando cada vez mais, com golpes cada vez mais duros e inesperados. E as palavras não me vieram. Eu não sabia o que dizer. Sei lá. Minha garganta fechada não deixou falar. Fiquei pra baixo também. Por mais que buscasse dizer o que ela queria ouvir, não achei palavras. Naquele momento, muito mais estava em jogo do que o simples fato de ela ter que se expor com o cabelo já faltando em diversos lugares. Estava em jogo sua dignidade feminina. Algo difícil para o homem entender. Eu estava procurando me colocar em seu lugar, entender. Mas a mulher tem em si padrões de dignidade que vão além da visão masculina. E uma delas, é seu cabelo. Por isso passam horas e horas de suas vidas os tratando e embelezando. O lado feminino das mulheres inicia no viço de seus cabelos. E Bere não era diferente. Seu cabelo era tudo! Talvez por isso as palavras não me vieram.
Nós continuamos parados, de frente, eu segurando firme suas duas mãos. E este momento de nos entreolharmos, ela e eu marejados, impotentes, pequenos, ínfimos, sem termos nem palavras para nos amparar, por menos que tenha durado, pareceu uma eternidade. Por fim, Bere, centrada como sempre, tomou a atitude e falou: "Sei o quanto isto tudo está sendo difícil também pra ti, amor. Não te culpo por não falar algo que eu precisasse ouvir. E não se culpe também." - Eu não consegui me segurar, e comecei a chorar. No meio da rua, no centro de Porto Alegre. Ela continuou firme, me olhando, certamente ruíndo por dentro, mas sem chorar, só marejada. Profundo, lindo e belo negro olhar, com um olhar doce de carinho tão nobre, que guardo até hoje, porque me marcou muito. Sempre revejo a cena em meu pensamento: sua alma espelhada através de uma cortina de água, pelo seu olhar. Apesar do momento, um olhar divino, meigo. E Bere continuou: "Não precisou falar, querido. Do jeito como segurou minhas mãos senti que posso me amparar em ti, pois mostrou que me darás toda a força." - E ela soltou as mãos, me abraçou soluçando e dizendo: "Eu queria tanto que isto não fosse assim, fosse bem diferente!" - Eu a abracei forte. Ficamos um tempo assim até ficarmos mais serenos. Vi que Laubin estava lá adiante já voltando, então falei para ela: "Vidinha, não encontrei as palavras para expressar o quanto eu estou junto, dentro de toda esta tua luta. Mas tu sabes que estarei aqui. Contigo. Sempre, sempre. Vamos em frente, superando cada novo desafio." - Disfarçamos nossos sentimentos já que o amigo já estava quase chegando no carro e ele já havia gritado de longe para a gente experimentar o cafezinho de uma cafeteria que ficava ali do lado onde ele tinha estacionado. Bere, mudando de humor quando ele chegou perto, pra disfarçar, disse para mim: "Meu mais novo desafio é aprender a amarrar o lenço na cabeça. Vou precisar fazer isto muitas vezes daqui pra frente."
Eu adorava quando ela me olhava desse jeito, com seu negro e doce olhar. Saudades desta pose que tantas vezes fez!!!
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