As Entrelinhas.
Estava olhando alguns álbuns dos tantos que marcaram nossa vida em comum. Tem fotos de todos os ângulos, situações e momentos. Muitas fotos só nossas, dos nossos primeiros anos de casado, pois o Wagner nasceu cinco anos após o nosso casamento. Tivemos tempo de nos conhecermos e principalmente, neste tempo, Bere conseguiu me transformar de marido para parceiro, companheiro. Tem diferença. Marido é o que supre o lar, não deixa faltar nada, é bom para a esposa, convive em harmonia e leva a vida a dois a sério. Tão a sério que deixa muito a desejar dentro do mundo da esposa. Porque em seu dia-a-dia geralmente não enxerga o que eu sempre falei: as entrelinhas. As entrelinhas são a teia de costura das almas e é ali que o amor realmente se torna plenitude. E Bere, em sua maneira simples e inteligente, me trouxe ao conhecimento destas entrelinhas. Como? Com o seu modo de agir.
Tudo começou no meio da primeira semana de casados. A gente ainda estava vivendo a euforia do momento, afinal, tínhamos chegado lá, tínhamos nossa casinha modesta mas mobiliada com o essencial, de paredes cinza com janelas vermelhas, pintada por nós dois alguns meses antes do enlace. Por que cinza e vermelho? Porque na época não havia a comodidade de se fazer mistura de mil cores como hoje, então muitas vezes sobravam cores preparadas nas lojas de tintas, que ninguém comprava e que as lojas vendiam bem mais em conta por não terem saída. E foram estas duas cores que conseguimos bem mais baratas para pintar nossa casa. Por dentro e por fora. Até que a combinação ficou bacana! Era diferente, chamava a atenção. Principalmente o vermelho das janelas. Estávamos realizados, havíamos proporcionado uma festa de casamento para mais de duzentos e cinquenta pessoas, música ao vivo e chopp. Tudo ainda girava em torno da magia daqueles primeiros dias.
Tudo eram novidades. Bere, nos seus recém vinte anos feitos no dia do casamento, tinha a maturidade de adulta e a docilidade de uma adolescente. Eu me encantava com seu jeito jovem de viver, e mais ainda com seu jeito adulto de pensar. Então, numa noite, desta primeira semana de casados, preparamos juntos o jantar. Mesa simples: pão d'água do Nacional, nata, schmier e queijo. Ainda café de saco torrefeito na hora do Kleasi e leite 'in natura'. Tudo preparado, sentamos para jantar, Bere preparou o canto do pão para ela, pois adorava aquela parte para fazer um sanduíche. Colocou a mistura e um naco farto de queijo. Enquanto isto eu lhe servi café. Enquanto eu fazia minha fatia de pão, ela, depois de uma mordida, devolveu seu pão ao prato e, mastigando, começou a chorar. Desenfreadamente. Eu fiquei preocupado, achei que tinha acontecido algo. Levantei de supetão, fui do lado dela, a acariciei e perguntei: "O que aconteceu, amor?" - Ela, enquanto continuava chorando e mastigando, respondeu: "Estou com saudades da mãe, do café de minha mãe, do pão caseiro de minha mãe e da minha cama na casa de minha mãe." - Eu, como marido recente, achei aquela cena ridícula e tentei debochar: "O que é isso? Tua mãe mora a trinta metros daqui, na esquina, é só jantar e ir lá e matar a saudade dela. Que ridículo isso! Fazer esta cena no café, na primeira semana em que estás fora de casa, que era o que tu mais querias!" - Ela, na hora mudou de gênio. Me empurrou para o lado, foi até o banheiro, lavou o rosto, secou e voltou. Disse: "Senta!" - Até me assustei com o jeito como ela falou. Mas obedeci. Sentei. Ela continuou, me olhando fundo nos olhos: "Quando uma mulher chorar e der o motivo do choro, não quer dizer que este realmente é o motivo! A mulher sempre soma, não chora por uma coisa só. ...Se um dia eu chorar porque lasquei uma unha, não quer dizer que foi porque lasquei a unha. Quer dizer que eu fui acumulando vários motivos de choro e o lascar de unha foi o estopim. ...Entendeu?" - Eu, meio assustado, sem saber direito o que responder, balbuciei: "Mais ou menos..." - Ela foi, e sentou na minha frente, no outro lado da mesa. Quando estava acomodada, me encarou mais uma vez, sempre com seu olhar profundo, olhos negros, e disse: "Vidinha, tens que entender que a mulher é um caldeirão de sentimentos. No dia em que souberes pescar dentro deste caldeirão o que verdadeiramente estou sentindo, vais sentir o quanto de amor temos em comum. Vou te ajudar, vou te dar as pistas. Quero que aprendas, porque minha felicidade será sentir que realmente vives meus sentimentos, assim como viverei os teus." - Só fiquei olhando, sem entender direito. Ela completou: "Pronto, lava a louça que vou lá ver a mãe e terminar de jantar lá." - E foi. Por incrível que pareça, naquela hora que ela saiu, maldisse nosso casamento. Mas, era apenas o começo. E eu tinha que passar por isso tudo para aprender a valorizá-la do jeito como ela sempre mereceu ter sido.
Quando voltou, eu já havia desfeito a mesa, com meia janta entalada na garganta, morto de vontade de xingar, gritar, brigar, mas me contive. Afinal, não estávamos nem uma semana casados e eu tinha que descobrir esta nova Bere que se apresentava a mim. Chegou, me abraçou, beijou, e disse: "Vamos pro quarto?" - E a noite rolou maravilhosa como se nada tivesse acontecido. Pensei muito sobre aquele momento do jantar. E o fato me deixou mais atento para tudo o que ela fazia, sentia, enfim, comecei a entrar mais no mundo dela, como ela havia me falado. Seu jeito, talvez um pouco forte de me fazer ver seu lado foi me moldando. Pois cada vez mais prestei atenção aos sentimentos reais dela.
Mas a lição principal estava por vir. Estávamos casados em torno de meio ano, quando tivemos uma discussão séria sobre problemas financeiros. Algo que hoje em dia eu nem daria bola, mas que na época, pela dificuldade em fazer dinheiro e pelo jeito como ela havia agido, me fez discutir com ela. Eu tinha que pagar o aluguel do último mês de um espaço comercial que eu tinha em São Leopoldo. Quando fui na imobiliária para acertar, a dona da imobiliária me disse rindo que eu não precisava pagar, pois o dono do prédio tinha dito que era para deixar assim, não precisava pagar, já que já tinha entregue a peça. E eu não paguei. Quando voltei aqui para o Caí, e Bere soube que eu não havia pago, ficou possessa, me fez voltar a São Leopoldo para pagar este aluguel, porque não admitia ter usado aquele ponto no último mês e não ter pago o aluguel. Ela era assim: tudo certinho, tudo limpo, sem dívidas. Voltei no dia seguinte a São Leopoldo, morto de pena de desembolsar aquela grana de graça, a dona da imobiliária me debochou quando viu eu insistindo em pagar, e não quis dar recibo. Exigi o recibo, pois poderia ser até que ela embolsasse o valor e não o dono do prédio. Voltei para casa, enfurecido. Cheguei, esperei Bere voltar do trabalho e mostrei o recibo, perguntando: "Está satisfeita? Com este dinheiro poderíamos pagar nossa conta de luz quase meio ano aqui. ...E ainda tive que aguentar o deboche da dona da imobiliária!" - Ela pegou o recibo, leu, dobrou, botou no bolso. Com toda a calma me disse: "Estamos limpos na praça. Isso é que importa!" - Fiquei remoendo o resto do fim da tarde tudo isto, pensando na burrada dela, mas ao mesmo tempo no gesto nobre dela. E o conflito se instalou em minha alma. Eu não sabia se aplaudia seu gesto ou se condenava. Então me lembrei da unha lascada, do começo de casados. Senti um peso amargo por tudo que havia feito, porque ela havia me avisado para prestar atenção nas suas atitudes, mais precisamente nas nossas entrelinhas. E esta atitude era certamente mais um ensinamento para me fazer sentir nosso casamento nas entrelinhas.
Nosso chimarrão do fim de tarde foi de pouca conversa. Banalidades, nenhum riso, frio e seco. Ela, bem antes do habitual, disse não querer mais, e foi tomar banho. E eu pensando só nas entrelinhas, o que fazer para entrar neste universo feminino, tão inquebrantável, inatingível para nós, homens, meio brucutus. Pensei: "Vou fazer um agrado a ela. Vou lá, secá-la após o banho." - Fui, esperei terminar o banho, e quando ela fechou o chuveiro, entrei no banheiro, peguei a toalha e quis cordialmente secá-la para me redimir daquele dia de conflito. Então, para minha surpresa, veio a segunda lição: Quando estava com a toalha na mão e ia tocá-la, ela puxou a toalha de mim e disse: "Está vendo?" - Eu estava embasbacado, sem ter onde enfiar a cara, muito menos ver o que ela queria mostrar. Mas, respirei fundo, louco para explodir num ato de machão ferido ao máximo em seu brio, me contive e perguntei: "O que?" - Bere docemente começou a alisar a toalha de banho, primeiro num lado, depois no outro, me encarando. Por fim disse: "Não está vendo? ...Aqui, olha a toalha: ela tem um lado liso e um lado felpudo. Tu estás sendo este lado liso, áspero, sem aconchego. No dia em que tu virares este lado felpudo, suave, aconchegante, te dou o direito de entrar no banheiro e vir me secar. Enquanto isto, vai estudando os dois lados da toalha. Sem aprender, não vais ter chance de me secar." - Minha moral caiu abaixo do meu chão. Que lição! Que tapa sem machucar, mas para marcar! Que jeito de me chacoalhar! Daquele dia em diante pensei muito no que tinha acontecido e no que ela havia me falado. E comecei a achar sentido no seu mundo, no lado feminino de viver. Custa ao homem se achar neste lado doce e diferente de ser, que só as mulheres tem. E, depois que descobri este lado, nossa vida virou uma simbiose. Tive que abandonar muitos conceitos e machices para entrar no mundo dela. Mas ela me proporcionou isto. E aprendi com ela, com seus ensinamentos, que este é o verdadeiro jeito de amar, amar totalmente, incondicionalmente, porque não se ama sem entrar no mundo da pessoa amada, conhecendo as entrelinhas.
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