Crônicas da Hora da Faxina.
Vou continuar escrevendo. Mas, diferente. O assunto sobre minha viuvez chegou no ponto em que tudo o que pudesse ser importante foi dito. Poderia escrever mais, pois tanto de tudo vivemos, teria assunto para mais um ano. Mas, aos poucos tenho que voltar a vida normal, deixando esta maravilhosa passagem de minha vida como espelho e lembrança do que de bom eu passei e que foi metade de minha existência. Tenho que começar a olhar para frente, e seguir minha vida, num recomeço digno e verdadeiro.
Como nas quintas feiras minha diarista, a Noeli vem, e faz uma geral em toda minha casa, fica pro fim a geral no estúdio. Fico uma hora e meia fora dele para ela poder limpar. É a Hora da Faxina. E com este título, decidi escrever uma crônica semanal, postar nas sextas de manhã, sobre assuntos diversos, reais, imaginários, enfim, que possam continuar despertando o interesse de vocês que através do chat lamentaram meu encerramento de relatos quanto a minha vida ao lado de Bere. Fiquem à vontade para ler, reler, criticar, opinar. Vou gostar de ouvir de vocês. Daqui a pouco o primeiro dia da Hora da Faxina, crônicas.
Hora da Faxina 1 - O Brinco.
Saí para caminhar como normalmente faço nos finais de tarde. Ainda tinha sol. Não muito longe de minha casa, passei pela praça Orestes Lucas. Não sei por que passei no meio da praça se minha intenção era caminhar. Não havia motivo para atalhar. Mas, no inconsciente meus passos me levaram para este atalho. A praça, diferente de muitas outras porque foi planejada, vi sendo construída e seus canteiros plantados. Antigamente, antes de ser praça, era um campinho de gramado fino, onde vinham os circos e ali armavam o seu picadeiro. Levei meus filhos diversas vezes para ver os espetáculos já que é perto de casa. Quando era apenas campinho, nos domingos de tarde, levava meus filhos ali e empinávamos pipas. Eles adoravam. Quanto mais alto elas voassem, mais brilhante e faceiro era o olhar deles. Num domingo desses, quando havia um vento favorável para pipas, uma delas subiu tão alto que não conseguimos mais puxar de volta. Ela estava nos puxando. Acabei cortando a corda que a prendia ao nosso controle para liberá-la. E aquela pipa subiu tão longe que sumiu aos nossos olhos. Meus dois filhos choraram por perderem a melhor pipa que havíamos feito. E eu disse: "Tão perfeita que alçou voo sozinha! Se acostumem a isso, vai ser importante para vocês."
Hoje, depois de alguns anos, as árvores já se fixaram, estão vistosas e os canteiros estão definidos. A praça está linda. Mas continuo não gostando do nome dela. Porque conheci a pessoa que emprestou seu nome ao logradouro, por sua importância em nossa cidade, mas que era uma pessoa nervosa, de um humor ácido. Eu não simpatizo com pessoas de humor ácido, que tratam tudo com extremo nervosismo e que jamais esboçam um sorriso. Talvez seja um defeito meu, mas sou assim, não sei ser diferente. Enfim, mesmo tendo sido roubada a placa de bronze com a identificação dela, o nome continua sendo o mesmo: Orestes Lucas.
Quando cheguei no meio da praça, entre as britas, vi reluzindo algo que estava sendo mirado pelo por do sol, num ângulo certeiro que atingiu meu olhar. Pensei: "Deve ser algum anel de latinha ou coisa parecida." Mas, quando cheguei perto olhei melhor e vi tratar-se de um brinco. Juntei ele, tirei a terra, o que denotava uma peça perdida ali há tempo, e tive a impressão de que não era uma bijuteria. Principalmente por causa do metal, ouro, tão formosamente trabalhado. E confirmei minha desconfiança ao ver que aquela pequena pérola enfeitando o arco cheio de detalhes, era realmente uma pérola, já que não tinha desgaste nenhum, permanecia perfeita, redonda, brilhante. Uma joia perdida no meio da praça.
Logo minha imaginação caminhou: quem poderia ter perdido ali um brinco sem ter notado sua falta? Ainda mais sendo joia, e pela aparência, os detalhes trabalhados, certamente seria joia de família, daquelas que são passadas de mãe para filha. Pensei em como seria o rosto de quem tinha esta joia adornando sua orelha. Pensei em quanto possa ter sido repreendida esta menina, moça, mulher, por ter perdido um símbolo de sua família. Pensei também no quanto de tristeza esta pessoa passou por ter perdido seu brinco, especial, joia de família. Resolvi guardá-lo. Pus no bolso da bermuda e segui minha caminhada. E enquanto caminhava fiquei imaginando uma maneira de fazer voltar esta peça a sua legítima dona. Pensei em muitas soluções. Mas tudo o que imaginei para tentar encontrar a verdadeira dona foram soluções duvidosas. Poderiam surgir várias candidatas alegando ter perdido o brinco. Então, achei a solução: anunciar o achado, e quem trouxesse o outro brinco idêntico ao achado, levaria seu par.
Depois da caminhada, cheguei faceiro em casa, pensando em começar minha campanha, anunciando em nossa rádio. E logo veio a decepção: eu não estava mais com o brinco. O bolso da bermuda tinha um furo bem pequeno, e o brinco passou ali. O perdi novamente. Parece que este brinco está fadado a não encontrar seu par, como também acontece com tantas pessoas, que numa vida inteira ficam sem seu par. Este paralelismo intrigante que faz com que muitas pessoas, que poderiam ter um relacionamento ótimo, perene, não encontram seu par. Mas tenho certeza de que um dia, alguém vai achar novamente este brinco. E quem sabe, voltará a sua legítima dona. E voltará a ser um par.
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