segunda-feira, 10 de março de 2014

Cartas de Amor - Primeira Correspondência



Cartas de Amor - Nos Conhecendo

   Estive revendo o vasto acervo de correspondência trocado entre mim e Bere quando namorávamos, pois morávamos em cidades distantes a trinta quilômetros e o telefone na época era algo muito primitivo. As cartas funcionavam melhor e davam mais privacidade. Pois, achei tão sublime nossa primeira troca de correspondência, que resolvi reproduzir na íntegra pela doçura que é. Nos conhecemos no dia 9 de Fevereiro de 1980 e dois dias depois, Bere, com a posse do meu endereço, resolveu escrever:

   Primeira carta de Bere para mim:

   São Seb. do Caí, 11 de Fevereiro de 1980.

   Olá Pio!
   
   Aqui tudo bem!
   Escrevo como prometi.
   Sabe? Simpatizei muito com você pelo seu jeito sincero de ser, de se comunicar, de falar tudo o que sente.
   Gostaria de ter conversado mais com você, pos a gente ficou junto poucas horas e quase não nos conhecemos interiormente.
   Vou escrever um pouco sobre mim, sobre o que sinto neste momento, para que você conheça um pouco dos meus sentimentos.
   "O tempo as vezes me confunde.
   As dores e alegrias são coisas que vivo, sou muitas vezes infeliz por aquilo que me falta  e pelas coisas que eu não possuo. Por que estou sempre a reclamar alguma coisa? Não sei.
   As vezes cavo uma barreira entre mim e o mundo, será que você também sente momentos assim?
   Na vida tem de tudo, parece um supermercado sortido, cada dia que passa é uma surpresa, uma revelação.
   Nesse momento estranho e atrevido me conscientizei que aquilo que se inicia a cada instante não pode ser a imensidão do nada.
   Agora neste momentou estou a rabiscar uma mensagem que é ao mesmo tempo inquietante, gostosa e secreta, que me faz esquecer de todo o resto, mas por isto é única e vale pelo que é.
   Espero que por mais diferentes que sejamos, sempre encontremos algo que possamos transmitir um ao outro, pois a troca de ideias nos faz crescer dia após dia. Sempre será mais uma experiência o que nos é acrescentado, porque as mínimas coisas também podem se tornar máximas, pois se não fossem estas muitas coisas, não existiríamos, seríamos vazios, indiferentes.
   Chego a ficar sem graça neste momento.
   Estou numa revolução interior.
   Acontece que sinto agora um amargo bem estar, quando dou livre curso aos meus sentimentos e mergulho neles como num banho.
   Eu agora gostaria de falar o que não sei, pedir o que não posso, dar o que não tenho.
   As vezes tenho medo de me mostrar ridícula aos olhos do mundo, pois as pessoas não parecem dar importância aos valores que não se compra.
   Sei que é preciso repirar, enxugar o suor, encontrar a fonte da água viva, o poço que secretamente alimenta a ternura humana.
   Como é frágil a minha vontade! Hoje sorri por nada, fiquei triste sem motivo. Senti que a vida está aqui a se oferecer toda, numa gratuidade milagrosa, e eu quero tanto fazer alguma coisa!
   Começar a ser uma ilha misteriosa em volta da qual eu começo a navegar.
   Andar sem hora, ser do jeito que se é, como a gente se sente, sem ter que se ouvir tantos palpites e justificativas a todo momento. É o direito que cabe a cada um!"
   "Mas não serei um tanto egoísta a meu modo de ser? Não sei. Você é quem deve interpretar!"
   Já chega, você não acha?
   Você já deve estar cansado de tanto ler.
   Pio, para encerrar só tenho a dizer que gostei muito de você, espero que a gente tenha a oportunidade de conversar novamente.
   Me escreva.
   Tchau! 
   Um abraço!
   Berenice Ramos.

   E MINHA RESPOSTA:

   São Leopoldo, 13 de Fevereiro de 1980.

   Berenice, tudo legal?
   
   Com esta carta-crônica sua, aqui só poderia estar tudo bem. É deveras interessante o seu modo de se apresentar detalhadamente a mim. Em cada detalhe você se identificou como sendo uma garota notável e perspicaz. Faço votos de que continue com esta mesma sinceridade e espontaneidade.
   Bem, naturalmente você deve estar querendo qeu eu também me apresente por dentro. E nada como um momento, uma reflexão para que isto aconteça:
   "Uma calçada cor-de-rosa, feita de pedras de arenito está sob meus passos medindo o teor e as calorias deste meu calcar insistente. Os passos são, ora frenéticos, enérgicos, denotando vivacidade, coragem e audácia. Por outro lado, em momentos diversos, os passos tornam-se lerdos, desalinhados, passos estes que denotam claramente incertezas ou, talvez, alguma tristeza forjada.
   E há as armadilhas. A calçada se torna irregular, esburacada, tentando com isto fazer-me tropeçar, cair. Em certos momentos atravesso-os com firmeza e indiferença. Os passos são precisos, dignos de apreciação. Dir-se-ia que são passos resolutos. Contudo, nem sempre os passos se desvencilham tão facilmente destas armadilhas, fazendo-me prostrar ao chão. Sem fôlego, grito com as palavras trancadas em meu pescoço, saindo ásperas, lixadas e rouquenhas:
   - Hei de lutar até que transpire a última gota de suor! Até que o verde dos meus olhos se torne supérfluo, como um simples adorno, perdendo completamente o brilho envolvente, espelho do interior de meu ser, de minha sinceridade e não enxerguem mais. Até que meu tato perca a sensação de uma pele feminina e macia, ou não mais diferencie o frio do calor. Até que meu coração não mais consiga palpitar desconcertado perante alguma pessoa amada fazendo-me perder o jeito, fazendo-me sorrir num tom amarelado para não demonstrar o rubor qeu se apoderou de minha face, ou, até que ele não mais acelere diante de um susto para dar vez à calmaria sinistra e hedionda da despedida do corpo com a alma, a morte. O fim, a trégua para uma luta incontinenti, vital."
   Tenho capacidade para realizar muito, eu sei! E luto por esta condição; nunca deixei a esperança de lado. Meu otimismo chega ao ponto de me inebriar diante de fatos desalentosos, diante de casos perdidos... Sim, mas Deus nos deu a esperança, a vontade de lutar, justamente para transpormos estas barreiras quase invencíveis e, muitas vezes nos cercam com uma invisibilidade plausível..
   Chorar... pergunto-me o porquê de existirem os olhos tão dados a verterem lágrimas, se para sorrir basta deixar-se aparecer os dentes? Você sabe por que? Não acredito em dó nem compaixão. Procuro unicamente sugerir as maravilhas que nos cercam porque o choro leva à autopunição, uma condição a que ninguém deve subjugar-se. E mesmo que digam que o sorriso dá 'pés-de-galinha', dá ruga no canto dos olhos, continuarei sorrindo até que me costurem a boca, até que me proponham estinguir-me por causa deste ato sereno e cordial.
   Reclamar... por que  reclamar se nunca me faltou o pão nem o abraço de um amigo se preocupando com o meu ser? Se eu me desenvolvi como a natureza estabelece, sem dar saltos nem com extravagâncias, perfeito? Porque não sou rico? Não, as coisas ínfimas, mínimas, mesmo não apreciadas por muitos que aspiram o poder, a vida sobrepujante e  impossível, são para mim como gotas de chuva que pingam aqui e acolá, até formarem um córrego borbulhante pelo qual chegam ao mar.
   Um sentimento que muitas vezes me atordoa involuntariamente é o egoísmo pelas pequenas coisas que são só minhas, que estão aprisionadas secretamente em meu ser e que em certos momentos são libertas sem eesforço pelas mãos calosas de interesseiros. Dá-se-me a impressão de que o dia apeou mais cedo do espectro celeste e que a penumbra vespertina se limita a cortejar unicamente a noite fria e tempestuosa. Mas estes momentos tropeçam em outras coisinhas ínfimas e gratificantes, pondo ao léu estas revoltas inconsequentes e incontidas. Há a verdadeira razão para os pequenos egoísmos: eles nos levam a rastejar aos nossos próprios pés para que possamos levantar-nos mais uma vez e novamente lutarmos por algo nosso de pés firmes e calcantes; para que acreditemos na esperança; para que nunca se desfaçam ao todo aqueles pequenos mistérios colocados em nossas ilhas e assim sempre tenhamos algo a desvendar.
   A aventura é própria do meu espírito altaneiro. Deixo muitas vezes a calçada cor-de-rosa para embarcar em alguma nuvem rasa que me leve às alturas. Sim, porque é impossível ficar caminhando, perambulando pelos quarteirões para tentar encontrar-me a mim mesmo.  Muitos dos meus momentos são lapidados pelas mãos, muitas vezes ineptas, de joalheiros materialistas. E eu sei que de cima da nuvem só eu me enxergo e vejo que possa estar acontecendo na poluição da vida materialista. Estes momentos são indubitavelmente necessários, pois, enlevam minhas qualidades de ser, estar , parecer. Tornam-me real como o ciúme das pessoas inconsequentes e pessimistas; como o mel que jorra do favo em recompensa ao labor das abelhas.
   As ambiguidades sempre haverão, eu sei. E acontecem como a calçada que ora é regular, bem acabada, ora é repleta de buracos, disforme. Mas o certo é seguir, andar, levar-me até que o cansaço me assole, me domine, pois sei que certamente encontrarei alguma árvore que me abrigue com sua sombra do faiscar do sol e me deixe ouvir o canto suave de algum passarinho feliz."
   Berenice, foi bom você ter acontecido em minha vida. Gostei deveras de você. Apreciaria muito encontrá-la sábado (16) no baile de Carnaval lá em Harmonia para conversarmos mais um pouco.
   Um abraço,
   Pio


Pio em 1980, com 22 anos.


Bere em 1979, final do ano, com 18 anos.

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