sábado, 15 de fevereiro de 2014

Meia Praia, Itapema, 30 de Janeiro de 2014



   Meia Praia, 30 de Janeiro, 2014

   O dia amanheceu para mim mais cedo. Cinco para as cinco da manhã estava eu acordado, sem sono. Mas a terra ainda se mostrava completamente escura. Lua enorme e minguante no céu, bocejando na despedida da madrugada. E a data me puxou. De cara, lembrei. Nossa, 30 de Janeiro, a data mais importante de minha vida! E eu de madrugada sozinho, no quarto da casa 195, em Meia Praia, Santa Catarina, pensando como faria para superar esta data, como faria para passar este dia, na boa. Há 32 anos, Bere e eu selávamos nosso casamento na igreja de São Sebastião, prometendo amor, respeito, fidelidade e parceria para o resto de nossas vidas. E isto aconteceu. Amor eterno, Respeito. Respeito sem igual, de verdadeiro sentimento de limites entre os direitos de cada um, onde víamos em nós, de mim para ela e de Bere para mim, o direito de termos nossas diferenças e delas termos nossos momentos, alegrias, amigos, encontros e conversas, cordialidades, inerentes ao casamento e independente se homem ou mulher nesta amizade, porque nos respeitávamos. E o respeito impunha a nós, nossos limites. Um relacionamento de fidelidade à prova de qualquer suspeita e parceria inigualável. Este é o verdadeiro teor de um casamento. O respeito. Assim, eu tinha e tenho amigas e ela tinha amigos. O casamento se potencializa com estas diferenças e apaga a besteira de se ter ciúmes. Afinal, quem ama tem inserido neste amor a fidelidade, não precisa provar. Estes anos todos com este respeito entre nós foram tão bons! Divinos! Só que eu não imaginei que isto fosse levar tão pouco tempo, pois 31 anos depois de tanta reciprocidade passaram voando e a vida veio e subtraiu Bere de meu convívio sem perguntar, nem chance de argumentar. Até hoje sinto dificuldades em aceitar isso. Mas procuro assimilar.  
   Fiquei revirando na cama, lembrando a data, e logo aquele apertar de garganta mostrou o prazer a que veio, enchendo meus olhos de uma saudade tamanha, que nada no mundo possa se comparar. De agora em diante, para sempre esta data seria somente mais lembrada e não comemorada, pois Bere não estava mais aqui. Não teria mais nada a comemorar, só relembrar. Tudo naquele dia foi difícil. Levantar e botar o café da manhã a passar, lembrando do cheiro do café da manhã passando misturado ao cheiro do filtro solar das roupas no tanque esperando serem lavadas e o cheiro da salada de cebolas na geladeira que havia sobrado no dia anterior, quando a abri para pegar o pote de margarina. E as canções do Simon & Garfunkel no cd ao lado do microondas, com uma coletânea de seus sucessos do passado ainda na bandeja do aparelho. Há um ano esta mistura de aromas inconfundíveis selava nossa parceria numa praia paradisíaca, Meia Praia. Bere e eu, dançando de manhã cedo na cozinha, de rostos colados, apaixonados, "Bridge Over Troubled Water", enquanto esperávamos o café passar. Nunca imaginei que esta 'ponte sobre águas turbulentas' - a tradução deste título musical, fosse se refletir um ano depois em minha vida com minha grande e única paixão, agora tão efêmera como a frágil ponte para atravessar um rio turbulento, igual à canção. Nossa ponte em 2013 teve que ser amarrada diversas vezes para sustentar nossas provações. e mais uma vez o amor incondicional fêz sua parte, dando passagem sobre este rio turbulento. Fiz questão de trazer o cd da coletânea para ouvir na manhã deste dia 30. E o toquei enquanto passava o café, do mesmo jeito como do ano passado. Faltou o resto da salada de cebolas na geladeira. Em compensação, um pote de salsa e cebolinha picada estava perfumando o interior dela. E eles, Simon & Garfunkel, com suas vozes marcantes, nesta linda canção, me trouxeram a cena toda do ano anterior de volta, presente neste mesmo local, nesta mesma cozinha, com os mesmos aromas. Meu convite para Bere dançar comigo e a relutância dela em aceitar dizendo: "Estou descabelada." - Eu a tomei nos braços, ela cedeu, deixou se envolver e a dança iniciou. Nossos passos, balançando no ritmo da melodia, a parada para mais uma enchida de água fervente no filtro do café para passar, nosso abraço de ternura, nosso tropeçar na mesa por estarmos dançando de olhos fechados, seguido de risadas adolescentes e nosso encarar doce, apaixonado, de quem realmente estava vivendo a simbiose deste grande amor. E enquanto a melodia rolava, ficamos parados nos segurando nas cinturas, cheiro de café no ar e eu acompanhando a melodia, cantando num sussurar: "Like a bridge over troubled water I will lay me down." - Bere, me encarando, seu negro olhar, me disse: "Conquistamos tudo isto, vamos manter!" - Me abraçou, deu um beijo suave em minha face. Eu quis revidar como outro beijo mas ela impediu: "Não, na boca não. Ainda não escovei os dentes." - Então terminou a melodia, café passado, preparamos a mesa e tomamos café. Só nós dois, enamorados, eu esmaguei a banana no prato dela misturada com açúcar, banana caturra, para colocar sobre o pão, e ela fatiou a banana catarina no meu prato, para eu comer em rodelinhas, acompanhada de fatias de pão. Rimos, muito, parecíamos iniciando um namoro. Os meninos ainda estavam dormindo. Em seguida, ela preparou meu café com leite e eu enchi sua xícara com café preto. Fizemos tim-tim com as xícaras para comemorar e rimos largado. Bere disse, como gostava de dizer quando tínhamos estes momentos moleques: "Frech bubche!" (malandrinho - em alemão). Eu olhei sério para ela e respondi: "Main Lebche!" (minha Vidinha!). 
   Lembro também de todos os nossos detalhes do ano passado à beira mar: o mesmo garçom na praia, o mesmo chato recolhedor de latinhas com sua voz rouca e seu óculos de sol de camelô, de armação branca, espelhado, importunando as mulheres da praia, e a mesma família de índios vendendo artesanato. Não vi o garotinho que no ano passado vendera uma pulseira de artesanato indígena para Bere e para quem ela deu dinheiro a mais para comprar refri. Mas vi a indiazinha. Franzina, de lá de seus doze anos, olhar de quem está fazendo aquilo por obrigação e não porque quer, oferecendo os produtos artesanais de sua tribo, lá pela hora do meio dia. Torradinha do sol, cabelo muito preto e desgrenhado, olhinhos puxados, cheirando a xixi misturado com suor, de pés no chão caminhando sobre aquela areia escaldante, oferecendo seu artesanato. E ninguém querendo sequer ver os produtos oferecidos, quem dirá comprar. Mas eu me lembrei de Bere e sua atitude do ano passado: chamei a indiazinha, pedi para ver seus produtos e comprei uma pulseira artesanal, com uma concha no meio, muito linda.  O preço? Cinco reais. E do mesmo jeito como Bere fez no ano passado com o indiozinho, eu puxei uma nota de dez reais e dei a ela, dizendo para comprar algo para ela com o troco. Mais tarde a vi sentada no banco embaixo de uma jovem amendoeira, no calçadão à beira mar, comendo um saco enorme de salgadinhos juntamente com duas pequerruchinhas, que desconfio eram suas irmãs, comendo com ela. Este provavelmente foi seu almoço.
   O meu dia na praia foi este. Muito carregado de sensações e sentimentos indescritíveis pois para todo o lado que olhava sentia a presença, ou melhor, a ausência presente de Bere. Faltaram seus comentários sobre as pessoas que frequentavam a praia, me apontar mulheres bonitas, e gostosas, destacando suas formas, sugerindo olhá-las para ver as belezas deste mundo. Vi os vendedores de roupas e tantas outras coisas, que ela fazia questão de chegar, apalpar os produtos e sentir o quanto de bons eram. Faltou o sorriso dela para mim embaixo do guarda-sol dizendo: "Vidinha, a melhor praia de nossas vidas!" - Faltou tudo. Aquela lata de coca que ela não tomou, aquela caipirinha servida em mesinha personalizada do Surf Bar da beira da praia que ela adorava tomar, e o suspiro no último gole: "Se eu ficar bêbada, não vai me repreender?" - E eu por mais que desejasse que um momento desses acontecesse, nunca vi Bere bêbada. Faltou também ela dizendo: "Compra mais uma cerveja, que esta é por minha conta!" - Era a cerveja mais gostosa do dia. Faltou na volta da praia ela combinando o almoço comigo, fazendo o pedido das comidinhas que ela mais gostava: "Quem sabe faz um purezinho de batatas e aquele bifinho fritinho que só tu sabes fazer?" - Eu assentir, dar um beijo com gosto de filtro solar e caipirinha, responder: "O que não faço por ti?" - Ela sorrir, dizendo que o chuveiro pertencia primeiro ao cozinheiro da rodada, no caso, eu. E senti. Um sentimento vazio de falta e cheio de lembranças. Relembrando tudo isto do ano passado, senti profundamente todo o caminho da volta da praia. Fui caminhando na frente de todos, para que não me vissem assim, amargando a falta do complemento meu desta data, a falta de minha Vidinha. Não quis estragar a alegria da praia de ninguém pela minha dor de sua ausência. Bere estava tão presente em toda esta paisagem, na cara das lojas, farmácias, vitrines, que por onde passava, parecia sentir ela abanando para mim, pedindo para dar uma paradinha para ela entrar e ver os produtos daquela loja. E eu, lembrando que estava cumprindo um de seus últimos desejos em vida, o de voltar a veranear na mesma casa do ano passado, em Meia Praia, Itapema. Foi muito marcante. Talvez não teria sentido tanto se fosse à praia em outro lugar, pois nesta casa tudo me remeteu a ela. Mas eu sempre fui de enfrentar tudo de frente e sabia que passaria por isto. No fim, se for somar entre alegrias e os momentos de saudades da ausência de Bere, posso dizer que valeu a pena reviver tudo aquilo. E com certeza, se tivesse ficado em minha casa, onde todo o ambiente ainda tem a mão e o carinho dela, eu sentiria muito mais a passagem desta data.


Bere amava praia.


Bere em 2013 na mesma praia, escolhendo uma pulseira do artesanato indígena e o indiosinho pra quem pagou um refrigerante.



Em 2013 no veraneio, algumas vezes esta cena se repetiu. Bere adorava passar os dedos nas roupas para sentir sua qualidade. Acabou ficando com aquela saída de praia branca que aparece no lado direito da foto.

Um comentário:

  1. Dói minha amiga, dói muito. Mas a vida está me ensinando aos poucos a lidar com esta dor. Sinto que com o tempo tudo será administrável. Inesquecível, mas suportável.

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