domingo, 19 de janeiro de 2014

A Pia




A Pia

   Vidinha, eu estava ansioso para conversar mais uma vez contigo. Sei que pode parecer estranho, pois é um monólogo, mas sinto como se isto chegasse a ti e eu na imaginação consigo ver tuas respostas somente pelo teu olhar encantador, que tantas vezes me fascinou. Estas duas pérolas negras que sempre me voltam à mente, me encarando docemente, do mesmo jeito como foi aquela noite de Fevereiro de 1980, mais precisamente dia 9, lá em Harmonia, no salão Fink, quando de supetão perguntei: "Quer namorar comigo?" - Este olhar. Exatamente este olhar que fizeste pra mim ao receber esta pergunta. Este olhar, negro olhar, doce, angelical. E tua resposta na sequência, sem titubear: "Aceito!" - Pois imagino teus olhos assim, desse jeito, conversando comigo. Por isto escrevo.
   O motivo que me levou a iniciar este papo contigo Vidinha, foi por tudo que a lembrança de ti, me trouxe de volta a mim, quando fui trocar o pano de louça da pia da garagem. Abri a gaveta, a de cima no lado direito da pia e vi aqueles rolinhos de panos feitos com toda a tua dedicação, ali colocados por ti lado a lado e separados por tipo de tecido. Arrumar aquela pia foi tua última atividade em vida, lembra? Tremo ao escrever. O que acabei de dizer é muito intenso, marcante. Teu último trabalho em vida foi este. E por isto é tão marcante. Ninguém jamais imaginou que seria assim, um arrumar de pia tua última ação, mas foi. Tremo porque ao escrever, estou comprometido em colocar no papel os fatos reais deste acontecimento. Lembra querida, já fazia tempo que queríamos trocar esta pia pois a outra já tinha lá seus vinte anos. Deu vazamento no cano, na parede, tivemos que chamar um encanador. Ele arrumou, mas por causa do vazamento, deixou o móvel comprometido. Então me pediste para comprar outra. Eu queria muito, até insisti, pedi, queria que tu fosses comigo à loja para tu escolheres o modelo, pois teu gosto para as coisas de casa sempre foi muito mais acertado que o meu, mas já estavas muito debilitada para isto. Pediste que eu fosse e escolhesse. Mas lógico, como não poderia ser diferente, afinal tu Bere, com teu discernimento visionário, me deixou recomendado com o tipo de modelo que sonhavas em colocar ali. E encontrei exatamente este modelo numa loja de nossa cidade. Me lembro do teu sorriso de satisfação ao ver o modelo que eu havia escolhido. E ao ver a pia nova instalada, o beijo gostoso de aprovação que me deste pelo modelo que eu havia escolhido. Então pediste para eu colocar uma cadeira em frente ao móvel para tu poderes organizá-la sentada, já que para ficar de pé não tinhas mais as forças necessárias. Certamente naquela função de organizar tudo neste novo móvel não imaginaste que jamais tirarias qualquer coisa de lá. Jamais. Partiste deixando a obra sem voltar a mexer nela. Afinal, porque depois de teres fechado aquelas gavetas organizadas e aquelas portas guardando panelas e utensílhos, nunca mais as abriste porque o destino te levou uma semana e pouco depois. Mas a tua obra ficou lá. Intacta. Deixei tudo como tu organizaste e quando preciso tirar algo dali, sempre devolvo do mesmo jeito, afinal, foi a tua última obra feita com toda a dedicação e carinho, como tudo o que fizeste em vida. Uma obra de detalhes, de lógica e de organização, assim como tu sempre foste. Aliás, teu jeitinho doce de colocar as panelas na sequência, da maior até a menor, eu continuo mantendo também na pia da cozinha. Mas quando resolveste ocupar aquela pia da garagem com o que na velha continha, eu até desaprovei. Sabia da tua condição frágil. Lembro que fiquei apreensivo porque demoraste quase uma tarde inteira para organizar aquele pequeno espaço. Te observei de longe e vi quantas vezes paraste para descansar ou massagear os braços devido às câimbras frequentes. Tua teimosia em fazer, lutando contra tua fragilidade do tratamento. Este era teu jeito Bere de ser. Tua força de vontade se sobrepondo a tua condição física já tão debilitada. Te ouvi cochichar não só uma vez para ti mesma: "Vai dar certo! Vou conseguir organizar esta pia!" - Fui diversas vezes até ali, dizia: "Vidinha, quem sabe, deixa isto, eu arrumo de noite!" - E tu, parecendo estar pressentindo que esta seria tua última obra, teu último trabalho, retrucavas: "Querido! Eu quero deixar do meu jeito. Sabes que eu sei fazer com que fique mais prático." - Então, vendo que tinhas escolhido a primeira gaveta para colocar os panos de louça e a segunda gaveta para os talheres eu questionei: "Amor, não ficaria mais prático colocar os talheres na primeira gaveta e os panos de louça na segunda?" - E tu, com teu jeito sempre acertado de raciocinar com lógica perfeita, respondeste: "É difícil organizar uma gaveta com esta montanha de talheres que tem aqui. Olha só:" - fechou a primeira gaveta e puxou a debaixo. - "mesmo arrumada esta gaveta de talheres parece confusa! ...Então, se um dia alguma visita for querer um talher, vai puxar a primeira gaveta. Vai ver que está organizadinha com os panos de louça. Então, ao puxar a segunda gaveta para pegar o talher, não vai notar tanto a bagunça porque tem na mente a imagem da primeira." - Me encheu agora os olhos de água querida! Tu sempre tinhas uma resposta sábia porque pensavas com lógica. Se agora relembro isto, é porque já fui duas vezes lá, abrir de novo a gaveta de panos de louça e não canso de ver a organização que deixaste. Dá vontade de nem mexer mais ali, sério! Para deixar como tu deixaste, afinal, foi teu último trabalho. Por isto estou sempre repetindo os dois mesmos panos de louça naquela pia, para não mexer em tua organização. Sempre pego o de cima e os debaixo ficam como tu colocaste.
   Quero te dizer também, minha doce e adorada Vidinha, que tudo aqui em casa ficou como deixaste. Até inclusive, coloquei os guardanapos natalinos enfeitando todos os móveis como tu fazias, aliás, a Noeli colocou, e agora que passou este período, os lavei, Andréia passou e devolvi pra mesma sacola onde tu tinhas guardado eles e me mostrado, para usar no próximo Natal. Os enfeites também foram para o móvel da TV da sala, todos ensacadinhos para não pegarem poeira, do jeito como tu vinhas fazendo. E eu pedi para Noeli devolver todos os guardanapos que tu tinhas deixado, exatamente do jeito como ficou. Aliás, algumas pessoas me disseram que eu tinha que mudar tudo aqui dentro de casa para diminuir minhas lembranças de ti. Mas eu não quero. Minha casa é teu santuário. Quero ter tuas lembranças todas presentes o máximo possível enquanto eu me sentir bem assim, já que não é mais possível ter a tua presença física. E me sinto muito bem assim, com tuas imagens no porta-retratos digital, no quarto, tua organização em todos os armários, tuas coisas guardadas com lógica pefeita no quarto de visitas, na despensa, na cozinha, na sala, e tuas coisinhas, roupas e teus cheiros nos armários do quarto. Tudo isto ainda é um pouco do teu pulsar em minha vida e que me ajuda a viver na tua ausência. Melhor, na minha vida e da dos nossos filhos, que não questionam esta minha atitude em preservar teus traços em nossas vidas. Acho que eles também se sentem bem assim. Senão já teriam reclamado. Não quero mexer. Tua presença nestes detalhes me faz bem. Me faz muito bem, me faz sentir um pouco da vida que tínhamos em comum durante estes 31 anos de convívio. E mesmo eu não tendo a tua pessoa física comigo, nestes detalhes eu consigo sentir um pouco do físico que convivemos. Pra que mexer? Eu quero assim, como está, e não sei por quanto tempo ficará assim, pois enquanto estiveres tão presente em meus pensamentos e em meu coração não vou mexer. Nem minha aliança ainda tirei. Me sinto ainda casado contigo, Vidinha. ...Nossa, confesso que imaginei o brilho dos teus lindos olhos negros ao ouvir o que acabei de falar. Mais uma vez, confesso que fiquei emocionado. E como é bom emocionar! Alivia, e isto é o que importa. fica bem em teu plano, meu amor. Não sei sua dimensão, mas com certeza está mais pro lado divino do que eu. Te amo. Beijoooo. Pra sempre, minha Vidinha.


este olhar. Exatamente este olhar. Inconfundível, doce, eterno.


Gaveta a pia que Bere arrumou. Seu último trabalho em vida. Não vou mexer.


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