sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Quatro Meses sem Bere. Viúvo.



Quatro Meses sem Bere, viúvo.

   Volta e meia eu me pego contando o tempo para tentar acelerá-lo e assim distanciar-me do acontecimento mais marcante de minha vida, que foi a partida de Bere para outro plano. Porque este acontecimento me matou também. Morri junto com ela. Só que eu, diferente dela, tive a chance de voltar à vida. Porque meu fio à vida continuou ligado. Ela não. Ela teve sua vida levada, seu mundo subtraído, seus sonhos apagados. Sem perdão. Um acontecimento inimaginável. Inexplicável. Indelével! Algo que palavras não descrevem. Nunca. Já havia perdido pessoas próximas a mim, mãe, pai, sogro, sogra, mas nem se compara à sensação de perder aquela tua parte que foi teu todo. Como ela dizia: "Meu tudo!" - Assim era ela para mim também. Meu tudo, meu todo, minha base! E, sem base, com este acontecimento, todas as coisas em minha vida deixaram de ser importantes. Todas! Tudo virou banalidade, nada mais importou. Meu serviço, minha saúde, minha vida, meus objetivos, minhas metas, o que eu comeria, o que faria ou deixaria de fazer, dinheiro... tudo sem graça, tudo tanto fez. Meu mundo ficou como se fosse um filme de uma história, onde o fim não importaria mais, porque a mocinha havia morrido no meio do filme. E isto fazia tudo o que viria depois não ter mais graça. Na época, as únicas motivações que me levaram a reagir foram nossos dois filhos e ir atrás de continhas que ela tinha em aberto para deixar tudo pago, seu nome limpo. Porque por diversas vezes em vida ela me alertou: "Quando eu faltar, não quero meu nome sujo. Paga tudo o que eu estiver devendo. É só olhar na minha agenda. Anotei tudo!" - Está tudo pago. Peguei a agenda e fui atrás. Seu nome está limpo na praça. Seu desejo foi cumprido. E em todos os lugares onde passei para pagar, as pessoas me falaram do amor e carinho que Bere sempre teve para com atendentes e lojistas. E isto me animou. Bere era assim: um sorriso, um 'muito obrigado!' 
   Agora já se somam quatro meses. Sabe o que é ficar cento e vinte e dois dias sem mais ouvir a voz de Bere? Pode imaginar o vazio que isto me causa? Sabe o que é ficar este tempo todo, quatro meses, sem mais ver seu suspirar de emoção por ouvir de mim um 'Eu te amo'? Sabe o que é ficar vendo estes meses caminharem e eu nunca mais ter ouvido de manhã cedo ela me cutucando na cama e dizendo: "Vidinha, são sete e meia. Vê se não perde a hora! Estou indo pro serviço! Vê se não cochila mais e levanta. Está na hora! E também, o dia está lindo! Vale a pena levantar!" - Ela se abaixar, me dar um beijo suave na testa e num sorriso na face com seu belo e negro olhar cochichar: "O tempo passa, mas meu amor por ti cada vez aumenta mais!" - E eu, depois de algum tempo levantar, abrir a janela do quarto esperando um sol radiante e descobrir uma garoa fina e chata caindo do céu. Eu pensar: "Mas o que tem de lindo este dia?" - E a resposta proposital de Bere estar ali, quando cheguei na cozinha e vi um bilhete embaixo do bule de café dizendo: "Lindo dia! Obrigado Senhor pela garoa." - Pena que não guardei um bilhete destes! 
   A falta de Bere é marcante em cada detalhe. Mesmo deixando tudo dentro de casa como ela havia deixado, falta ela. Sabe o que é abrir a geladeira e ver aquela meia dúzia de potes de geleia, todos mofando por ninguém ter mais usado? E lembrar que só ela gostava de geleia? De banana. Adorava. Tinha até dois pela metade, do mesmo sabor. Ontem fiz uma limpa e botei tudo fora. Oito potes de diversos sabores de frutas. E chorei. Chorei sentado à mesa onde ela sentava, do lado da porta do poço de luz, lembrando daquelas fatias de pão caseiro do supermercado Cruz que ela adorava comer, coberto com uma generosa camada de geleia e por cima, uma generosa camada de nata. Para ela, este era o banquete. E uma xícara de café preto, sem açúcar. Não precisava mais. ...Todas as lembranças, que para muitos são bobagens, mas que para mim são como pistas que levam ao belo mundo que construímos, ao doce lar que se criou com todos estes detalhes. Sabe o que é estar cozinhando e não ver mais a cena se repetir de Bere chegando da sala com um calhamaço de folhas organizadas com clips, juntadas com três atilhos, embaixo livros de escrita fiscal e em cima equilibrando uma calculadora? E ela soltar isto tudo em cima de um banquinho de apoio, sentar no outro, suspirar e dizer: "Nem imagina, contabilidade é difícil! Mas cozinhar é mais difícil e te admiro por isto! ...Terminei Vidinha! E fechou tudo de primeira!" - Como tantas vezes ela repetiu. E tudo isto culminar com um abraço, um beijo e eu dizer feliz: "Esta é minha Vidinha!" - Sabe o que é chegar de tardezinha, eu olhar para o vidro da porta do estúdio e não ver mais Bere me mostrando a cuia do chimarrão, me indicando a calçada na frente de casa onde iria me esperar? A gente ficava duas horas ou mais sentado, conversando e fazendo nossa vida ser capítulos de verdade, onde trocávamos todas as nossas conquistas, dúvidas, angústias e alegrias. A hora do chimarrão do fim de tarde era algo tão importante no nosso relacionamento diário, que por enquanto está suspensa. Não tomo mais chimarrão de tardezinha. Tentei algumas vezes, mas só choro. As lembranças dela se tornam tão vivas, presentes e fortes por demais, eu não me sinto bem. Falta a vez dela de pegar a cuia, tomar um gole e iniciar mais um assunto enquanto me encarava com seu profundo olhar. Talvez um dia volte a tomar chimarrão de tardezinha, mas por enquanto prefiro ficar trabalhando e me concentrando focado no serviço, para não lembrar que aquele momento está passando e que era o nosso momento especial, único. 
   No mais, aos poucos, vou somando pequenos bons momentos diários, até que meu dia novamente esteja completo. Confesso que ainda estou convalescendo. Ainda não somo todos os momentos para um dia pleno. Só que se eu comparar meu mundo do fim de Setembro do ano passado com o dia de hoje, vejo que ele já tem cores novamente. Deixou de ser preto e branco e deixou de ter somente nuvens. Deixou de ser o filme onde a mocinha morreu no meio da história porque o mocinho ainda vive e ele continua no enredo. A contagem do tempo, porém, não é tão fácil de acelerar. Me iludo com isto. Porque quanto mais o tempo passa, mais sinto a falta de toda esta vida que construímos juntos nestes anos todos, dos detalhes que só as mulheres sabem fazer e criar, e dos aromas de tantas coisas dentro de casa. ...Um bolo assando no forno. O Guilherme anda fazendo bolo de vez em quando, quase uma vez por semana. Mas, parece que no ar não tem o mesmo aroma! Talvez seja porque Bere botava o bolo no forno e começava a passar algum produto cheiroso no granito da cozinha para limpar, ou algo na água para passar um pano na garagem. Acho que esta mistura de cheiros dava a química real de aromas inesquecíveis. Procuro assimilar dentro do aroma de um bolo assando no forno o mundo de Bere, mas não consigo. Além destas várias coisas que ela fazia ao mesmo tempo, ainda tinha o próprio perfume dela. Bere sempre se perfumava. E ela caminhando dentro de casa deixava em seu caminho nuvens de bons aromas aos borbotões. Um rastro inconfundível de boas lembranças. Tantos perfumes bons, de várias marcas, que ainda estão dentro do cesto em cima da pia. Alguns pela metade, outros num restinho e outros quase cheios. Até tem dois comprados guardados no armário, intactos, que ela nem chegou a usar. Quando bate fundo a saudade, aperto algum perfume do cesto para espalhar seu aroma no ar. Mas o aroma não é o mesmo porque perfume se soma à pele e é ali que ele cria sua identidade. Está faltando a pele de Bere para completar a magia daqueles aromas inebriantes.
   Olhando para nossa casa, de onde muitos tijolos, cimento, móveis e utensilhos são resultado do fruto do trabalho de Bere, novamente me sinto chateado. E um nó se instala em minha garganta, lembrando do quanto de esforço dela está dentro desta estrutura que é nosso lar. Que todo este empenho e esforço dela ficou para nós, seu marido e filhos. Até a cor da pintura da casa foi ela quem escolheu. Enfim, Bere ainda está presente nisto tudo. Então eu penso: "Realmente tudo valeu a pena. Pois com tudo o que ela fez em vida, deixou sua história linda para eu poder contar."


Seu belo e negro olhar mostrando uma sinceridade indescritível.



De tardezinha, hora do chimarrão, hora para compartilharmos os acontecimentos do nosso dia.

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