segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

O Cantinho



   O Cantinho.

   Ontem desfiz o cantinho da sala de jantar onde Bere havia improvisado seu 'escritório remoto'. Ela amava seu trabalho. Mexer com números, dados, balanços, enfim, o lado contábil das empresas fazia seu mundo. E ela assumia a tarefa de cada empresa para quem fazia a contabilidade com tanto empenho que dizia: "As minhas empresas!" - Tudo sempre fechado em centavos. E por tanto amor a sua profissão, durante as duas primeiras semanas após a sessão de quimioterapia ela trabalhava a partir de casa remotamente. Isto porque a imunidade fica quase zerada neste período e é perigoso no contato com outras pessoas contrair alguma doença que poderia até ser fatal. E ela, mesmo meio enjoada por causa do tratamento, se empenhava com tanto afinco, que quando via, era quase meia noite e ela ainda estava lá, alimentando o sistema via internet, com seus dados, para manter as escritas em dia.
   Bere tinha o hábito de trabalhar com a TV ligada. Ela dizia: "Eu raciocínio melhor. Quando me pego na dúvida, olho para a TV e aquilo me inspira. Encontro logo o caminho." - E o trabalho fluía. Numa dessas vezes, ela encontrou uma dúvida séria sobre onde lançar um dado. Era algo inusitado sobre uma situação, que não lembro mais qual, eu pouco entendo de contabilidade, mas que ela em toda sua carreira nunca tinha pego. Então, a novidade a fez pensar em voz alta durante dois dias até encontrar a solução. Eu achava engraçado, pois volta e meia a pegava gesticulando e falando para consigo: "Bom, se a venda foi feita eu tenho que encontrar onde encaixar isto!" - E o tempo caminhou. Até que um dia de tardezinha ouvi aplausos e gritos de:"Yesss, yesss, yesss, isssa!" - Fui até ela e ela toda faceira contou que havia encontrado a solução para o problema. E lá foi ela anotar em sua agenda a solução para, caso fosse novamente encontrar um problema como o que havia pego, saber logo como resolver. Eu, feliz com a conquista dela, pedi que ela ficasse de pé. Queria abraçá-la, beijá-la. Ela puxou sua cadeira para trás, ficou sentada e disse: "Sei o que quer. Mas eu não vou levantar. Quero ver se tu ainda consegues me levantar no colo." - Eu fui, tentei, até a ergui um pouco. Mas não consegui, a devolvendo para a cadeira. Ela, num sorriso maroto, continuou com seus braços em volta de meu pescoço, roçou seu nariz no meu, me fixou com o negro olhar e disse: "Um dia me carregaste no colo para dentro do nosso quarto. Foi a melhor viagem que fiz!" - Eu respondi: "Ai que lindo, Vidinha! Foi a minha melhor viagem também e a trilhamos tão bem em todos estes anos. ...Mas sobre carregar, eram outros tempos. Eu era mais forte, tu eras mirradinha, fácil de carregar."- Ela, em altas gargalhadas retrucou: "Tá me chamando de gorda, é? ...Não gostei!" - E rindo, me beijou. Ela havia emagrecido bastante durante o tratamento. Então falei: "Amor, não quero atrapalhar. Vou te deixar a vontade, para continuar teu trabalho." Já ia me virando para sair da sala, quando ela agarrou meu braço e me puxou de volta, dizendo: "Senta aqui, Vidinha." - Puxei a cadeira ao seu lado, sentei, e fiquei esperando o que ela iria me dizer. Ficamos um  tempo assim, conversando somente com o olhar, ela me estudando até os confins de minha alma e eu com meu olhar indagador. Senti perfeitamente em seu olhar algo como: "nossa, no que virou nossa vida!" enquanto seus olhos enchiam de água. E já me desceu também um nó na garganta, pois sabia que ela teria algo importante para dizer, senão não teria protagonizado esta cena. Bere, olhou para o forro, coçou levemente a cabeça sob o lenço que envolvia sua calvície, respirou fundo e disse: "Pio, estou muito chateada com a vida que ando te dando estes últimos meses. Não saimos mais, não realizamos mais nada, não fazemos mais nada, para tudo dependo de ti. Estou deixando tua vida completamente vazia, sem sentido." - Volta e meia uma lágrima corria do canto de seus olhos. Eu respondi: "Que sentido teria minha vida se eu não fizesse tudo por ti? Tu és meu sentido! Isto é que importa!" - Ela, fixando seu olhar doce, negro na minha alma, lendo minha sinceridade, continuou: "Mesmo que eu seja só obrigação no teu sentido, por estarmos casados? ...Eu não quero isto pra ti. Vê no que transformei tua vida! De brilho virou cinza, escuridão, e só mais sobrou disto tudo meio eu. ...E tu sabes que estou sendo menos do que a metade do que eu era, não preciso nem falar. Basta me olhar." - Tentei falar, mas ela tapou minha boca com sua mão, senti o salgado de sua lágrima que tinha acabado de tirar, e continuou: "Psst, só ouve, deixa eu falar! ...Minha dívida para contigo Pio, tá ficando grande demais. Eu sinto isto no teu olhar, no teu jeito de ser..." - Começou a chorar, "tu não és mais feliz. Eu sinto isto. Em  todas as tuas atitudes. ...Desde o programa na rádio onde tentas mostrar tua alegria, mas eu sinto que é falsa. ...Tu estás ruindo por dentro e queres ser forte. ...Tenho medo que isso vá te fazer mal. E eu não quero carregar mais esta culpa comigo. ...Vai, Pio, desaba! Não guarda isto tudo, vai te fazer mal! ...E se isto me prejudicar, paciência, minha metade inteira vai tentar sobreviver." - Eu estava chateado com o que ela havia falado. Por ser verdade. Claro, meu brilho havia diminuído, afinal, estava com a pessoa mais importante de minha vida doente, condenada. Mas ela, mesmo sendo a metade como disse, era o meu todo e o tudo para mim. Não a via diferente. Jamais pensei nela em 'metade'. Sempre pensei no todo do que dela ainda sobrara. Coisas que ela deixou de fazer por necessidade, limitações ou falta de vontade, fazem parte de uma virada de vida como Bere havia tido. Ela não tinha culpa. A vida adoece as pessoa à revelia, não existem culpados. E eu estava buscando dentro de mim as palavras certas para responder a toda esta situação que ela havia criado. E não sabia o que falar. Porque sempre fomos sinceros, e eu não queria ruir naquele momento com ela tão frágil, tão necessitada. Precisava de mim forte. Então falei: "Vidinha, tu estás muito pra baixo. Levanta este astral! Se dizes que estás só mais metade, nossa, imagina quando novamente estiver inteira. Vou passar trabalho contigo!" - Ela sorriu entre seu olhar marejado e disse: "Bem que se vê que nos merecemos: ambos estamos sendo falsos para parecermos fortes. Então deixa assim, vamos nos somando."
   Comecei desfazendo o cantinho dela tirando o notebook que ela havia comprado especialmente para seu trabalho remoto. Guardei. tirei o teclado externo que ela usava por causa da calculadora, tirei mouse e bloco de anotações. Dentro dele, nada de especial, somente uma que me chamou a atenção: "Pedir Pio comprar talco mentolado." Tudo guardado, a toalha que usara sobre a mesa improvisada onde tinha uma mancha de café foi pra máquina de lavar. Sobrou uma caixinha em cima da mesa. Nunca havia aberto ela. Abri. Tinha caneta, lápis, uma latinha de balas, um apontador, um batom e um pendrive. Embaixo disto tudo 4 dos tantos bilhetes que eu havia escrito acompanhando flores ou presentes e que ela guardava para reler quando tivesse vontade. Coloquei o pendrive no pc para ver o que tinha dentro dele. Quando ele abriu, não consegui segurar a emoção: tinha o curso de inglês que ela queria fazer, para quando fôssemos viajar para o Caribe ela ter a mínima noção para se comunicar. Chorei um monte, lembrando deste sonho que também ficou para trás, como o próprio curso de inglês. Tinha também uma folha do bloco de notas onde ela escreveu: 
   "Viver. Viver sempre. Plenamente, feliz. E não ter a vergonha de ser autêntica. Mesmo que doa. Eu vivo plenamente isto. Obrigado Senhor pela família que tenho, eles são meu mundo e Pio é meu tudo." 


Os quatro bilhetes que estavam dentro da caixa sobre a mesa.



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