terça-feira, 24 de março de 2015

18 Meses sem Bere, Viúvo.




18 meses sem Bere, viúvo.

   Hoje estou há um ano e meio afastado de Bere. O destino a me levou. O que posso dizer? O sentimento da ausência dela ainda está muito presente. Toco minha vida normalmente, mas tem momentos onde a falta das coisinhas bobinhas que aconteciam em nossa vida diariamente me fazem muita falta. Uma pia entupida, um varal rompido, um bolo queimado, e a chamada de Bere para eu vir correndo acudir. Áh, como estas bobaginhas fazem falta. Fazem muita falta! São estas coisinhas que alimentam uma relação, e não um jantar à luz de velas ou um carro novo. Valorize seus pequenos feitos e defeitos diários, pois são eles que farão você sentir saudades de quem amou e que partiu. E para relembrar este ser especial, esta grande mulher com quem eu tive o privilégio de conviver durante 33 anos, mais um trecho da releitura do livro que escrevi sobre ela:

   "A quimioterapia além da químio, foi uma verdadeira terapia para mim e Bere nessas intermináveis seis horas de sessão, onde ficamos confinados a uma salinha confortável, enquanto a medicação era lentamente injetada no sangue. Revemos muitos conceitos de nossas vidas em nossas conversas demoradas, falamos sobre tantas coisas que daria para escrever mais um livro só sobre estas conversas. Nosso passado, rebuscando lembranças doces e rindo sobre situações que atravessamos juntos. Este belo passado que nos transformou nesta linda simbiose. Falamos muito do presente, do tanto que tudo isto, este acontecimento, estava afetando nossas vidas e no tanto que tivemos que nos adaptar a tudo isto. E algo do futuro incerto também, onde Bere sempre iniciava dizendo: “Quando eu faltar..." – Eu me sentia desconfortável com esta frase. Muito. Mas Bere a repetiu tantas vezes que acabei me acostumando a ela. Numa sessão, em uma de nossas conversas ela iniciou:   
   - Quando eu faltar... 
   Eu xinguei mais uma vez:
   - Este tipo de assunto não me interessa Vidinha. Já te falei que "quando faltar" está muito longe de acontecer.
   E ela retrucou:
   - Repito: quando eu faltar, quero que continues valorizando todas as coisas pequenas que nós juntamos e as fizemos serem grandes em seus resultados. Aquele sorriso, sabe? ...Valoriza ele. E muito! Porque portas se abrem com este sorriso. Tu tens tua simpatia, Pio. Soma ela. Faça mais pessoas felizes e eu estarei feliz por ti. ...Tens dentro de ti uma criança que contamina com tua energia, teu modo de ser. Eu quero que continues sendo assim, este bobão que sempre foi. E não lamentes minha falta...
   Eu já muito chateado, deslocado com sua conversa, cortei a fala dela respondendo:
   - Que assunto esse, amor? Vamos falar de outras coisas, de nosso futuro, que tenho certeza ainda vai ser muito intenso, a viagem ao Caribe, a Portugal...
   E ela, também cortando minha conversa, insistiu em continuar: 
   - Quando eu faltar, Vidinha, não desampara nossos filhos. Continua sendo o que eras com eles e um pouco do que eu seria. ...Vais precisar me acrescentar no teu amparo, nas tuas tarefas, a casa vai se acumular de tarefas que devem ser cumpridas. ...Roupas, compras, logística, e também no cuidado com o pagamento de nossas contas ...já que eu não vou mais estar aqui...
   Bere rebuscou mentalmente o que havia falado e então seus olhos foram aguando lentamente enquanto eu a fitava segurando sua mãozinha que não estava no soro. E ela arremedou com o queixo tremendo: 
   - Do que eu... seria... ...Notou que já falo de mim ausente? ...Nossa, isto dói muito, muito. Não me imagino em outro plano abrindo mão de vocês... A falta que vou sentir de vocês. E a falta que vocês vão sentir de mim... Ainda não tivemos netos querido. ...Quando vierem faça o papel de nós dois. Por mim tá? Sei que não vou alcançá-los. Nossos filhos nem namoradas ainda têm!
   Aquilo me desceu com uma dor sem tamanho, e mesmo não querendo manifestar, quando menos esperei, já estava com os olhos também marejados. A ideia dos netos mexeu comigo. Ela tinha razão. Tentei xingar mais uma vez, mas ela soltou sua mão da minha, botou sobre minha boca a tapando e disse:
   - Meu querido, ouça: sinto que vou faltar. A gente sente isto. E muito antes do que tu queiras ou imaginas. Mas eu te peço sinceramente: toca tua vida. Foca em ti e nos meninos. Não me esqueça, mas não me faça atrapalhar teus passos. Quero ser tua doce lembrança, teu passado bom, nada mais. Tua vida será tua, a tua continuação, com novos rumos, novos horizontes. 
   Eu, marejado, lágrimas pingando no chão, a olhava profundamente enquanto ela falava isto, sua mão ainda tapando minha boca, então Bere disse inconformada, mas doída:
   - Aaaaah, Pio, para de me olhar com pena, vai? Tá me deixando sem jeito! Vivemos tudo o que o amor pode oferecer. Quer mais? Impossível!
   Eu tirei carinhosamente a mão dela que estava tampando minha boca, a abracei meio desengonçado por causa do soro na outra mão que não podia mexer, e choramos juntos amargamente no meio daquele monte de equipamentos da sala de quimioterapia, e enquanto chorávamos cochichei no seu ouvido:
   - Quero que este amor dure ainda muitos anos, isso é o que eu quero!
   Bere, me molhando a orelha com suas lágrimas só sussurrou: 
   - Tudo valeu a pena, isso é que importa! Não importa o tempo que tenha durado. ...Mas eu queria muito que durasse também mais muitos anos.
   E nosso choro chacoalhou nossos corpos no mesmo ritmo, numa dor profunda. No fundo, na salinha, a tv tocando sua programação num volume baixinho e na ante-sala a técnica Jovana preenchendo relatórios sem se dar conta do que acabáramos de conversar vivendo e tecendo nosso drama. Era a hora do meio dia e tudo estava silencioso. Isto aconteceu apenas dois meses antes de Bere partir."

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