terça-feira, 7 de abril de 2015

Hora da Faxina: Só o Morto não Riu



 Só o Morto não Riu.

   Nos idos dos anos 70 eu fazia parte de um conjunto musical que animava os bailes da região. O mesmo chegou a fazer fama pelo vasto repertório que apresentava e pela afinação de seus músicos. Integravam a banda 9 músicos, dentre eles, um trombonista. Tradição de pai para filho, seu pai também tocara trombone e a música corria em suas veias. Sempre que surgia a oportunidade de tocarmos no salão onde o pai do trombonista era proprietário, a festa era em dose dupla porque o velhinho, na altura dos seus 90 anos era muito enérgico, alegre e ágil, saracoteando por entre as mesas servindo bebidas e batatas fritas, rindo alto, fazendo caretas, deixando todos a vontade. E não se furtava de tocar lá pela metade do baile pelo menos uma ou duas melodias em seu velho trombone de latão desbotado juntamente com nossa banda.

   Quando isto acontecia, ele virava o centro das atenções e todos comentavam sobre a força que ele ainda conseguia imprimir soprando aquele instrumento. Depois de sua apresentação, o baile corria solto e animado e ele retomava seu posto de garçom.

   Após o baile, quando nós descansávamos e comíamos pão caseiro com linguiça regado a cerveja, o velhinho sentava na nossa frente, entregava o cachê a cada músico e intimava:

   - Quando eu morrer, você está convocado a animar o meu velório! - E enquanto entregava o dinheiro que cabia a cada um, ria com vontade deixando aflorar seus dentes com coroas de ouro reluzindo no fundo da boca.

   Quando o velhinho completou 95 anos, foi realizada uma festa muito especial pela passagem das bodas de brilhante, que ele, apesar de viúvo, fez questão de realizar. Ele já era viúvo há mais de 10 anos, mas esta data ele não quis deixar em branco, pois assim, teria mais um motivo para reunir toda a família, netos, bisnetos e tataranetos, parentes que somados enchiam seu salão de baile. E é claro, nossa banda da qual seu filho era trombonista, iria abrilhantar esta festa. 

   Chegou o dia e a fartura correu solta no evento. Carnearam uma terneira, um porco e algumas galinhas. Dias antes o velhinho recebeu de presente dois cabritos que também foram carneados. Fora as galinhas, o resto da carne toda foi assada em forma de churrasco. As galinhas foram transformadas na mais suculenta galinhada de toda a Linha Babilônia onde eles moravam. No alto do morro se via a fumaça saindo pela chaminé da churrasqueira, inebriando o paladar dos presentes com aquele aroma típico de carne assando. As crianças, famintas, já rodeavam os assadores querendo lasquinhas de carne, mesmo que ainda estivesse sangrosa. E alguns dos adultos, já sentindo o chopp nas veias, iam na carona das crianças querendo também lasquinhas da carne assada.

   Acompanhando o banquete serviram massa, aipim cozido, batata doce assada em forno de barro, pão de milho, farinha de mandioca, queijo ralado, salada de batatas em maionese, alface, couve e salada de tomates com cebolas. E para completar, na mais tradicional herança germânica, serviram curtidos de rabanetes, repolho, pepinos e beterraba. 

   A animação corria solta entre os gritos das crianças, risadas dos adultos e das polcas e valsas tocadas pela nossa banda. Foi um evento inesquecível, pois no meio da tarde o velhinho subiu no palco e acompanhou a banda com seu trombone velho, tocando várias melodias saudosas dos seus tempos de músico. A cada final de melodia ele era ovacionado pelos seus descendentes. E isto lhe causou muita satisfação e orgulho em ter uma prole tão grande. Antes de descer do palco, muito animado, pegou o microfone e pediu silêncio. Quando o burburinho aquietou ele disse:

   - Quero dizer a todos que a felicidade que sinto hoje nesta festa é indescritível. Jamais me senti assim! Obrigado por vocês todos fazerem parte desta família! ...e agora, convido a todos para comermos a sobremesa! - Uma grande salva de palmas ecoou pelo salão acompanhado de assobios aprovadores. O velhinho levantou a mão pedindo silêncio e continuou:

   - Mandei preparar sagu de laranja, de bergamota e de vinho. Também tem creme de leite, pêssegos em calda, ameixas e figo em calda. Sirvam-se! Mas antes, quero dizer mais uma coisa: no dia em que eu morrer, esta maravilhosa banda vai animar o meu cortejo fúnebre e tocar uma música de despedida para mim no cemitério.

   Entre diversos adjetivos de admiração e surpresa, no mais restava um silêncio total. Até que o filho dele, nosso trombonista se posicionou ao lado do pai, tomou-lhe o microfone e disse:

   - Só que isto vai demorar muito tempo ainda!!! Sendo assim, vamos tocar uma melodia juntos para animar esta linda festa.

   E a banda iniciou mais uma melodia animada, tendo o solo do dobrado feito pelos dois, pai e filho, com muito esmero.

   Mais três anos se passaram e o velhinho trombonista veio a falecer com 98 anos de idade. É lógico que no primeiro instante a consternação tomou conta do momento. Mas, aos poucos, relembrando tudo o ele vivenciara e levando em conta a sua alegria de viver e seu último desejo, foi decidido que nossa banda tocaria durante as suas exéquias e seu cortejo fúnebre.

   Toda a Linha Babilônia parou para o evento. Era numa quinta feira, manhã fresquinha, com garoa na madrugada e coberta de cerração na manhã. Mas, a capelinha, furtivamente construída do lado do salão, foi aberta para o velório. No amanhecer, aos poucos os moradores e vizinhos foram chegando e fazendo companhia aos parentes que já haviam varrido a madrugada em sua companhia. Nossa banda chegou às 9 horas da manhã, uma hora antes de sua encomendação. Preparamos os instrumentos e adentramos a capela. O ambiente não era consternador, e sim, de uma paz que convidava a todos a se sentirem bem e de certa forma conformados. O velhinho jazia em seu esquife cheio de flores, deixando a mostra somente suas mãos em forma de oração e seu rosto de expressão plácida e tranquila.

   Iniciamos a primeira melodia: uma valsa lenta, melancólica e marcante. Algumas senhoras começaram a chorar enquanto as outras pessoas murmuravam palavras de consolo aos frequentadores. Enquanto as melodias iam se sucedendo, o ambiente de pesado, ficou leve, tranqüilo, límpido e transparente. Parecia que as pessoas ficaram menos pesarosas com a partida do ente querido e que ali jazia alguém que realmente vivera sua vida em toda a sua plenitude.

   O padre chegou. Fez a encomendação do corpo, e, em seguida o cortejo saiu da igreja para o cemitério precedido pela nossa banda. Quem tomou a frente de todos era o gaiteiro, maestro da banda, que esmeradamente estava a tocar um fox tristonho.

   Quando ele desceu a rampa de gramado defronte à capela, coberta de orvalho, escorregou na grama molhada e caiu rolando até a estrada. O declive de uns 2 metros, enquanto ele rolava abraçado à gaita, fez ele manter as mãos nas teclas e tocar notas das mais estranhas possíveis: Nhéee, Nhuuu, Nhiiii, nhóoooo. Tudo soava estranho. Pararam todos. O cortejo parou. Depois de alguns segundos de silêncio sepulcral, só o grunhido da gaita, algumas pessoas começaram a rir. O cortejo se transformou numa gargalhada só. Os portadores do esquife do velhinho o puseram no chão e começaram a rir. Todos riram. Era uma risada uníssona e marcante, da qual jamais se esqueceria.

   E o maestro, abraçado à gaita no chão, permaneceu alguns segundos acompanhando as gargalhadas. Quando se deu conta, levantou e disse para todos os presentes:

   - Bom, acho que o velhinho não vai dar tanta importância a este pequeno acidente. Vamos adiante!

   E ele continuou a puxar a frente do cortejo tocando notas  melódicas de um fox tristonho. Todos tentaram se compenetrar mas era impossível. Agora as gargalhadas ecoavam por entre os montes. Nosso maestro continuou caminhando e tocando. Todos riam. Enquanto ele tocava, a cada puxada de fole onde ele o abria, caía uma grama para baixo saindo das dobras do fole. 

   E o enterro do velhinho não foi alegre, mas foi animado.

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