sábado, 28 de dezembro de 2013

No Apagar das Luzes de 2013




 No Apagar das Luzes de 2013

   Metade deste ano que está terminando foi tensa para mim. Vivi meio ano de muita ansiedade e emoções. E nesta nuvem negra onde embarquei, juntamente com Bere, alguns fatos foram tão pesados, que descobri o tamanho de minha resistência a mexidas emocionais extremas. O ser humano tem uma capacidade inimaginável de se superar. Quando penso para trás, e procuro lembrar onde eu mais balancei, o que mais marcou, revejo alguns fatos. Mas, talvez o mais marcante, sem ser o momento em que ouvi do médico que fizeram de tudo para reavivá-la, mas que ela nos deixou, que partiu, foi quando o doutor, dia 8 de março, 19:30 me chamou para falar sobre a doença de Bere e o diagnóstico sobre seu futuro: "Num caso destes, a sobrevida é de 8 meses!" - Ele me disse na lata. Foi como se tivesse levado uma facada. Doeu muito ouvir isso, sem estar preparado. Até porque uma semana antes deste veredito Bere não tinha nada. Absolutamente nada! Estava completamente saudável. E minha reação na resposta: "Mas ela é tão jovem!" - E ele, friamente respondeu: "A doença não escolhe idade. Infelizmente para ela veio cedo." - E Bere, sentada a 10 metros dali, no corredor verde-água do hospital, preparada para uma tomografia e me esperando para saber de mim o resultado do diagnóstico do médico. Me lembro o quanto tive que segurar minha aflição, quando voltei a ela, ao ter esta notícia, para não mostrar na cara a realidade de seu diagnóstico. Ela estava sentada em uma cadeira de rodas esperando, mas não ouviu nossa conversa. Eu cheguei, coração partido, mente sem rumo, me acocorei na frente dela, passei a mão em seus cabelos desalinhados e nos entreolhamos. E ela me perguntou com seu olhar e eu respondi com meu olhar. E tudo estava dito. Uma pergunta e uma resposta. Só com os olhos. Não tem como esquecer uma cena dessas. Não tem.  Sabe, primeiro o olhar interrogativo dela? E em resposta meu olhar desabonador! Cena de uma troca de incertezas amargas que se instalava em nossos corações e que a partir daquele momento nos levaria através daquela nuvem negra a um destino incerto. Então, ela olhou para o céu, para o nada, fez que não com a cabeça e secou uma lágrima com seu dedo enquanto eu via sua mãozinha roxa onde tomou soro toda a semana. Peguei sua mão, beijei. Ela colocou sua outra mão por cima da minha e ficou me alisando com o dedo num vai-vem de contar do tempo que ainda poderia lhe restar. Eu fiquei olhando para aquelas mãozinhas, amadas mãozinhas, unhas por fazer, onde ainda mostrava o vermelho festivo que havia pintado para a comemoração de meu aniversário uma semana antes. Imaginei o quanto de dor ela tinha sentido com este meu olhar desalentador. Eu estava desmoronando por dentro. Meus joelhos começaram a tremer pela posição desajeitada que me encontrava, mas eu não quis levantar. Continuei acocorado. Não levantaria enquanto ela estivesse segurando minhas mãos tentando tirar o pouco de força que eu ainda tivesse para compartilhar. Instintivamente nos olhamos mais uma vez. E novamente a pergunta em seu olhar marejado. E novamente minha resposta no olhar sofrido. Não foi preciso falar. Ela entendeu. Então, chamaram ela para a sala de tomografia e eu fui pro banheiro chorar. 
   Dali para diante, foi como estar diante do mar, que imprevisivelmente trás suas ondas, assim os acontecimentos foram imprevisíveis. E entre os fatos ruins que aconteceram, alguns bons também trouxeram um pouco de serenidade em nossas vidas. E destes bons, dois diagnósticos foram motivo para nos alegrar. Bere vibrou muito quando depois de uma suspeita de metástase no cérebro o resultado se mostrou negativo. Nossa! Não dá para esquecer sua vibração ao receber o resultado. Comemoramos em casa com uma jantinha feito das comidinhas que ela adorava: arroz, purê de batata com farofa e bifinhos fritinhos no disco. Para acompanhar, uma saladinha de alface, tomate e um vinho tinto suave para ela. O tomate, como sempre, em rodelas, só temperado com uma pitada de sal e azeite de oliva. Para ela foi um banquete. Foi a primeira vez em dois meses que a vi comer com vontade. Com gosto. E sorrir despojada. Então, depois do jantar, os filhos já haviam se retirado,louça por recolher, estávamos sentados à mesa um do lado do outro, nos entreolhando, como tantas vezes fizemos. A gente gostava de se olhar sem falar. No fundo, a música no cd, rolando um 'Baby I'd Love You to Want me' do cantor Lobo que ela adorava. Bere, num rompante, levantou e pediu para que me afastasse da mesa com a cadeira. Eu o fiz e ela sentou no meu colo. Deu um beijo, senti o gosto do vinho em seus lábios, e ela disse: "O que fiz pra te merecer?" - Eu respondi: "O que eu fiz pra te merecer?" - Ela segurou meu rosto com as duas mãos em concha, e seu olhar negro e belo me fitou. Disse: "Não muda de assunto! Eu fiz uma pergunta. E quero uma resposta: o que fiz pra te merecer?" - Então eu disse: "Nós nos merecemos, querida! Nós nos fazemos merecermos um ao outro." - Bere deu um sorriso meigo, me beijou mais uma vez e disse: "Que bom que nos merecemos. Isto é tão intenso! ...Ah, obrigado pela janta. Foi divina!" - Eu a abracei e disse: "Como é fácil te agradar Vidinha!" - Ela, com seu olhar carinhoso me encarou e disse: "Pra que luxo se tenho três tesouros em casa? Meu luxo são vocês!" - Dei mais um beijo nela, levantamos, desfizemos a mesa e fomos lavar a louça juntos.
   Marcante também foi a viagem que fizemos a Itacaré na Bahia para comemorar uma melhora em seu estado de saúde. E nesta viagem dois momentos se salientaram. Um tenso, que já contei, onde ela abria mão de mim por amor, no qual a repreendi por pensar assim. E um muito alegre no avião, na volta. Viajou em nosso banco uma professora, Mila, que sentou na janela. Ao lado dela Bere, e eu ao lado de Bere. Na hora as duas fizeram amizade. Mila, elétrica, confessou ficar tensa em viagens de avião. Então Bere disse a ela que ficaria conversando com ela para a distrair e perder o medo. E isso aconteceu. Nossa! Rolou uma química entre as duas, parecia se conhecerem há anos. Conversaram sobre tudo, o tempo inteiro. Mila desembarcou em Minas Gerais e nós seguimos no mesmo avião. Bere estava radiante. A felicidade que sentiu por ter ajudado uma pessoa, quase desconhecida a viajar mais tranquila. Bere era assim: pequenas coisas, banais para muitos, para ela sempre eram grandes acontecimentos. Intensos. Por isso eu a amava tanto. 
   Outro fato marcante aconteceu no início do mês de Setembro. Bere tinha consulta marcada para saber o resultado de uma tomografia do pâncreas. Ainda estava animada pela estabilização do tumor no pulmão e encorajada a saber, quem sabe de um bom diagnóstico. Lembro perfeitamente. Nós dois estávamos sentados lado a lado, de mãos dadas, na frente da escrivaninha da doutora Maria Helena. E a doutora falou: "Berenice, infelizmente vais ter que voltar para a quimioterapia. O tumor passou de 3,5cm para 4,8." - Sua mãozinha que segurava a minha com confiança, na hora afrouxou. Murchou. Naquele momento senti, no todo, que ela se entregou. Sua luta havia sido vencida pelo mal da doença. Ela encheu os olhos de lágrimas e disse chorosa: "Mas doutora, olha só:" - Tirou o chapeuzinho que tinha na cabeça, e continuou: "Meu cabelo já está voltando, começando a fechar! Vou perder ele de novo?" - A doutora respondeu: "Infelizmente, sim!" - E o olhar que se seguiu quando ela me olhou, também nunca mais esqueço. Porque ela falou com seu olhar: "Eu desisto!" E deste dia em diante, ela começou a definhar lenta e gradualmente, até seu fim, alguns dias depois deste episódio.



Mila, Bere e eu na viagem de volta da Bahia


Eu fui fascinado pelo negro olhar de Bere, espelho de sua alma.

  

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