quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Sexto Dia: O Diário de Bere - 13 de Março de 2013




  Sexto dia do Diário de Bere

   13 de Março de 2013. 

   Neste dia Bere e eu tiramos um bom tempo, depois que as visitas tinham terminado, para conversarmos sobre o tratamento prolongado que viria à frente e o tanto de tempo e dedicação que isto exigiria de mim, e de paciência e cooperação que exigiria dela. Nesta nossa conversa, ela foi incisiva em dizer que se a doutora não desse grandes perspectivas de vida a ela, que ela não se submeteria ao tratamento. E custei muito tempo de conversa para convencê-la a se submeter ao tratamento, independente das espectativas que a médica fosse dar. Mesmo que se ganhasse um mês a mais de vida, já seria muito tempo, um bom tempo a mais no nosso convívio. Ela dizia que não queria sofrer como foi com o pai dela, que também faleceu de câncer e sofreu durante dois anos. E que se fosse para sofrer, não queria viver porque não aguentaria ver a mim e seus filhos sofrendo com sua dor. Que ela já estava sofrendo muito conosco, ao ver nosso olhar entristecido por tudo que estava acontecendo. E que ela chorava sempre quando estava só, por nos ver todos abatidos com seu diagnóstico. Que não aguentaria me ver ao lado dela nesta luta contra a doença, perdendo tempo e trabalho, para no fim não dar o resultado esperado e ela fosse morrer. Que seu amor por nós suportaria tudo, mas que tivesse a certeza no prognóstico da médica, de que havia a chance de cura. Senão desistiria. Eu a xinguei e disse que se ela fosse desistir, ela não era a esposa com quem eu era casado tantos anos e que nestes anos todos lutou com garra contra todos os desafios que a vida tinha nos apresentado. Enfim, depois de uma longa conversa, chorarmos muito abraçados, após eu recontar todas as situações tenebrosas que juntos passamos. Nossa vida também teve muitos momentos onde precisamos nos unir ainda mais para ficarmos fortes. Enfim, mesmo na grande tensão daquele dia, e também dos que já tinham passado depois de sua alta hospitalar e seu diagnóstico, consegui convencê-la a aceitar o tratamento. Independente do resultado.

   13/03/2013 = 4ª Feira
   Nossa, hoje foi um dia diferente, nunca recebi tantas ligações e tantas visitas. Tia Eugênia, Lica, Jéssica (afilhada querida, só me divertiu), Ângelo, Clair, Flávia, Aline, Nádia, Laubin... muito bom! Mas até comentei com a Flávia, porque a gente é assim: qdo alguém tá doente, acha-se tempo sempre p/uma visita, qdo a gente tá bem as pessoas não acham tempo, e isto vale pra mim também.
   Mas enfim, apesar disso mto feliz, por ter amigos.
   O q/tá me agoniando é q/ainda não consegui contar para a minha amiga Silvana, ela ainda não pôde vir aqui (pois a mãe dela está doente) e eu não queria contar p/telefone (do meu câncer), mas talvez não tenha jeito. 
   Hoje eu e Pio também conversamos sobre os dias "nublados" q/vem por aí. Estamos dispostos a enfrentar tudo juntos, mas não podemos ignorar as dificuldades.

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   Minha cunhada Lena comentou comigo estes dias: "Nossa Pio, tu deves ter sentido uma grande emoção ao encontrar este diário que Bere escreveu. O que tu sentiste?" Eu respondi: "Senti tudo, Lena! O amor, o carinho, a dedicação, a preocupação, a vontade dela em querer ser útil mesmo 'em outro plano' como ela escreveu. Chorei tanto, tanto, tanto de emoção ao descobrir este diário, que não consegui ler o que ela escreveu no primeiro dia. Para mim, fora os filhos, é a maior prova física do tanto de amor que ela teve por nós. Ela botou no papel, com sua letrinha, para eternizar seu amor por nós. E mesmo que ela tivesse somente escrito um dia, um único dia, uma única folha,  não trocaria esta folha por nada, nem por um carro zero!" 
   Bere era uma pessoa completamente previsível. Ela não tinha meias decisões, meias verdades, meios momentos ou meias ideias. Tudo para ela sempre foi completo. Sua rotina era completa. Todo o dia fazia o ritual daquele dia, mesmo que chovesse ou que se atrasasse. Dava um jeito. Suas decisões, sempre compartilhadas comigo, e dependendo do que eu dizia, ela tinha já imaginado uma solução. Não existia: "Ah, me pegou, eu não havia pensado nisso!" Não! Ela havia pensado nisso! Sempre havia pensado nisso! Ela havia pensado em tudo! Quantas e quantas vezes nós conversamos sobre determinado assunto, sério, difícil, que exigia uma atitude nossa a favor, contra, ou de se impor, ou de deixar rolar. Ela me expunha o fato, eu dava minha opinião, e ela tinha sua opinião formada a respeito. Primeiro, porque catava nas entrelinhas do nosso relacionamento, que eu teria esta opinião. Assim ficava fácil para ela, ela me conhecia. Mas, independentemente disso, se eu fosse dar alguma opinião que fosse fugir desta sua concepção a meu respeito, ela também já tinha pensado num jeito de resolver.
   Assim era Bere no seu trabalho, sua vida e em nosso lar. Uma organização primorosa, cuidada, detalhista. No seu trabalho, todos os compromissos, soluções de problemas inesperados de contabilidade, lembretes, tudo anotado. Sempre. Ao mesmo tempo seu radar captava nas conversas das colegas de trabalho soluções para dilemas que elas tinham. Ela agia, submetia sua opinião, e era sempre a mais certa a seguir. Estava sempre dando pitaco nas colegas para resolverem seus problemas com as empresas. Bere tinha orgulho em acertar e sua opinião fazer a diferença nisso. Em sua vida, aniversários anotados na agenda, compromissos anotados em bilhetes na geladeira e os lembretes rápidos, espalhados em folhinhas pela casa toda. "Estender a roupa" - bilhete deixado embaixo porta copos. Quando fosse pegá-los para fazer a mesa do almoço, via o lembrete. Ficou também alguns dias um bilhete embaixo do pote de biscoitos: "Comer menos biscoitos e mais frutas." E embaixo do controle remoto da tv da sala: "Tirar os tapetes e por pra lavar." Embaixo do copo com nossas escovas de dentes: "Passar melhor fio dental. Almoço corrido não deu pra caprichar." E embaixo da cuia do chimarrão: "Encomendar água. Por amendoim pra torrar." E embaixo do abajur do quarto: "Passar camisa uniforme predileto. Preciso sorte na reunião." Quando eu devolvi seus uniformes para o escritório, pedi para a Neiva para ficar com esta camisa que ela tanto amava usar quando tinha reuniões importantes com clientes. Dizia que era sua camisa da sorte. Ficou lá, no armário, com suas roupas.
   Fora isto, Bere também foi sempre muito focada em nossos compromissos. Não bastasse os dela. Dizia: "Pio, não tem duplicata pra pagar hoje?" Ou: "Pio, já viu quantas gravações tem pra hoje? Não quero atrapalhar, mas preciso lavar a calçada." E com os filhos, sempre toda a preocupação: "Wagner, não tem prova para a faculdade hoje?" ou: "Guilherme, vais almoçar em casa hoje? Se almoçar fora, não come qualquer porcaria."
   Assim era ela. Em nossa casa, tudo guardado e arrumado. Sempre. Passava domingos de tarde inteirinho organizando tudo, guarda roupas, armários, tudo. Seu armário é de um primor indescritível: todas as suas roupas estão guardadas como se estivessem numa vitrine de uma loja. tudo certinho, tudo. Nem me atrevo a mexer. 
    ...E os trilhos, toalhas e guardanapos para enfeitar o Natal estavam separados dentro de um saco, me esperando na dispensa. Bere tinha me dito dias antes de partir que se eu precisasse achar o material para enfeitar nossa casa para o Natal, que estava tudo lá, na dispensa, na prateleira. Talvez pressentia que não passaria o Natal conosco.
   Até não estranho o seu jeito 'Bere' de ser, porque eu estava acostumado a este cuidado seu, achava bacana esta organização que ela mantinha. E quando ela vinha se queixar que havia esquecido algum compromisso, coisa pequena, adiável como mandar o Scotty na pet, eu dizia a ela: "Vidinha, sabes qual é o teu problema? Tu és certinha demais!" - E ela respondia: "Não imaginas do que sou capaz quando resolver ser erradinha!"




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