segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Nono Dia: O Diário de Bere - 27 de Maio de 2013




 Nono dia do Diário de Bere.

   Este é o último dia em que Bere escreveu em seu diário. Vejo em sua letra, que está conformada com a situação. Escrito exatamente um mês depois do oitavo dia de suas anotações.

   27/05/2013 Ela escreveu:

   Conversa c/Jesus Cristo

   "Meu querido Jesus Cristo, em vós deposito toda minha confiança. Vós sabeis de tudo, ó Pai do Universo. Vós sois o Rei dos Reis. Vós que fizestes o paralítico andar, o morto a voltar a viver, e o leproso a sarar. Vós q/vedes minhas angústias, minhas lágrimas, bem sabeis, Divino Amigo, como preciso alcançar de Vós esta graça q/espero, com muita fé e confiança. Fazei Divino Jesus Cristo, q/eu a a alcance pois necessito muito, por isso vos peço com muita fé "a cura do meu câncer, profunda e total." Quero proporcionar este dom através da Tua bondosa mão a meu marido (Pio meu tudo q/amo demais) e meus filhos (amados) que anseiam por Tua intervenção. Não os faça sentir desamparados com minha falta. Os amo demais para deixá-los logo, na dor. A conversa Convosco, meu grande mestre, me dá ânimo e alegria de viver!!!"
   
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   Quisera eu poder elaborar uma oração tão doce e serena em meio ao desengano. Quisera eu fechar os olhos e me compenetrar pedindo ao Pai serenidade. Quisera eu ainda encontrar forças em pedir coragem e amparo aos que me são amados, em meio à turbulência de uma vida desenganada. Quisera eu olhar para a imagem de Deus, ou Jesus, e ter este brilho de imensidão na alma para trocar confidências tão sublimes sem blasfemar. Quisera eu. Mas não consigo. Ando distante de Deus desde a partida de Bere. Magoado, traído. E não existem palavras que me façam mudar de ideia por enquanto. Não consigo pensar em boas vibrações divinas se estas boas vibrações divinas me arrancaram da vida o que de mais vibrante eu tinha. Minha vibração foi silenciada. Não consigo pensar em Deus como bem. Como vou pensar? Se Deus é amor, como é pregado por todas as religiões, por que Ele vem, na maior, e quebra, destrói uma vida de amor construída dia após dia durante 31 anos? Por que Ele mata o amor numa facada só, levando a metade do que eu de mais amado e sublime tive em toda minha vida?
Se Deus é amor, por que Ele me faz duvidar de Seus sentimentos com esta Sua atitude? Por que Deus mexe em relacionamentos perfeitos, se tem tantos imperfeitos que ficariam aliviados com Sua mexida? Por que ele não leva aquela mulher que está casada há tantos anos, vivendo uma vida infeliz ao lado do marido que a deixa infeliz, que a trai, que a maltrata? Faria um favor ao casal.
   São perguntas que me faço. Estou realmente distante dEle. Não ando rezando como sempre fazia. Não ando pensando Nele como muitas vezes fazia. Me sinto um amigo que foi traído, e que não mereceu a atitude que lhe foi destinada. Sei que um dia vou mudar. Até, a oração de Bere nesta última página de seu diário mexeu bastante comigo. Chorei muito. Chorei muito, muito ao ler. Vendo a impotência dela, coitadinha, diante da imensidão de sua fé, tentando receber amparo. Vendo a candura de sua intimidade em chegar nEle e tentar receber uma graça. Sem promessas, sem ameaças. Somente com a doçura de sua alma e de sua fé. Não tem como não ficar emocionado. Buscar serenidade em meio à turbulência que foi a época em que ela escreveu esta oração é de uma grandiosidade sem limite. E o amparo não chegou. Mas ela acreditou nEle até o fim. Sempre. Lembrando do quanto de fé ela depositou nEle e em sua cura. Tudo em vão. Tudo sem resultado. Ela tinha muita fé. Frequentava a missa dos carismáticos nas quintas de tarde aqui em nossa cidade.  Chegava em casa e me contava orgulhosa que não tinha caído ao levar o toque do padre. Mas que o padre a olhava como se inspirasse sua cura. E ela acreditava. Eu só escutava e dizia: "Se isto te faz bem, vai, e faz!" E na missa do sétimo dia de seu falecimento este mesmo padre passou por cima de todos os sentimentos meus e da família, massageando o ego de meia dúzia de puxa sacos com outros assuntos, sem focar no sentido que uma missa de sétimo dia realmente almeja: o de confortar a alma dos que sobraram na fé e na religião. Como vou ter fé? Como vou poder rezar? 
   Mas, a vida provou mais uma vez que a muleta da religião pode ser útil para quem precisa se apoiar nela, buscando fé nela, mas que na verdade tudo não passa de uma verdade nua e crua, que a vida leva no seu decurso natural, não importando o quanto rezou ou o quanto de bom ou mau foi neste decurso. Sei que meu desabafo hoje está sendo muito amargo e receberei diversas posições contraditórias. Mas gostaria, de coração, que todas as pessoas que tiverem vontade de me 'aconselhar' ou me dar 'show de moral', se não tiverem perdido esposa ou marido, ponderem antes de escrever. Ponderem bastante! Tentem sentir o quanto cruel é perder sua cara metade. Falar, escrever, é fácil. Dizer que Deus provém, é fácil pra quem do seu mundo natural, sereno, belo e normal nunca teve arrancado alguém tão ligado, como sua cara metade, de amor infinito, incondicional, somado. Como foi comigo. Mas para quem sobrou como eu e tantas outras pessoas que viveram situações como a minha, poderia citar diversas, a gente forma outro contexto quanto a realmente buscar amparo na fé e em Deus. A revolta vem, se instala, e quando menos esperamos, está aí.
   Ando distante de Deus sim. Ando. E não escondo. Vai ser o primeiro ano de toda minha vida em que não irei a uma missa de Natal. Porque acho que se o Verbo se fez Carne para resgatar a humanidade, me deixou de fora. Porque minha família em vez de ser resgatada, foi dilacerada. Foi partida. Como se estivéssemos no meio de uma guerra e Bere tivesse levado um tiro de uma bala perdida. Não tenho como ser a favor de todas as coisas boas que falam de Deus. Não tenho como olhar para a magia do nascimento de um menino num mangedoura, na pobreza, se por outro lado, seu Pai desligou a vida de uma menina, que nasceu em meu coração, cresceu, e o tomou por inteiro, fazendo de nosso relacionamento um fruto de amor, amparo e beleza. Não tenho como! Esta mesma menina ansiava por uma intervenção deste Menino que virá a nascer agora, dia 24. Pediu docemente que Ele intercedesse pois sua fé acreditava. Porém não aconteceu. Sua fé não a curou.
   Sei que o assunto é polêmico. Muito. Vou acirrar os ânimos de muitas pessoas. Mas é meu ponto de vista. Tudo simples, matemático: se Deus é amor como é pregado, por que destrói o amor? Por que? só isso! Esta pergunta me faço todos os dias, e enquanto não tiver a resposta não vou saber rezar com fé como sempre fiz. Porque Ele é dito de um jeito e age de outro jeito. E isto não bate. 
   Quero voltar a rezar. Sinto falta, confesso. Mas não consigo. Deus para mim atualmente é distante. Do tipo Luz, mas que tenho dificuldade em enxergar. Ele está me devendo esta resposta que busco intensamente há quase três meses e não a recebi. Muitas pessoas me dizem que tenho que aceitar, que é a vida e que é a vontade Dele. Tudo bem! Para quem tá de fora, é fácil falar. Minha amiga, meu amigo, corte sua mão direita fora e tente escrever com a esquerda enquanto sente a dor da perda da sua mão, o que sente!!! ...Entendeu agora? Ou preciso explicar melhor? É bem assim que eu me sinto, que a gente se sente, ao ter arrancado do coração quem se ama e se amou acima de tudo na vida. Então, falar de sentimentos não tem como. Eles estão aí e não curam só com palavras falando de Deus e de que Deus provém. Eles curam com a cicatrização da ferida que leva tempo, meses para uns, anos para outros. Mas que Deus não tem como curar. Porque ele foi o algoz desta fatalidade e isto as pessoas não entendem quando estão envolvidas em sua fé, mas que deixam a quem é vítima com a pergunta crucial a machucar a alma: cadê Teu amor?


Jantar de ano novo de 2013/2013

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